RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 21. 1

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História da Medicina

A Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais e sua origem na Inconfidência Mineira: história esquecida, incompreendida ou ficcional

Faculty of Medicine, Federal University of Minas Gerais and its origin during "Inconfidência Mineira": forgotten, misunderstood or fictional history

Enio Roberto Pietra Pedroso

Professor Titular do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, MG - Brasil

Endereço para correspondência

Avenida: Professor Alfredo Balena, 190, Bairro: Santa Efigênia
CEP: 30130-100, Belo Horizonte, MG - Brasil
Email: enio@medicina.ufmg.br

Recebido em: 16/02/2011
Aprovado em: 28/02/2011

Instituição: Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, MG - Brasil

Resumo

A origem da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) pode estar relacionada à Inconfidência Mineira e sua visão de construção de Estado Independente e Nação multiétnica e autônoma. Também ao imenso esforço de inúmeros médicos e outros profissionais da saúde, e da comunidade mineira, em estabelecer a criação de instituição formadora de recursos humanos para suprir as necessidades de cuidado e acolhimento à saúde, criar conhecimento em busca do bem-estar para todos. A primeira Escola de Medicina brasileira foi criada em Ouro Preto, entretanto, ainda não lhe foi dada esta primazia, constituindo-se na realização inicial do anseio dos inconfidentes por Nação livre e capaz de romper com a submissão colonial. Essa Escola constitui-se no embrião da agora centenária Faculdade de Medicina da UFMG, criada em 05 de março de 1911 em Belo Horizonte. E representa a perseverança, desde a sua criação, em estabelecer vínculo de resistência ao autoritarismo, colocando sempre o ser humano como a essência de todo o processo de desenvolvimento técnico e tecnológico, com humanismo e cuidado humanitário.

Palavras-chave: Escolas Médicas/história; Educação Médica/história; História de Medicina; Brasil.

 

INTRODUÇÃO

Viver é negócio muito perigoso. Tudo quando há, neste mundo, é porque se merece e carece. O real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia.1

A visão ambientalista e ecológica da vida e da natureza está expressa no processo envolvido na relação saúde-doença, na interferência e interpenetração das relações agente-hospedeiro-meio ambiente e constitui preocupação contínua e razão da existência da Medicina e da ação médica.2

A Medicina constitui-se na arte, habilidade e tradição humanas que, juntas à ciência, em intensa mutabilidade, constituem imenso esforço humano em cuidar e acolher pessoas, especialmente quando estão na iminência ou definitivamente em situação da perda do bem-estar. A Medicina cuida e acolhe pessoas e a comunidade com o ânimo para compreender a dimensão da vida; com o compromisso de preservar a saúde; com a paixão de transformar lugares e experiências que se criam, recriam e espalham por onde atua e exerce sua influência; com a ação que responde e estimula o discernir, inovar, transgredir em sua missão de curar de enfermidade e recuperar a saúde, reduzir o sofrimento, buscar o bem-estar que todos desejam e merecem, com equanimidade e harmonia com a natureza.2,3

A formação de recursos humanos para a Medicina representa, portanto, missão de desprendimento, crítica, transformação e transgressão do saber e da prática; com a ousadia necessária em que o seu pressuposto baseia-se na busca de condições de vida equânime e adequada à existência do ser humano em equilíbrio com a natureza; com perseverança na busca da percepção sociopolítico-econômico-fnanceiro-cultural-espiritual da expressão humana; e com a luta por condições de vida digna para todos.2,3

O desafio de formar recursos humanos em Medicina e a defesa da atuação médica de forma digna e ética possuem exemplos eloquentes em todo o mundo, especialmente quando prevalecem situações críticas de vida, como ocorre no Brasil, que sucederam em sua história, revelados na criação de escolas médicas brasileiras.4-6

A celebração do primeiro centenário da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) reveste-se de sentimentos especiais, por conter elementos épicos, dignos da alma do povo das Gerais, com a sua natural singularidade, expresso no pode ser de seu talvez, sem o afoitamento do sim ou do não, no equilíbrio da dúvida sobre ser e ter, que contém a universalidade regional da liberdade ou libertação ainda que tardia.1,5,7

A semeadura, o enraizamento, a grandiosidade do tronco e ramos e a florescência que resultaram na criação e desenvolvimento da Faculdade de Medicina da UFMG desenvolveram mudas que ultrapassaram o quarteirão de Santa Efigênia. E que se desdobraram em vencer desafios e produzir transformações sociais, com a também singularidade de seu regionalismo universal, compromissada com a crítica e a criação, fundamentada na libertação humana, no cuidado com o conflito de interesses, tomando em sua essência o propósito humanista e humanitário de suas ações.

