RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 20. 2

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Artigo Original

Estudos das desigualdades na assistência hospitalar pela análise de correspondências

Studies on hospital care inequalities by correspondence analysis

Juan Stuardo Yazlle-Rocha1; Edson Zangiacomi Martinez1; Geraldo Luiz Moreira Guedes2

1. Departamento de Medicina Social. Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto. Universidade de São Paulo. Ribeirão Preto, SP - Brasil
2. Departamento de Medicina Preventiva e Social da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, MG - Brasil

Endereço para correspondência

Juan Stuardo Yazlle Rocha
Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto Departamento de Medicina Social Universidade de São Paulo - USP
Av. Bandeirantes, 3900
Ribeirão Preto, SP - Brasil CEP: 14049-900
Email: jsyrocha@fmrp.usp.br

Recebido em: 19/05/2010
Aprovado em: 04/06/2010

Instituição: Faculdade de Medicina de Riberão Preto / USP

Resumo

OBJETIVO: estudar as diferenças da morbidade hospitalar entre grupos sociais, considerando a ocupação do paciente e a fonte de financiamento da internação.
MÉTODOS: estudo transversal, realizado com a população economicamente ativa residente e hospitalizada em Ribeirão Preto/SP, nos anos de 1998 e 2006, considerando a ocupação (profissionais, técnicos, qualificados não-manuais, qualificados manuais, semiqualificados e não-qualificados) e as categorias de internação (baseadas na fonte de financiamento: particulares, pré-pagamento e sistema público de saúde). A pesquisa utiliza a técnica de análise de correspondências.
RESULTADOS: foram estudadas 112.703 internações ocorridas nos anos de 1998 e 2006, segundo a categoria internação e a ocupação, sendo 35,8% delas de população economicamente ativa; aproximadamente a metade era do sistema público de saúde (SUS) e os outros cobertos por planos de saúde (46%) ou particulares (4,5%). Houve forte associação entre a classe social e o sistema de financiamento da assistência - 95% da variabilidade encontrada são explicados por essa dimensão. A morbidade hospitalar distribui-se desigualmente entre os sistemas de financiamento da assistência - 73% da variabilidade encontrada na distribuição da morbidade são explicados por essa variável. Predominam, entre os pacientes do sistema público, os transtornos mentais, doenças infecciosas e parasitárias, malformações congênitas, doenças do sistema nervoso, lesões e envenenamentos, doenças dos olhos e anexos e doenças do sangue. Além disso, a análise de correspondência foi capaz de explicar - mediante o conceito de inércia - a importância das variáveis selecionadas no estudo das desigualdades.

Palavras-chave: Desigualdade em Saúde; Assistência Hospitalar; Avaliação de Serviços de Saúde; Serviços Hospitalares; Inquéritos de Morbidade.

 

INTRODUÇÃO

A relação entre as condições de vida e trabalho e a saúde ocupou boa parte do pensamento da medicina social e saúde pública no último quarto do século XX. Foi no final desse período que surgiram os primeiros trabalhos discutindo as metodologias de estudo das desigualdades1, o que já era conhecido em países do Primeiro Mundo a partir da publicação no Reino Unido do Black Report2 e que revelou que as políticas sociais compensatórias não eram capazes de superar a desigualdade no adoecer, nas respostas aos tratamentos e na mortalidade. Na Assembleia Mundial da Saúde, em 2004, o Diretor Geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Lee Jong-Wook, pediu a criação da Comissão sobre Determinantes Sociais da Saúde com o propósito de gerar "recomendações baseadas na evidência disponível de intervenções e políticas apoiadas em ações sobre os determinantes sociais que melhorem a saúde e diminuam as iniquidades sanitárias"3 (tradução dos autores)). O tema das desigualdades na saúde deixa de ser objeto acadêmico e passa a integrar de vez a agenda de organismos internacionais de saúde e de governos nacionais.3,4 Nesses documentos são apresentados diferentes modelos explicativos - como o de Dahlgren e Whitehead5 - explicitando "os mecanismos através dos quais os determinantes sociais de saúde afetam os resultados na saúde". No Brasil, a Comissão Nacional sobre Determinantes Sociais da Saúde foi criada por decreto presidencial em 2006 e apresentou seu relatório em 20084 baseado principalmente em dados censitários e pesquisas por amostra de domicílios. Com referência à assistência à saúde, o relatório destaca iniquidades no acesso a serviços - consultas, internações, assistência ao parto - e procedimentos - mamografias - segundo renda, anos de estudo, escolaridade, regiões brasileiras.

