ISSN (on-line): 2238-3182
ISSN (Impressa): 0103-880X
CAPES/Qualis: B2
Corpo estranho no couro cabeludo por autoconsumo
Foreign body in the scalp for self-consuming
Alcino Lázaro da Silva1; José Diogo Oliveira Fialho2
1. Professor de Cirurgia e Emérito da Faculdade de Medicina da UFMG. Belo Horizonte, MG - Brasil
2. Acadêmico do Curso de Medicina da Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais. Belo Horizonte, MG - Brasil
Alcino Lázaro da Silva
Rua: Guaratinga, 151, Bairro: Sion
Belo Horizonte, MG - Brasil, CEP: 30315.430
Email: cirurgia@medicina.ufmg.br
Recebido em: 12/02/2010
Aprovado em: 02/09/2010
Instituição: Departamento de Cirurgia da Faculdade de Medicina da UFMG. Belo Horizonte, MG - Brasil
Resumo
Este relato apresenta observação curiosa (anedótica) de paciente aparentemente hígida, portadora de corpos estranhos metálicos autointroduzidos no couro cabeludo, em decorrência de psicopatia de autoconsumo. A retirada operatória promoveu a cicatrização dos orifícios infectados, trazendo conforto à paciente.
Palavras-chave: Corpos Estranhos; Granuloma Piogênico; Crânio; Couro Cabeludo; Pioderma.
INTRODUÇÃO
Os corpos estranhos (CE) introduzidos no organismo são multivariados e provocam reações texturais diversas e dificuldade de serem extraídos.
São relativamente comuns na prática médica. Sua localização na cabeça associa-se, principalmente, a acidentes traumáticos1; ou automutilação em pacientes psiquiátricos.2-4 No couro cabeludo oferece dificuldades técnicas porque, sendo pontiagudos, procuram trajetos não facilmente identificados. A literatura possui raras citações, o que torna difícil a sua comparação com outros relatos e casuísticas.
O objetivo deste relato é apresentar paciente com distúrbio psiquiátrico, que inseriu objetos metálicos no couro cabeludo como forma de automutilação. Será apresentado o tratamento cirúrgico realizado.
OBSERVAÇÃO
EGD, 35 anos de idade, leucodérmica, feminino, solteira, brasileira, natural de Belo Horizonte-MG, com aspecto geral de higidez. Registro anterior e antigo de uso de psicotrópico para controlar instabilidade emocional e atitude permanente de autoagressão ou autoconsumo. O relacionamento médico-paciente era ameno, com serenidade e adesão às propostas terapêuticas.
O exame físico era normal, exceto pela presença de áreas pequenas de alopecia no couro cabeludo, com orifícios de onde emergia pouca secreção fibrinopurulenta, com sinais inflamatórios e tecido de granulação do tipo piogênico. A sondagem era superficial e pouco dolorosa, mas não se aprofundava porque os trajetos eram superficiais.
As alterações descritas foram relacionadas à existência de corpo estranho.
Realizados preparo pré-operatório, radiografia de crânio (Figura 1) e exames complementares, todos normais. Foi procedido procedimento cirúrgico com paciente sob anestesia geral e proteção com campos após antissepsia.
Por sondagem cuidadosa foram dissecados os trajetos até atingir os corpos estanhos, que foram retirados. Foi controlado o pequeno sangramento e suturadas as feridas. Realizado curativo compressivo com faixa e alta após recuperação.
Os procedimentos técnicos repetiram-se na segunda intervenção porque a paciente voltou a introduzir corpos estranhos metálicos no couro cabeludo (Figuras 2 e 3).