 

A MEDICINA EM MINAS GERAIS ATÉ A INCONFIDÊNCIA MINEIRA

A preocupação com as condições de vida e o cuidado com os enfermos são tarefas de grande relevo desde os primórdios da espécie humana. Por onde desenvolveu a sua civilização o ser humano cuidou da saúde evitando a doença e as suas consequências.

Poucos anos depois da viagem de Cabral ao hemisfério sul, em 1500, a nova terra encontrada passou a ser chamada de "Terra do Brasil", numa referência ao pau-brasil, árvore de abundância litorânea, desde o Rio Grande do Norte até o Rio de Janeiro. O seu tronco era raspado até se transformar em pó, usado para tingir tecidos de vermelho ou de púrpura. O nome Brasil pode ter derivado de brésil (frânces), brézil (provençal), braxile e brasile (italiano) e brasa (germânico), com o mesmo significado em português e que referenciava a madeira da qual se extraía o corante cor-de-fogo. A imagem mítica do Brasil, entretanto, está registrada em história épica anterior, tendo na mitologia celta referências a uma ilha paradisíaca chamada Brazil.4 A exploração da madeira (1500-1600) na Terra do Brasil foi sucedida pela de cana-de-açúcar (1600-1700) e seguida pela extração das riquezas das Minas Gerais, como ouro, diamantes e pedras preciosas (1700-1800). A exploração da "nova terra descoberta" foi realizada pelos colonos por intermédio, inicialmente, da mão-de-obra indígena, que foi subjugada e aviltada. Os colonizadores contribuíram, ainda, com doenças, vícios, aculturamento; além de invadirem a terra, explorarem as riquezas e as levarem para a Europa.7 A impossibilidade de manterem a escravização indígena fez com que os colonizadores introduzissem os escravos negros. Minas Gerais tornou-se o centro econômico-financeiro da colônia; e Vila Rica, sua capital, a grande metrópole, produtora e centralizadora da riqueza representada pelos minerais nobres arrancados da terra por mão-de-obra predominantemente escrava.

A Medicina era exercida até então no Brasil e em Minas Gerais como prática popular, absorvendo as magias indígenas e africanas. A tarefa de cuidar das pessoas era feita de forma irregular, irresponsável, sem participação do Estado. Por mais de um século, alguns estrangeiros que praticavam a Medicina com competência vinham ao Brasil para enriquecer ou por amor à profissão, mas, quase sempre, sem diploma ou documentação que comprovasse a sua habilitação. Eram os preferidos dos ricos, embora o fato de não apresentarem diplomas determinasse vários embaraços.4 Os pobres sem recursos procuravam tratamento com charlatães ou curandeiros.

Por volta de 1740 já existia, em Vila Rica, o Hospital Real, insuficiente para atender os inúmeros casos de enfermidades na capitania, por falta de pessoal especializado e de outros recursos.6

O sofrimento dos trabalhadores das minas e da população em geral era intenso, com condições de recuperação precárias.

Nesse ambiente de descuido e humilhação especialmente em Minas Gerais, em sua capital, a principal metrópole econômica da colônia, em Mariana e em São João Del'Rey, sob a influência da Revolução Francesa e da independência dos Estados Unidos da América - houve o desencadeamento de ideias de libertação que culminaram com a instituição da Inconfidência Mineira. Esta foi ousada proposta de criação de Novo Estado independente, com soluções adequadas para a florescente Nação e que aglutinasse as contribuições indígenas, africanas e europeias na construção de opção nova para a existência humana.4-6

O que demasia na gente é a força feia do sofrimento, própria, não é a qualidade do sofrente. O que eu vi, sempre, é que toda ação principia mesmo é por uma palavra pensada. Palavra pegante, dada ou guardada, que vai rompendo rumo.1