Estudos acerca da desigualdade na assistência baseados em dados populacionais permitem elaborar coeficientes e fazer comparações como diferenças segundo ocupação, renda e outros fatores. Borrel6 apresentou um levantamento dos métodos e indicadores utilizados nos estudos das desigualdades sociais em saúde e, para o estudo de desigualdades em serviços de saúde, propôs o índice de dissimilaridade que compara a proporção da população em cada grupo socioeconômico e a proporção de doença ou saúde no mesmo grupo. Essa medida permitiria conhecer o percentual de todos os casos que deveriam ser redistribuídos para obter a mesma taxa de morbidade/mortalidade para todos os grupos socioeconômicos.

Nunes et al.7 discutem as medidas de desigualdades baseadas nas diferenças absolutas de riscos (risco atribuível) e relativas (razão entre riscos ou risco relativo) para dados em bases populacionais; citam, também, o índice de dissimilaridade como a diferença entre a distribuição observada e a esperada se todos os grupos apresentassem o mesmo risco. Quando se dispõe de dados populacionais de utilização de serviços - geralmente obtidos por entrevistas em desenhos amostrais dirigidos - é possível realizar estudos de regressão logística ou regressão binomial, estabelecer graus de correlação entre a utilização e variáveis sociais como nível de instrução, renda, sistemas de cobertura da assistência.8,9,10

Em anos recentes há crescente interesse pela promoção da equidade na saúde que pode ser ilustrado com a criação, em 1996, da Sociedade Internacional pela Equidade em Saúde (ISEqH) e as suas Conferências Internacionais: Havana (2000) e Toronto (2002). Nesta última foi aprovada a Carta de Toronto sobre a Equidade em Saúde, assinalando que a desigualdade no acesso a serviços e no estado de saúde (outcomes) não se restringe a qualquer sistema econômico ou de saúde e salienta que "a equidade na saúde é construída com pessoas que têm acesso aos recursos e à capacidade e ao poder que precisam para agir sobre as circunstâncias de suas vidas que determinam sua saúde" (tradução dos autores).

Assim, a equidade na saúde referir-se-ia às diferenças (entre grupos ou populações) que são desnecessárias, reduzíveis, indesejadas e injustas.11 Schneider et al.12 publicaram revisão dos métodos para medir as desigualdades, destacando que os indicadores produzidos devem atender a critérios de validade - medir a direção e a força da associação; precisão - devem permitir calcular os intervalos de confiança das estimativas e flexibilidade - permitir calcular cifras absolutas e relativas. Embora eles enfatizem várias metodologias baseadas em dados populacionais - não aplicáveis a estatísticas de serviços de saúde - apresentam também o índice de dissimilitude definido como a proporção de casos que deveriam ser redistribuídos para obter o mesmo coeficiente em todos os grupos estudados. Yazlle-Rocha e Simões13,14 aplicaram o cálculo de dissimilaridades para estudar a desigualdade na assistência hospitalar estimando a proporção de casos de uma dada doença em cada subsistema assistencial sobre a proporção daquele subsistema no total de internações, chamando o valor obtido de índice de frequência relativa. Além da aplicação de técnicas específicas para o estudo de desigualdades em serviços15, muitas vezes é possível destacar diferenças pelas simples diferenças de proporções.14

O presente estudo tem por objetivo descrever as diferenças na morbidade hospitalar entre grupos sociais, segundo a ocupação do paciente e a fonte de financiamento da internação em Ribeirão Preto, SP, nos anos de 1998 e 2006, a partir da análise de correspondências.16 Essa técnica estatística de análise multivariada permite medir e visualizar, de modo gráfico, o grau de associação entre um conjunto de categorias de variáveis qualitativas; neste caso, entre a categoria da internação e o tipo de ocupação do paciente e entre a categoria da internação e o respectivo capítulo da CID-10 (Classificação Internacional de Doenças).

