ISSN (on-line): 2238-3182
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CAPES/Qualis: B2
Analogias em Medicina: Parte IV
Analogies in Medicine: Part IV
José de Souza Andrade Filho
Médico Patologista. Professor de Patologia da Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais. Membro da Academia Mineira de Medicina. Belo Horizonte, MG - Brasil
Endereço para correspondênciaPraça Carlos Chagas, 55/1502, Bairro: Lourdes
Belo Horizonte, MG - Brasil, CEP: 30170-000
Recebido em: 24/04/2009
Aprovado em: 27/04/2010
Instituição: Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais
Resumo
Trata-se de compilação de verbetes que, por analogia, passaram a ser utilizados como termos das diversas especialidades médicas. Neste ensaio, descreve-se a origem dos termos Aspergillus e Necator. O primeiro termo foi originado por analogia com o aspersório, enquanto a origem do nome Necator está relacionada ao termo matador. Interessantes aspectos históricos e culturais dessas analogias são apresentados.
Palavras-chave: Medicina; Terminologia; Educação Médica.
INTRODUÇÃO
Várias locuções e termos comparativos estão presentes nas diversas especialidades médicas, sendo criados em grande velocidade com o progresso da ciência. A compilação desses termos tem sido trabalho de investigação e pesquisa há cerca de 10 anos. Sempre que possível, busca-se fazer enxertia de aspectos médicos, históricos e culturais em cada tema, de modo a torná-lo mais interessante e atraente.
Além de fornecer elementos para a terminologia médica, as analogias em Medicina são de muito valor como recurso didático, auxiliando em processos de aprendizagem e memorização.1
Neste ensaio, são apresentadas duas analogias: uma que relaciona um fungo à liturgia, outra que compara um helminto parasito a um assassino.
Fungo e liturgia
Robert Hooke, cientista inglês, publicou em 1665 a obra Micrographia, contendo a primeira ilustração de um fungo e a descrição detalhada de 57 observações científicas, usando um microscópio rudimentar. Nessa obra aparece pela primeira vez o termo célula. Pietro Antonio Michele, botânico de Florença, em trabalho divulgado em 1729, descreveu 900 fungos, quando introduziu o termo "aspergillus" para designar o aparelho conidiano desse fungo por semelhança ao aspersório (Lat. Aspergillu). Os conídios são esporos que nascem na extremidade dilatada de filamentos micelianos nos gêneros Aspergillus e Penicillium2 (Figura 1).
Aspersório é instrumento de metal ou de madeira usado em cerimônias litúrgicas. O mesmo que hissope, isto é, varinha de madeira com pelos numa extremidade ou haste de metal, terminada por uma esfera cheia de orifícios, que serve nas igrejas para aspergir água benta sobre os fiéis. Consta que um jovem erudito, na cidade do interior de Minas, com "conflitos íntimos idiopáticos", recorreu à "benzedura terapêutica". Saiu do templo aliviado e relatando que fora hissopado, sem parcimônia, pelo celebrante, o que colocou, sob suspeita, sua postura machista. Obviamente, os ingênuos e desinformados paroquianos da pequena cidade ignoravam o significado do verbo hissopar (= aspergir com o hissope, borrifar).
Curiosamente, na Bíblia, livro Levítico, há referência ao aspersório no tratamento ou purificação dos leprosos: "o sacerdote ordenará que um dos pardais seja imolado num vaso de barro sobre águas vivas. Outro pardal, que está vivo, ele o ensopará com o pau-de-cedro, escarlate e hissope no sangue do pardal imolado e, com esse sangue, fará sete aspersões sobre aquele que está para purificar, a fim de que ele fique legitimamente purificado".
Alguns fungos do gênero Aspergillus, como se sabe, são patogênicos (A. fumigatus, A. flavus e A. niger), podendo provocar pneumopatias, arterite, ceratite, endocardite, lesões no sistema nervoso central associado à AIDS, etc. Podem também produzir aflatoxinas, responsáveis pela contaminação de alimentos e carcinogenicidade, principalmente no fígado (relação com hepatocarcinoma).
O matador das Américas
O vocábulo matador, além do significado "o que mata ou o que causa a morte", tem também emprego no sentido figurado, como aquele que perturba pelo seu fascínio, por exemplo: olhar matador. Refere-se, ainda, ao toureiro que mata o touro em touradas, tipo de espetáculo em que os touros são torturados e espoliados até que possam ser abatidos a golpes de espada. No Brasil, especialmente no futebol, o atacante que faz gols é rotulado de matador pelos cronistas esportivos (Figura 2).
A ancilostomíase é helmintíase humana causada por dois parasitos: o Ancylostoma duodenale e o Necator americanus, e é amplamente distribuída por todo o mundo, sendo endêmica nos países tropicais e subtropicais. O Ancylostoma duodenale, que elimina cerca de 20.000 ovos por dia, é conhecido como ancilóstomo do Velho Mundo, predominando nos países mediterrâneos e em outros, como o Irã, Paquistão e Japão e na América do Sul. O Necator americanus, ancilóstomo do novo mundo e que elimina 10.000 ovos por dia, é a espécie mais prevalente nas regiões tropicais das Américas, na África Central e largamente disseminado na África do Sul. Os vermes vivem no intestino delgado. O Necator possui lâminas cortantes circundando a margem da boca e o Ancylostoma tem dois pares de dentes, o que lhe permite fixar-se nas vilosidades da mucosa intestinal, dilacerando-as e sugando o sangue do hospedeiro. Segundo os especialistas, ambos foram trazidos para a América pelos escravos.