 

A INCONFIDÊNCIA MINEIRA E A SUA CONTRIBUIÇÃO PARA A EDUCAÇÃO

As reuniões dos conspiradores continham de poesias a discussão da situação política e econômica da capitania das Minas Gerais, tendo como modelo a independência das colônias inglesas da América do Norte e a ruptura em andamento com o absolutismo francês, conhecidos por informações orais e por escritos recebidos, especialmente da França.4 A posse de livros naquela época não era disseminada, entretanto, sua circulação era intensa, sendo lidos pelos que os compravam, por seus familiares e amigos e por empréstimo, prática corrente entre os inconfidentes, para todos que assim o desejassem5. A criação de uma Universidade era um dos seus princípios fundamentais, com visão crítica e criativa, fato que não logrou êxito. A ânsia de liberdade do povo mineiro era um grito uníssono e velado pelas cristas das colinas ouropretanas às vilas e povoados distantes da província imensa e conturbada.4 Os Inconfidentes, em 1789, na casa de Cláudio Manoel da Costa, reunidos sob o sonho revolucionário de independência e criação do estado e Nação brasileiros, pela primeira vez na história do Brasil, propuseram que se fundasse uma Academia de Medicina. Não se sabe a autoria dessa proposta, entretanto, constituía esperança de programa que vislumbrava a importância de cuidado à saúde. A emancipação política elaborada na Inconfidência Mineira planejava também a criação de uma Universidade em Vila Rica, que seria cidade dedicada especialmente às ciências e artes, sendo a sede política transferida para São João del'Rey.4,5

Tem uma verdade que se carece de aprender, do encoberto, e que ninguém não ensina: o beco para a liberdade se fazer.1

Por essa época, o atendimento à saúde da população era feito por "curadores" e parteiras e escassos médicos, inicialmente portugueses e depois brasileiros formados em Portugal.

A morte de Tiradentes em abril de 1792 impediu, inicialmente, a continuidade da ideia de criação da Escola Médica e da Universidade Brasileira. A condenação de Tiradentes, entretanto, iniciou o processo que o levou a mártir e herói nacional e tornou a Inconfidência Mineira o embrião dos movimentos de Independência, Abolição da Escravatura e Proclamação da República. A liberdade ainda que tardia ficou para mais além daquele tempo, tolhida pela indignidade de uma traição.

Tudo quando há, neste mundo, é porque se merece e carece. A colheita é comum, mas o capinar é sozinho. Vida, e guerra, é o que é: esses tontos movimentos, só o contrário do que assim não seja. Mas, para mim, o que vale é o que está por baixo ou por cima - o que parece longe e está perto, ou o que está perto e parece longe. Conto a senhor é o que eu não sei se sei, e que pode ser o que o senhor saiba. Agora, o senhor exigindo querendo, está aqui que eu sirvo forte narração - dou o tampante, e o que for - de trinta combates.1

 

A ORGANIZAÇÃO POLÍTICA BRASILEIRA PARA A CRIAÇÃO INICIAL DA ESCOLA MÉDICA

A ideia de criação do ensino médico e universitário não desapareceu de todo com a Inconfidência Mineira.4,6,8-10

O Hospital Real de Vila Rica era insuficiente para atender às pessoas que necessitavam de cuidado hospitalar na capitania, seja por falta de pessoal especializado ou pela ausência de outros recursos. A necessidade de atenção adequada à saúde e a manutenção da mão-de-obra para a mineração fez o Governador Bernardo José de Lorena pedir ao Príncipe Regente, D. João, a criação de uma Escola Médica a fim de preparar profissionais competentes para cuidar da enorme demanda. Esperava com isso suavizar o sofrimento da população.4,6 Essa solicitação já havia sido feita no governo do seu antecessor, Furtado de Mendonça, Visconde de Barbacena.