 

MÉTODOS

Este é um estudo transversal, baseado em população composta de todos os pacientes egressos da rede hospitalar do município de Ribeirão Preto, registrados pelo Centro de Processamento de Dados Hospitalares (CPDH) do Departamento de Medicina Social da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP/USP), de 1998 e 2006. Todos os pacientes eram residentes em Ribeirão Preto (total de 112.703 hospitalizações). Atendendo ao critério de inclusão no estudo, foram selecionados os registros de pacientes com inserção na população economicamente ativa (PEA).

Ribeirão Preto, cidade situada na região nordeste do estado de São Paulo, a 310 Km da capital, é importante centro administrativo, de serviços - educação e saúde principalmente - e de produção agroindustrial-centrada hoje no açúcar, álcool, laranja e café. Com população estimada, em 2009, em 563.107 habitantes (Fundação Seade), apresentava 97,5% dos domicílios com ligação na rede de água, 94,9% ligados na rede de esgoto e 99% com coleta de lixo. É classificado como pertencente ao grupo I no índice paulista de responsabilidade social: municípios com melhor padrão de desenvolvimento humano, com altos índices de riqueza, longevidade e escolaridade (Assembleia Legislativa SP, IPRS). É referência regional e nacional na área de saúde. Em 2007, a cidade possuía 13 hospitais com 2.128 leitos, sendo dois psiquiátricos e 11 gerais e mais da metade da sua população era usuária de planos privados de saúde.17,18

De acordo com os dados da Secretária Municipal de Saúde de Ribeirão Preto, em 2006, a taxa de mortalidade geral era de 6,1 por 1.000 habitantes residentes no município e a mortalidade infantil de 10,1. As principais causas de mortalidade por capítulos da CID 10, naquele ano, foram: Cap. XI - Doenças do aparelho circulatório (31,1%), Cap. II - Neoplasias (20,4%), Cap. XX - Causas externas de morbidade e mortalidade (19,5%), Cap. X - Doenças do aparelho respiratório (12,7%).

O CPDH da FMRP/USP é um sistema local e subregional de informações hospitalares, que cobre todos os hospitais de saúde - os 13 hospitais da cidade e mais 22 hospitais nos municípios da região - totalizando cerca de 4.800 leitos hospitalares. O centro oferece assessoria aos hospitais a ele vinculados, visando à melhoria das informações do serviço de arquivo médico e estatística. Os dados são coletados de cada hospital com base na folha de alta que é preenchida por ocasião do egresso do paciente. A partir de 1998, o Centro iniciou a utilização da CID-10 na codificação das doenças, incluindo, além do diagnóstico principal - a causa da internação -, até quatro diagnósticos associados, dois a mais dos registrados até essa data.