As estatísticas mundiais registram que aproximadamente um quarto da população está afetado por essa parasitose, com alta incidência nos países subdesenvolvidos, refletindo as baixas condições socioeconômicas, pobreza e má-nutrição. Segundo a Organização Mundial de Saúde, há 1,3 bilhão de pessoas infectadas pelo Ancilóstomo e 65 mil morrem devido à anemia associada à doença. Estatísticas mais recentes indicam redução da infecção para 576 milhões a 740 milhões de indivíduos3. A ancilostomíase tem, no Brasil, os nomes populares de amarelão ou opilação ou doença do Jeca-Tatu, personagem supostamente portador dessa verminose e criado pelo notável escritor paulista Monteiro Lobato.
O Brasil, por sua situação geográfica de país tropical, junto às precárias instalações sanitárias, apresenta elevados índices de ancilostomíase em todas as regiões, excetuando-se as localidades de grandes altitudes.
Do ponto de vista clínico, pode-se encontrar indivíduos assintomáticos ou oligossintomáticos, que têm bom estado nutricional ou situações graves que necessitam de atendimento hospitalar. Os adultos apresentam sintomatologia de menor monta que as crianças. Os doentes queixam-se de cansaço fácil, adinamia, palidez, dores musculares e edema. Surge também pica - perversão do apetite - com desejo de comer terra ou barro (geofagia), carvão e arroz cru. Nas formas mais graves, a palidez se intensifica e o doente queixa-se de dispneia de esforço, tonturas e lipotímias. Nas infecções crônicas intensas, especialmente nas crianças, além da anemia grave, pode ocorrer acometimento do sistema circulatório, com sintomas que incluem dispneia, taquicardia, palpitação, sopros cardíacos e dores anginosas, traduzindo anóxia do miocárdio. Outras manifestações são edema generalizado (anasarca), hipoproteinemia e cardiomegalia.
O verme foi descrito, em 1902, pelo zoólogo e parasitologista Charles Wardell Stiles (1867-1941), após observar espécimes provenientes do Texas.4 Recebeu a denominação de Necator americanus (Lat. necare, matar; necátor: que ou quem mata; matador, assassino), isto é, o matador da América (Ingl. the American killer). Na falta de medidas preventivas amplas e apesar do tratamento curativo atual, esse diminuto verme continua justificando seu nefasto nome de batismo.
O Dr. Irineu Lisboa (1894-1986), pioneiro da Saúde Pública em Minas Gerais, fazia preleções educacionais em cidades interioranas e fazendas com abnegação e muita paciência. "Meus amigos, a doença chamada de opilação ou amarelão ataca quase todas as pessoas da roça. É produzida por um bichinho que vive na terra. Ele é tão pequeno que a gente não o vê, mas se a gente está descalço e pisa onde ele está, ele entra na sola dos pés, sem a gente sentir nada. Depois... eles acabam nas tripas da gente, onde crescem, ficando com mais ou menos 1 cm de tamanho. Agora eles se alimentam do nosso sangue. As pessoas costumam ter muitos, mais de 1.000, e cada um chupando um pinguinho de sangue por dia a pessoa perde muito sangue, daí vem: anemia, inchação, dor na boca do estômago, falta de coragem para trabalhar, vontade de comer terra, carvão e arroz cru. Para evitar que os ovos dos vermes sejam espalhados pela terra, vocês não devem fazer necessidades no mato e sim em fossas, buracos etc.. Para evitar a entrada dos vermes nas solas dos pés vocês devem andar calçados". Trata-se de pequeno trecho de palestra feita pelo Dr. Irineu Lisbôa no início do século passado, em pequena cidade do interior.5
REFERÊNCIAS
1. Pena GP, Andrade-Filho JS. Analogies in medicine: valuable for learning, reasoning, remembering and naming. Adv Health Sci Educ. Adv Health Sci Educ Theory Pract. 2010 Oct;15(4):609-19. Epub 2008 Jun 5.
2. Severo LC, Londero AT. Micoses. In: Veronesi R, Focaccia R, editores. Tratado de Infectologia. São Paulo: Atheneu; l996. p. 1015-57.
3. Bethoni J, Brooker S, Albonico M, Geiger SM, Loukas A, Diemert D, Hotez P. Soil-transmitted helminth infections: ascariasis, trichuriasis, and hookworm. Lancet. 2006;367:1521-32.
4. Souza DWC, Souza MSL, Neves J. Ancilostomíase. In: Veronesi R. Doenças Infecciosas e Parasitárias, 6ª ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 1976. p. 825-839.
5. Lisboa AMJ. Dr. Irineu Lisboa: Pioneiro da Saúde Pública e Radiologia em Minas Gerais. Belo Horizonte: sn; sd.
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