A Escola Médica foi criada junto ao ensino secundário em Vila Rica, em uma cadeira (disciplina) de "Cirurgia, Anatomia e Arte Obstétrica", com a finalidade de ensinar às pessoas que já se dedicavam ao tratamento dos problemas de saúde, autorizada pela Carta Régia de 17 de junho de 1801.6 As primeiras lições oficiais de Medicina no Brasil foram ministradas em aulas (escola), constituindo-se no primeiro curso formal de Medicina do Brasil. Essa escola, entretanto, não teve continuidade.6

A implantação, em 1774, no Brasil das aulas (escolas) avulsas, consideradas de nível superior, foi realizada por intermédio do ensino médio em Vila Rica, em decorrência da decisão do Marquês de Pombal de não instituir a instrução de ensino superior4. Esperava-se que essa escola, entretanto, tivesse a importância das existentes nos hospitais militares de Lisboa, Elvas, Almeida e Chaves.4,6 Foi ministrada pelo cirurgião-mor de Cavalaria de Minas Gerais, Antônio José Vieira de Carvalho, discípulo de Manuel Constâncio no Real Hospital de Lisboa e com a participação de Antônio José de Meneses. O início das atividades dessa Escola de Medicina realizou-se no Hospital Real de Vila Rica, onde o cirurgião Vieira de Carvalho já praticava a Medicina Operatória. Essa escola funcionou por cerca de 50 anos. Sua preocupação principal era formar recursos humanos para enfrentar a varíola, que a todos amedrontava e a muitos dizimava. Os principais livros usados por essa escola eram a "A Arte de se Tratar em Enfermidade Venérea", "Medicina de Mirandela" "Tesouro da Medicina" e "Medicina de Buchan".4,6

A instrução formal de médicos no Brasil recebeu novo impulso em 1808, com a transferência para o Brasil do Príncipe Regente, D. João VI, e a família real. Foi fundado o Colégio Médico-Cirúrgico da Bahia, em Salvador, por intermédio da Carta Régia de 18 de fevereiro de 1808, recebendo a seguir as denominações de Academia Médico-Cirúrgica da Bahia (1828) e Faculdade de Medicina (1832). E logo a seguir, em 05 de novembro de 1808, com a transferência da Corte e da capital de Salvador para o Rio de Janeiro, a Escola de Cirurgia do Rio de Janeiro foi depois denominada Academia Médico-Cirúrgica do Rio de Janeiro (1828) e Faculdade de Medicina (1832).4,10

Em 1823, 34 anos após a revelação da Inconfidência Mineira, e coincidindo com o início do Império, a Assembleia Constituinte passou a discutir a proposta de fundação do ensino universitário no Brasil. As discussões apresentavam muitas divergências, inclusive sobre a localização da sede desses centros de ensino superior. O baiano Francisco Gê Acayaba de Montezuma, relator dessa proposição, assim se expressou: "haver uma só universidade, devia ser em Minas Gerais: primeiro por ser a Província mais populosa do Império; segundo, por ser a mais polida do interior; terceiro, por estar colocada mais no meio de todas as outras". A Comissão de Instrução Pública aprovou a construção de três Universidades com a sua localização no Centro, Sul e Norte do Brasil, respectivamente, em Minas Gerais, São Paulo e a terceira a ser determinada posteriormente. A Constituinte, entretanto, foi dissolvida por D. Pedro I sem determinar alguma ordem sobre a educação no Brasil4, 9-10, deixando apenas subsídio histórico.

Em 1837, a Assembleia Legislativa de Minas Gerais passou a discutir a união das aulas (escolas) avulsas (régias) com o objetivo da constituição do primeiro Colégio Oficial de Minas Gerais. Houve o questionamento por um dos constituintes se "a aula de Anatomia deveria ter continuidade de forma isolada dos outros estudos [...]". Essa aula continuou funcionando no Hospital Real, inserida e dependente da instrução do segundo grau. É possível que o fato da aula (escola) de Anatomia ter sido ministrada junto ao ensino médio tenha impedido de ser valorizada e de ter sido considerada primaz como a primeira iniciativa de formação de médicos no Brasil.4,6

Em 1858, no governo de Carneiro Campos, a aula de Anatomia foi extinta juntamente com outras que eram oferecidas na província.

As únicas faculdades no Brasil até 1889 eram as da Bahia e do Rio de Janeiro.