Para estudar os pacientes hospitalizados do ponto de vista da sua condição socioeconômica, eles foram agrupados segundo dois critérios: a fonte do financiamento da assistência hospitalar e a ocupação. A forma de financiamento permitiu classificar os pacientes em três grandes grupos: particular, sistemas de pré-pagamento (ou planos de saúde) e Sistema Único de Saúde (SUS). Para estudar a ocupação, Yazlle-Rocha et al.17 desenvolveram uma classificação dos pacientes com inserção na população economicamente ativa a partir da ocupação informada no ato da internação hospitalar. Nesse trabalho, a ocupação informada era classificada em seis estratos de ocupacionais, a saber: profissionais, técnicos, qualificados não-manuais, qualificados manuais, semiqualificados e não-qualificados, seguindo o modelo do Registrar General na Inglaterra.2 Para a presente pesquisa, foi utilizada uma versão modificada da utilizada por Guedes19, baseada ainda na Classificação Brasileira de Ocupações (CBO) expandida a cinco dígitos - melhorando a precisão da estratificação social dos pacientes. Foi feita a comparação da frequência dos grupos de morbidade estudando as seguintes variáveis: a categoria da internação - particular, pré-pagamento e SUS; a estratificação social - profissionais, técnicos, qualificados não-manuais, qualificados manuais, semiqualificados e não-qualificados; a idade - média e mediana; a duração da internação - média e mediana; e a condição de saída - vivo ou morto.

Dadas as condições especiais existentes no município de Ribeirão Preto - nível de recursos, sistema de informações, cobertura da demanda, população de referência bem caracterizada - as análises das hospitalizações podem ser realizadas em bases populacionais, permitindo o cálculo de coeficientes, índices e indicadores de risco atribuível e relativo entre subgrupos da população assistida.

Para a digitação e a confecção do banco de dados, foi utilizado o programa Epi-Info, versão 6.04b, de domínio público. A análise de correspondências (AC) é técnica estatística exploratória utilizada para descrever simultaneamente as associações ou similaridades entre as possíveis categorizações de variáveis qualitativas. A AC16,18,20,23, quando aplicada aos dados deste estudo, indica quais são os itens associados a cada diferente capítulo da CID-10 ou ocupação do paciente e a categoria da internação em um gráfico cartesiano denominado mapa de correspondências. Considerando que as internações são classificadas em três possíveis categorias (particular, pré-pagamento e SUS), o conjunto dos eixos do mapa de correspondências gerado pela AC define um espaço bidimensional (o número de dimensões é dado pelo número de categorias menos 1). As proximidades entre as posições das categorias de cada variável nesse plano podem ser interpretadas como associações. Na AC, a variação total dos dados é denominada inércia, sendo essa variação decomposta em cada um dos dois eixos (ou dimensões) do gráfico. Assim, a inércia associada a cada dimensão do gráfico nos informa qual é a proporção da variação total que aquele eixo está explicando, o que está relacionado à sua importância relativa. Para comparação entre os dados de internações de 1998 e 2006, foi utilizada uma técnica de AC proposta por Pamplona22 para dados com estrutura de grupo. Essa técnica permite a obtenção de mapas de correspondência para diferentes classes (no presente estudo, para os dois períodos distintos), mas mantendo fixas a inércia e a posição das categorias de internação em cada um desses gráficos, o que permite a comparabilidade entre eles. Todas as análises foram desenvolvidas com o programa de computador SAS versão 9.

 

RESULTADOS

Nos anos de 1998 e 2006 ocorreram 112.703 internações nos hospitais de Ribeirão Preto de pessoas residentes no município (55.450 e 57.253, respectivamente). Daquele total, 40.265 (35,8%) eram de pacientes com inserção na população economicamente ativa (PEA) e 72.438 (64,2%) estavam fora da PEA, confirmando achados anteriores de que praticamente dois terços das internações eram de crianças e idosos.13 Entre pacientes inseridos na PEA observou-se tendência à diminuição da participação do SUS na assistência aos trabalhadores, já detectada anteriormente - era de 57% em 199313 e de 49,4% em 199614 - 51,2% em 1998 e 47,2% em 2006.