DISCUSSÃO
O capítulo de CE desperta interesse nos cirurgiões por vários motivos:
Necessidade de sua remoção;
perigo de criar reação do tipo inflamatório no interior do tecido;
criação de fístulas ou sinus que incomodam o paciente, além de colocá-lo em risco de prováveis infecções ou focos de retenção de pus;
dificuldade de serem retirados por estarem inclusos em tecidos reativos com fibrose intensa ou na intimidade de vísceras vitais;
dificuldades de alguns CEs serem localizados com precisão, independentemente do auxílio de métodos complementares de imagens;
possibilidade de propiciar ao cliente a instauração de processo civil ou ético contra o cirurgião.
Poucos casos de CE no crânio em pacientes psiquiátricos são descritos na literatura, sendo a maioria com lesão cerebral ou ocular.1 Corpos estranhos retidos sob o couro cabeludo, talvez por trazerem poucas repercussões sistêmicas, são pouco estudados.
No diagnóstico de corpos estranhos, os métodos de imagem são de suma importância. No caso descrito, principalmente por se tratar de objetos metálicos e, portanto, radiopacos, a radiografia de crânio foi suficiente para a confirmação e localização dos corpos estranhos. A tomografia é opção adequada para casos em que a radiografia simples não é totalmente esclarecedora.
Os corpos estranhos podem: tornar-se inertes, o que ocorre pela formação de cápsula fibrosa; ser foco de infecção; ou determinar processo inflamatório crônico. O tratamento definitivo dos corpos estranhos é a sua exérese cirúrgica, no entanto, é importante assegurar-se de que no procedimento não haja mais lesão para o interior do crânio do que a causada pelo corpo estranho na pele.
Do ponto de vista psiquiátrico, a automutilação é forma de autodestruição localizada, resultado do mau uso de impulsos agressivos causados por desejo inconsciente de punir a si mesmo ou a um objeto introjetado.5 Esse comportamento é mais comumente descrito em portadores de retardo mental ou distúrbios graves de personalidade, psicóticos e prisioneiros. Há, na maioria dos casos de automutilação, intenção presumida de suicídio. Em casos de depressão, as razões para a automutilação podem ser outras que não o autoextermínio. De maneira geral, os episódios são repetitivos.1
O tratamento das condições psiquiátricas que levam à automutilação deve ser feito especificamente para a doença de base. O uso de inibidores seletivos da recaptação da serotonina, antagonistas opioides e dopaminérgicos foi proposto para prevenir episódios de automutilação repetida.1
CONCLUSÃO
O procedimento cirúrgico é apenas pequeno passo no tratamento de vítima de corpos-estranhos autoinfringidos. O tratamento psiquiátrico contínuo e o acompanhamento do paciente são importantes para prevenir potenciais infecções e episódios recorrentes.
O comportamento humano deve ser de interesse médico em todas as especialidades. A presença de CE no organismo é importante, pois tem implicações sérias para o cliente e para o cirurgião. O bom relacionamento entre as partes e o tratamento adequado é essencial para o sucesso terapêutico.
REFERÊNCIAS
1. Karabatsou K, Kandasamy J, Rainov NG. Self-inflicted penetrating head injury in a patient with manic-depressive disorder. Am J Forensic Med Pathol. 2005 June;26(2):174-6.
2. Yamashita M, Abrahäo Junior N, Lamachia C. Tentativa de suicídio pela introdução de dois pregos na cabeça: relato de caso. Arq Neuropsiquiatr. 1988 jun;56(2):317-9.
3. Litvack ZN, Hunt MA, Weinstein JS, West GA. Self-inflicted nail-gun injury with 12 cranial penetrations and associated cerebral trauma. Case report and review of the literature. J Neurosurg. 2006 May;104(5):828-34.
4. Bozzeto-Ambrosi P, Costa LF, Azevedo Filho H. Penetrating screwdriver wound to the head. Arq Neuropsiquiatr. 2008 mar;66(1):93-5.
5. Sadock BJ, Sadock VA, editors. Compêndio de psiquiatria: ciências do comportamento e psiquiatria clínica. 9ª ed. Porto Alegre: ArtMed; 2007.
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