 

A CRIAÇÃO DA ESCOLA MÉDICA EM MINAS GERAIS

Em 1823, a Assembleia Constituinte do Império já constituía grupos de debate sobre a educação médica em Minas Gerais, tendo como especial incentivador o médico mineiro Antônio Gonçalves Gomide, formado em Edimburgo e pioneiro da Psiquiatria brasileira. Foi proposta a criação no Conselho da Província de Minas, em 1829 e em 1832, de uma Academia Médico-Cirúrgica em São João Del'Rey, semelhante às existentes na corte. A criação de escolas livres só foi possível após o decreto Imperial de 19 de abril de 1879, conhecido como a "Lei do Ensino Livre".4, 10

A Proclamação da República, em 1889, coincide com a retomada das discussões sobre a criação de uma Escola Livre de Medicina em Minas Gerais. Em 1893, o senador estadual Virgílio de Melo Franco formalizou as diretrizes científicas e didáticas e estruturou cursos de Medicina e Farmácia em São João del'Rey, definidos como: a) Ciências Médicas e Cirúrgicas; b) Farmácia; c) Bacharelado em Ciências Naturais e Farmacêuticas; d) Obstetrícia; e) Odontologia.4,6,10 O curso médico foi estruturado em seis séries, com as seguintes cadeiras (disciplinas): 1. Primeira série: Física Médica; Química Inorgânica e Mineralogia; Anatomia Descritiva (estudo completo); 2. Segunda série: Botânica e Zoologia; Química Orgânica e Biologia; Histologia; Anatomia e Fisiologia Patológica; 3. Terceira série: Fisiologia; Química Analítica e Toxicológica; Patologia Geral; 4. Quarta série: Patologia Cirúrgica, Patologia Médica, Obstetrícia e Clínica Obstétrica e Ginecológica; 5. Quinta série: Anatomia Médico-Cirúrgica; Operações e Aparelhos; Terapêutica e Matéria Médica; 6. Sexta série: Higiene; Medicina Legal; Farmacologia e Arte de Formular. As clínicas eram cirúrgica (terceira e quarta séries) e médica (quinta e sexta séries). Esse projeto, embora tenha sido aprovado em primeira discussão no Congresso da Província, não teve aprovação final.

O assunto permaneceu em latência, sob discussão nas tribunas e na imprensa, especialmente liderado pelo pioneirismo de Aurélio Pires, que, desde Ouro Preto e depois na Nova Capital, foi o maior incentivador da criação da Escola Médica em Minas Gerais, particularmente em Belo Horizonte.4,10 Essa Escola Médica representou o embrião da Faculdade de Medicina de Belo Horizonte, criada em 1911.

O final do século XIX trouxe consigo a instauração da República e novas formas de legitimar a aspiração popular. O Decreto Federal número 7, cinco dias depois da proclamação da República, portanto, em 20 de novembro de 1889, transformava as províncias em estados e assegurava aos mesmos a competência de "[...] ordenar a mudança da capital para o lugar que mais convier". Em Minas Gerais decidiu-se pela mudança da capital e dos vários possíveis locais, escolhendo-se a localidade de Curral del'Rey, pertencente ao município de Sabará, que passou a denominar-se "Cidade de Minas". É dado o prazo máximo de quatro anos para a transferência do governo para a nova capital, o que foi realizado em 12 de dezembro de 1897. Foi instalada a Cidade de Minas, sob um plano geométrico, contornado por um círculo, com raios, rádios e diâmetros de linhas retas, configurando quadrados, retângulos, losangos, praças imensas, limitada ao sul pela serra do Curral e com ampla visão para os outros lados, vislumbrando um belo horizonte. Em 1901, a nova capital passou a ser denominada Belo Horizonte. Foi fundada em Porto Alegre, nesse intervalo, em 1898, a terceira Escola de Medicina do Brasil.