Na Tabela 1 é apresentada a distribuição das hospitalizações de pacientes com inserção na PEA segundo o nível ocupacional e a categoria da internação. Observa-se que 79,5 e 79,8% dos profissionais, respectivamente, em 1998 e 2006, utilizaram sistemas privados de hospitalização; essa proporção de usuários de sistemas privados decresce à medida que descemos na escala de ocupações; os trabalhadores qualificados manuais permanecem entre os que utilizam majoritariamente os sistemas privados (51,3% e 52,3%) - sendo que nos estudos antes citados as proporções eram de 56 e 46,9% de usuários do SUS em 1993 e 1996. Em 1998 e 2006 o SUS foi usado majoritariamente pelos pacientes semiqualificados (61,5 e 65,9%) e não-qualificados (79,2 e 80,7%), confirmando a tendência do SUS a vir a constituir-se no sistema de assistência hospitalar da população de baixa renda. Até aqui, foi realizada a avaliação das desigualdades pelos métodos tradicionais, no presente caso a comparação entre proporções, indicando ou mais ou menos associação entre as variáveis; quando a comparação se dá entre indicadores com base populacional (mortalidade, por exemplo), a diferença direta entre coeficientes já expressa a desigualdade. No caso da utilização da análise de correspondência há importante informação a mais, que é o "peso" de cada variável considerada (variância) na distribuição observada. Assim, a Figura 1 mostra os mapas de correspondências gerados da análise dos dados apresentados na Tabela 1, para os anos de 1998 e 2006, sendo que as coordenadas das ocupações e categorias de internação nas dimensões 1 e 2 dos mapas e as respectivas contribuições parciais à inércia são mostradas na Tabela 2. As contribuições parciais são as proporções da variância (inércia) de cada eixo explicadas por cada classe das variáveis de interesse (ocupações ou categorias de internação). A dimensão 1 responde por quase toda a variação total dos dados (95%). A dimensão 1 - a classificação dos pacientes pela ocupação - discrimina à esquerda dos gráficos as ocupações mais associadas à internação pelo SUS e à direita as ocupações associadas às internações particulares e pré-pagamento, o que já é conhecido pelas análises tradicionais. Neste caso, a análise de correspondência ilustra esse fato graficamente: nos dois períodos, as ocupações nãoqualificadas e semiqualificadas estão mais associadas ao SUS, enquanto que as ocupações qualificadas manuais, não-manuais e intermediárias são mais associadas às internações pré-pagamento. As ocupações profissionais aparecem mais intensamente associadas às internações particulares em 2006 do que em 1998.

 

 

 


Figura 1 - Visualização das associações entre o tipo de ocupação e a categoria da internação, por intermédio dos mapas gerados pela análise de correspondências

 

 

 

A Tabela 2 apresenta a distribuição geral total das hospitalizações segundo os Capítulos da CID-10 e a categoria das internações em 1998 e 2006. Ao analisar a distribuição das causas da hospitalização segundo os capítulos da CID e a categoria das internações, observa-se que, na maioria dos casos, as proporções diferem dos valores esperados na hipótese da distribuição proporcional. Esses valores discrepantes podem ser ilustrados observando-se o capítulo V - Transtornos Mentais: para a proporção geral de hospitalizações SUS de 55 e 60,3% foi observada frequência de 94,3 e 96%, respectivamente, em 1998 e 2006, indicando que o SUS é praticamente o único sistema que recebe internações de pacientes com transtornos mentais. As discrepâncias ou dissimilaridades entre as três categorias de internação devem-se à seletividade positiva ou negativa dos sistemas prestadores de assistência, que têm ou não vantagem em atender determinados agravos, e/ou à frequência de ditos agravos nos grupos populacionais específicos usuários daqueles sistemas de saúde. Os principais capítulos CID com proporções de internações SUS muito maiores do que o esperado (55 e 60,3) são: V - Transtornos Mentais (94,3 e 96%), I - Algumas Doenças Infecciosas e Parasitárias (69,3 e 63,3%) e XVII - Malformações Congênitas (67,8 e 73,3%). Nas internações custeadas por planos de saúde ou pré-pagamento, os principais capítulos que excederam os valores esperados (42,5 e 36,2%) foram: XIV - Doenças do Aparelho Geniturinário (56,3 e 46,9%), XIII - Doenças do Sistema Osteomuscular (56 e 56,1%) e XVI - Algumas Afecções Perinatais (54,5 e 40,1%). Entre as internações particulares, os principais capítulos da CID que excederam os valores esperados (2,5 e 3,5%) foram: VII - Doenças do Olho e Anexos (7,6 e 8,1%), IV - Doenças Endócrinas da Nutrição e Metabolismo (5,5 e 18,2%) e XIV - Doenças do Aparelho Geniturinário (5,2 e 9,8%).