O governo do estado de Minas Gerais, desde a sua implantação até 1897, apresentou vários projetos de criação da Escola de Medicina, que eram sempre rejeitados com a argumentação contrária de que não havia estímulo, não podendo o estado suportar essa responsabilidade, já que eram prioritárias a manutenção da ordem e a solução dos conflitos partidários em relação ao poder.4,7

O governo mineiro, após a instalação da Nova Capital, apresentou novamente ao Congresso o seu projeto da Escola Mineira de Medicina "como imprescindível à cultura e à evolução da elegante e distinta capital". O legislativo mostrou-se de novo indiferente a essa proposta, vencendo democraticamente o Poder Executivo.4

A Sociedade de Medicina, Cirurgia e Farmácia de Belo Horizonte, em 1902, constituiu comissão para a criação de uma Escola Livre de Medicina composta por: José Pedro Drumond, Salvador Pinto, Olyntho Meirelles, Cícero Ferreira, Virgílio Bhering, Benjamin Moss, Aurélio Pires, Prado Lopes, João Luís Alves, Antônio Braga e Davi Campista. A contra-argumentação a essa iniciativa era da inexistência de hospitais e de recursos financeiros para a instalação da escola, a falta de pessoal docente e a escassez de doentes. A argumentação da criação da Escola de Medicina era feita, principalmente, por Aurélio Pires, com o aproveitamento de professores e laboratórios da Escola de Farmácia de Ouro Preto e a participação de hospitais de Ouro Preto, Sabará e Vila Nova de Lima (Nova Lima), além do hospital da Sociedade Humanitária de Belo Horizonte, inaugurado em 10 de abril de 1898, denominado de Santa Casa de Misericórdia, sob a liderança de Emídio Germano e Manuel Marques Leitão. A Santa Casa tinha como principal incumbência inicial atender aos praças da Brigada Policial de Minas e à população carente. Os seus primeiros clínicos eram Cícero Ferreira, Olyntho Meirelles, Salvador Pinto e Benjamin Mosse e os cirurgiões Borges da Costa e Hugo Werneck. Havia o apoio do presidente do estado, o médico Silviano Brandão, que morreu em setembro de 1902, o que arrefeceu o movimento, agravado pela extinção da Sociedade de Medicina, Cirurgia e Farmácia.4

A eleição de Afonso Pena para presidente da República em 1906 surgiu como alento extraordinário para a criação da Escola de Medicina, ainda reforçado pela fundação, em 1907, da Escola Livre de Odontologia de Belo Horizonte, pelo esforço pioneiro de Manoel Teixeira de Magalhães Penido.4

A criação de tão acalentada Escola Médica tornou-se obstinada missão para vários médicos renomados de Belo Horizonte, que constituíram a Faculdade Livre de Medicina e solicitaram apoio aos municípios para a sua subsistência econômica. O socorro econômico solicitado não foi obtido, voltando à latência a criação da Escola Médica.

A instalação da República constituiu-se em forte estímulo à renovação: o Rio Grande do Sul instalava a sua Escola de Medicina; São Paulo rapidamente evoluiu para ótimas condições econômicas e uma Escola de Farmácia; o Pará cogitava de criar a sua Faculdade de Medicina, assim como Pernambuco de estender à Medicina o veio de sua Escola de Direito.4

Volta em Minas Gerais o espírito criador de sua Escola Médica e Cícero Ferreira tomou a frente dessa questão, aglutinando as atenções, dedicando-se com devoção, buscando em Miguel Couto - um de seus colegas de turma e dos mais renomados médicos brasileiros - a compreensão, a lucidez e o aceite em patrocinar essa causa. O jornalista Alberto Torres, da Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro, sociólogo e dos espíritos mais eminentes de sua geração, insurgiu contra a fundação da Escola de Medicina em Belo Horizonte, com o argumento de que representava ideia antipatriótica e contrária aos interesses da Nação, considerando que não eram necessários médicos, nem engenheiros, nem advogados, mas técnicos para o desenvolvimento do Brasil. A defesa da Escola Médica em Minas Gerais foi assumida por Aurélio Pires que, em São Paulo, no Rio de Janeiro, em Belo Horizonte e em todos os jornais do interior, argumentava a favor da escola com lógica e clareza, o que emudeceu o sociólogo.4

Instalou-se, enfim, em 05 de março de 1911, sob os auspícios do governo, a Faculdade de Medicina, com Cícero Ferreira na diretoria, e composta pelos docentes Cícero Ribeiro Ferreira Rodrigues, Cornélio Vaz de Mello, Eduardo Borges da Costa, Olyntho Deodato dos Reis Meirelles, Honorato Alves, Hugo Furquim Werneck, Zoroastro Alvarenga, Antônio Aleixo, Samuel Libânio, Ezequiel Dias, Alfredo Balena, Octávio Machado e Aurélio Pires.

Tornava-se real o sonho que há 122 anos acalentara a esperança dos mártires da nossa história épica, com os toques e retoques próprios da luta e refrega, da derrota e vitória, da aparente submissão da colônia, que emergiu e ressurgiu a cada conflito. E que revela a alma do sertanejo forjada no batear das minerações, no planger dos campanários, nos socalcos das montanhas, no transpor dos séculos, para o empreendimento de seu destino.

A vida inventa! A gente principia as coisas, no não saber por que, e desde aí perde o poder de continuação - porque a vida é mutirão de todos, por todos remexida e temperada.1

Em sete de setembro de 1927 as Escolas de Direito, Odontologia Farmácia e Bioquímica, Medicina e Engenharia criaram a Universidade Autônoma de Minas Gerais, com o lema "incipit vita nova", e se tornou, em 1949, a UFMG.

 

OS PRIMÓRDIOS DA FACULDADE DE MEDICINA DA UFMG

Em julho de 1910 o projeto de fundação de Escola de Medicina de Belo Horizonte foi submetido por Cícero Ferreira e Cornélio Vaz de Melo à comissão constituída por Cornélio Vaz de Melo, Hugo Werneck e Zoroastro Alvarenga, para análise de viabilidade e constituição, sendo aprovado em reunião plenária de 15 de fevereiro de 1911.4,10-12

Em 05 de março de 1911 foi assinada a ata de sua criação pelos seguintes fundadores e suas respectivas cátedras: Alfredo Balena (Primeira Cadeira de Clínica Médica), Samuel Libânio (Segunda Cadeira de Clínica Médica), Cornélio Vaz de Mello (Cadeira de Anatomia Médico-Cirúrgica, Operações e Aparelhos), Eduardo Borges da Costa (Cadeira de Clínica Cirúrgica), Octávio Machado (Cadeira de Clínica Pediátrica Médica e Cirúrgica, Ortopedia e Higiene Infantil), Antônio Aleixo (Cadeira de Clínica Dermatológica e Sifilográfica), Hugo Werneck (Cadeira de Clínica Ginecológica e Obstetrícia), Cícero Ribeiro Ferreira (Cadeira de Medicina Legal), Horonato Alves (Cadeira de Clínica Oftalmológica e Otorrinolaringológica), Ezequiel Caetano Dias (Cadeira de Microbiologia), Olyntho Deodato dos Reis Meirelles (Cadeira de Farmacologia), Zoroastro Rodrigues de Alvarenga (Cadeira de Higiene). Aurélio Pires, farmacêutico, um dos principais baluartes da criação da Faculdade, não assinou a ata, mas foi incluído no quadro oficial da fundação, em exposição na sala que hoje tem o seu nome, na Faculdade de Medicina da UFMG. As assinaturas dos fundadores estão perpetuadas em bronze no saguão principal da Faculdade de Medicina da UFMG.4,10-13

Em 26 de março de 1911, 15 dias após a sessão de criação da Escola de Medicina de Belo Horizonte, foi constituída a sua diretoria provisória por seus fundadores e organizadores, sob a presidência de Cícero Ferreira e secretariada por Octávio Machado.

Em 03 de maio de 1911 foi aprovado o seu estatuto, tendo como base didático-pedagógica o ensino teórico e prático do curso da Escola de Medicina do Rio de Janeiro. Elegeu-se a diretoria definitiva com Cícero Ferreira, diretor; Cornélio Vaz de Mello, vice-diretor; e João Batista de Freitas, secretário-tesoureiro.

Em 25 de junho de 1911 foram empossados os 12 catedráticos fundadores, os diretores.