 


Figura 2 - Visualização das associações entre os capítulos da CID e a categoria da internação, por intermédio do mapa gerado pela análise de correspondências

 

A aplicação da análise de correspondência está exibida na Figura 2, que mostra os mapas de correspondências gerados da análise dos dados apresentados na Tabela 3 para os anos de 1998 e 2006, sendo que as coordenadas capítulos da CID e categorias de internação nas dimensões 1 e 2 dos mapas e as respectivas contribuições parciais à inércia são mostradas na Tabela 4. Verifica-se que a dimensão 1 - morbidade hospitalar segundo capítulos da CID - separa à esquerda do gráfico os capítulos da CID mais associados à internação pelo SUS, dos capítulos da CID associados às internações particular e pré-pagamento. Essa dimensão é responsável por 73% da inércia, ou seja, quase três quartos da variação total dos dados é explicada por esse eixo do gráfico. Cada capítulo da CID é representado no mapa de correspondência por números romanos (conforme Tabela 2), sendo que a correspondência de um capítulo com as categorias de internação é representada pela sua distância no gráfico. Assim, os capítulos da CID mais associados à internação pelo SUS nos dois períodos são I, III, VI, VII, XV, XVII, XIX e XXI, com destaque ao capítulo V (transtornos mentais e comportamentais). Observase que a posição relativa do rótulo associado ao capítulo XXI (fatores que influenciam o estado de saúde e o contato com os serviços de saúde) é distinta entre os mapas associados aos anos de 1998 e 2006. Indicam que em 2006 as internações associadas ao capítulo XXI foram mais associadas ao SUS no ano de 2006 do que no ano de 1998, quando suas frequências em internações particulares e pré-pagamento eram maiores. A AC mostra que outros capítulos da CID cujas internações migraram mais intensamente para o SUS em 2006 eram o VII (doenças do olho e anexos) e XIX (lesões, envenenamento e algumas outras consequências de causas externas), ou seja, os capítulos cujos rótulos deslocaram-se para posições localizadas mais à esquerda do mapa.

A Figura 2 também destaca que o capítulo IV da CID (doenças endócrinas, nutricionais e metabólicas) é aquele com mais associação com as internações particulares no ano de 2006, diferentemente do que ocorria no ano de 1998. Os capítulos II, XI, XIII, XIV, XVI, que aparecem à esquerda do gráfico relativo ao ano de 1998, se associam à categoria de internação por pré-pagamento naquele período. E, ainda em 1998, os capítulos IV, VIII, IX, X, XII e XVIII estavam associados tanto às internações pelo SUS quanto pelo pré-pagamento. Para o ano de 2006, verifica-se mais associação do capítulo XIV (doenças do aparelho geniturinário) com as internações particulares, enquanto os capítulos XI e XIII continuam bastante associados às internações por pré-pagamento e os capítulos II, XVI e XVIII tiveram aumento de internações no SUS.

 

DISCUSSÃO

Observa-se que as internações pelo SUS foram responsáveis por 55,0 e 60,3% do total em 1998 e 2006; e de 61,6 e 51,7% em 1993 e 1996, respectivamente (Tabela 3). As oscilações nas proporções de hospitalizados pelo SUS se acompanham de oscilações no sentido inverso das internações por sistemas de pré-pagamento e particulares - fenômeno de "gangorra" já conhecido, que faz com que a expansão da cobertura pelo SUS provoque a diminuição da assistência nos sistemas privados. A essa característica da cobertura assistencial, em geral, deve-se acrescentar a seletividade da demanda e cobertura de serviços - tanto pacientes como prestadores "escolhem" ou demandam sistemas assistenciais de forma diferenciada; não fosse assim, as hospitalizações por diferentes causas de internação seguiriam as mesmas proporções gerais antes descritas. As diferenças encontradas sugerem que pode haver demanda reprimida na assistência pelos planos privados a alguns agravos, resultando na "migração" desses pacientes para o sistema público, ou vice-versa. Pode-se aventar que a elevada concentração de determinados grupos diagnósticos, acima do valor esperado na hipótese da homogeneidade, em pacientes SUS/não-SUS, seria consequência, de um lado, da alta prevalência daqueles problemas de saúde nos grupos populacionais respectivos e, de outro, da denominada seletividade negativa para o SUS.4 Isto faz com que o sistema público de saúde seja responsável pela cobertura dos pacientes mais carentes financeiramente, mais complexos e de assistência mais onerosa. Deve-se lembrar que a regulamentação dos planos de saúde - feita pela Lei 9.656 de julho de 1998, que instituiu a modalidade de plano com cobertura total - só entrou plenamente em vigor em janeiro de 1999.

Saltman23 refere que a desigualdade na saúde vem aumentando no lugar de diminuir e chama a atenção para os fatores intersetoriais, que exercem mais influência do que somente os serviços de saúde. A pesquisa de Dahlgren, citada por Saltman23, realça que as fontes de iniquidade são diferentes entre as classes sociais; para as classes médias, as causas da baixa saúde são predominantemente comportamentais, enquanto que entre as classes sociais mais baixas predominam fatores de natureza estrutural - como habitação, educação, emprego, nutrição, etc. Desta maneira, é importante assinalar não apenas a associação entre fatores presentes nas condições de desigualdade, como também o grau de importância de cada um na determinação da iniquidade.

Os resultados aqui apurados são compatíveis com outros estudos24-26, que mostram que a posição do indivíduo na estruturação social é importante preditor de necessidades de saúde. Por exemplo, Travassos et al.17 estudaram a equidade nos serviços de saúde em duas dimensões, a geográfica e a social, demonstrando a significativa complexidade do sistema de saúde brasileiro, caracterizado por profundas desigualdades. E, ainda, ao estudar a desigualdade social em saúde e na utilização dos serviços de saúde entre os idosos de seis cidades latino-americanas, Noronha e Andrade27 ressaltaram que grupos com alta escolaridade são mais favorecidos, sendo que em cidades que pertencem a países cujos indicadores sociais são melhores, a desigualdade social em saúde é mais baixa.

A aplicação da análise de correspondência ao estudo das hospitalizações em Ribeirão Preto-SP, nos anos de 1998 e 2006, permitiu reiterar a constatação3 de que existe polarização das internações de indivíduos de alta renda, que utilizam predominantemente o sistema privado de assistência, e outro constituído pelos trabalhadores de baixo nível social, que usam maciçamente o SUS. E, ainda, que a categoria ocupação dos pacientes explica 95% da variabilidade observada nessa distribuição.

A distribuição da morbidade hospitalar, por capítulos da CID-10, revelou algumas diferenças ou dissimilaridades, apresentando frequência relativa de doenças acima da esperada - entre pacientes do SUS - de transtornos mentais, algumas doenças infecciosas e parasitárias, malformações congênitas, doenças do sistema nervoso e lesões e envenenamentos. Estes achados caracterizam as desigualdades na assistência médico-hospitalar, compatível com a noção de que os pacientes de níveis ocupacionais de baixa renda na escala social estão sujeitos a mais desgaste, mais exposição a riscos e mais gravidade e complexidade das doenças. A AC aplicada no modelo de estudo permitiu destacar que 73% da variabilidade observada se devem à dimensão 1, isto é, aos capítulos da CID.

 

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