Às 15 horas de 30 de julho de 1911, foi lançada a pedra fundamental da sede da Escola Médica em área cedida do Parque Municipal, localizada na Avenida Oswaldo Cruz, similar ao modelo da Faculdade de Medicina de Paris, com a presença de enviado do Presidente da República, do Governador do Estado de Minas Gerais e de outras autoridades, especialmente seu paraninfo, o Prof. Miguel Couto.4,10-14

A Faculdade de Medicina só veio a funcionar em fevereiro do ano seguinte em prédio alugado na avenida Afonso Pena, no Palacete Thibau4,10-12, situado na esquina da avenida Afonso Pena com rua Espírito Santo, no centro de Belo Horizonte.

Em 08 de abril de 1912 foi proferida a aula inaugural da escola proferida pelo professor interino de Física Médica, Zoroastro Alvarenga, sobre as "Coordenadas estáticas do corpo humano".

O primeiro diretor empossado em 1911, Cícero Ribeiro Ferreira, catedrático de Medicina Legal, exerceu o cargo até 1920, ano de seu falecimento.

Em 1918, por ocasião da graduação de sua primeira turma, as cátedras e suas respectivas matérias eram exercidas pelos seguintes professores: Alfredo L. Pimenta (Física Médica), Francisco de Paula Magalhães Gomes (Química Médica), Henrique Marques Lisboa (História Natural), David Corrêa Rabelo (Anatomia Descritiva), Octaviano Ribeiro de Almeida (Anatomia Descritiva e Médico-Cirúrgica), Otávio Coelho Magalhães (Fisiologia), Roberto de Almeida Cunha (contratado) (Histologia e Anatomia Patológica), Aurélio Pires (Farmacologia e Arte de Formular), Cornélio Vaz de Melo (Anatomia Médico-Cirúrgica, Operações e Aparelhos), Ezequiel Caetano Dias (Microbiologia), Eurico de Azevedo Vilela (Clínica Cirúrgica, Primeira Cadeira), Zoroastro Viana Passos (Clínica Cirúrgica, Segunda Cadeira), Alfredo Balena (Clínica Médica, Primeira Cadeira), Samuel Libânio (Clínica Médica, Segunda Cadeira), Antônio Aleixo (Clínica Dermatológica e Sifilográfica), Honorato Alves (Clínica Oftalmológica), Lineu Silva (substituto) (Clínica Oftalmológica), Olyntho dos Reis Meirelles (Terapêutica), Cândido de Melo Leitão (Clínica Pediátrica), Renato B. Machado (Clínica Otorrinolaringológica), Júlio Godoi Tavares (substituto) (Terapêutica e Farmacologia), Zoroastro Alvarenga (Higiene), Hugo Furquim Werneck (Clínica Ginecológica), Carlos Alberto Pires de Sá (Clínica Obstétrica), Cícero Ferreira (Medicina Legal), Álvaro Ribeiro de Barros (Clínica Psiquiátrica).10-17

A vida inventa! A gente principia as coisas, no não saber por que, e desde aí perde o poder de continuação - porque a vida é mutirão de todos, por todos remexida e temperada. Tem uma verdade que se carece de aprender, do encoberto, e que ninguém não ensina: o beco para a liberdade se fazer. Esses Gerais em serras planas, beleza por ser tudo tão grande, respondo a gente pequenino. O sertão é uma espera enorme. O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem. O que Deus quer é ver a gente aprendendo a ser capaz de ficar alegre a mais, no meio da alegria, e inda mais alegre ainda no meio da tristeza! Só assim de repente, na horinha em que se quer, de propósito - por coragem. A liberdade é assim movimentação. Como tudo nesta vida carece de direito se acertar. Só aos poucos é que o escuro e claro. O que os meus olhos não estão vendo hoje, pode ser o que eu vou ter de sofrer no dia depois-d'amanhã.1

Dentro de mim eu tenho um sonho, e mas fora de mim eu vejo um sonho.1

 

REFERÊNCIAS

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2. Pedroso ERP. Os Desafios da Clínica e do clínico: Para onde vai a Clínica neste século? Rev Med Minas Gerais. 2001;11:116-21.

3. Pedroso ERP. Doenças emergentes e reemergentes. Rev Med Minas Gerais. 1999;9(4):153-60.

4. Giffoni OC. Uma paisagem no tempo (resumo histórico da Faculdade de Medicina de Belo Horizonte). Conferência pronunciada na Sociedade Paulista de História da Medicina. São Paulo: SPHM; março de 1944.

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