RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 20. 2

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Artigo Original

Olhe para mim: você sabe quem eu sou?

Look at me: do you know who I am?

Elza Machado de Melo

Doutora em Medicina Preventiva e Social. Professora do Departamento de Medicina Preventiva e Social da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais - DMPS/FM/UFMG. Coordenadora do Núcleo de Promoção de Saúde e Paz/DMPS/FM/UFMG, Belo Horizonte, MG - Brasil

Endereço para correspondência

Av. Alfredo Balena, 190 - Sala: 810, B: Santa Efigênia
Belo Horizonte, MG - Brasil, CEP: 30.130.100
Email: elzamelo@medicina.ufmg.br

Recebido em: 19/05/2010
Aprovado em: 04/06/2010

Instituição: Departamento de Medicina Preventiva e Social da Faculdade de Medicina da UFMG

Resumo

A violência é dos mais graves problemas de saúde da atualidade e assume especial importância em se tratando de adolescentes, entre os quais representa a principal causa de morte e adoecimento. O objetivo deste trabalho é estudar o comportamento violento entre adolescentes do Aglomerado Urbano Morro das Pedras e a sua relação com o contexto em que vivem. A metodologia, qualiquantitativa, é composta de dois procedimentos, questionários autoaplicáveis e grupos focais. Os resultados mostraram que 31,0; 21,2; e 11,2% dos adolescentes de 10 a 14 anos, respectivamente, já bateram ou feriram alguém ou praticaram alguma violência. Esses percentuais para os adolescentes de 15 a 19 anos de idade foram de: 23,2; 28,4 e 32,6%, respectivamente. Os dados mostraram também que entre 10 e 14, e 15 e 19 anos de idade, respectivamente, 53,4 e 68,5% possuíam alguém desempregado em casa; e 23 e 40,1% trabalhavam. Entre os adolescentes de 10 a 14 anos, 18,3; 15,7 e 34,5% já apanharam em casa até ficaram machucados; apanharam na rua; e conviveram com brigas muito frequentes na família. Entre os de 15 a 19 anos, esses percentuais subiram para 20,8; 20,4; e 36,9%, respectivamente. Os dados revelaram também que os adolescentes são vítimas da exclusão social, do preconceito, da violência institucional e da violência do tráfico. Conclusão: os comportamentos violentos relacionaram-se significativamente com o contexto de vida em que viviam, o que é amplamente corroborado pela literatura, portanto, mais do que ninguém, precisam de cuidados e merecem receber novo olhar.

Palavras-chave: Adolescência; Violência; Saúde.

 

INTRODUÇÃO

A Organização Mundial de Saúde (OMS)1 reconhece que a violência provoca por ano a morte de mais de 1,6 milhão de pessoas e mais de 16 milhões de internações hospitalares. Os dados no Brasil também são contundentes, isto é, em 2006 morreram 49.704 pessoas por homicídio e 37.249 por eventos no trânsito; entre 1990 e 2006, 665.199 foram a óbito por homicídios; 111.302 por suicídio e 515.685 por acidentes e violências no trânsito e nos transportes, perfazendo 1.292.186 mortes. De 1990 a 2007 foram registradas 7.309.607 internações por causas externas.2 A gravidade da situação é evidente e, apesar disso, ela só representa a ponta do iceberg, pois a esses números correspondem outros menos visíveis3,4,5 envolvendo lesões leves que não demandam cuidados de saúde nem são notificadas ou que permanecem ocultas, em virtude dos padrões culturais ou dos vínculos existentes entre vítima e agressor, como é o caso da violência doméstica6, ou em virtude do medo, quando está envolvido o tráfico de armas e de drogas. Existem ainda aquelas condições que são difíceis de medir e até mesmo de perceber, como a violência psicológica.3 É grande, portanto, o impacto da violência na saúde individual e nos serviços de saúde e sociedade, acumulando danos de toda ordem, físicos, psicológicos, econômicos e sociais.

Os adolescentes são muito vulneráveis a essa situação. As causas externas são as maiores responsáveis pelas mortes nessa faixa etária, representando 67 a 70% do total.7 A adolescência, se comparada com outras faixas etárias, ocupa posição de destaque em relação às mortes por homicídios, sendo de 45,6/100.000 habitantes em 2006, atrás apenas da faixa etária entre 20 e 29 anos.8 As internações por causas externas ocuparam, em 20079, a primeira posição, excetuadas as condições relativas a gravidez, parto e puerpério. E se se considerar o conjunto das violências que se disseminam pelo cotidiano, então o impacto no adolescente é ainda mais forte, pois, contraditoriamente ao fato de estarem numa fase da vida que demanda o estabelecimento de relações saudáveis com o mundo, sofrem os efeitos das formas estruturais de violência, que comprometem o seu futuro e impedem a realização do seu potencial criativo.10 São os adolescentes os mais diretamente acometidos pela falta de qualidade do ensino e pelo despreparo da escola em lidar com práticas violentas como o bullying, a exclusão, o preconceito.11,12 São ainda vítimas de exploração sexual, do turismo sexual, da violência doméstica nas suas várias formas, inclusive de abuso sexual, e vítimas preferenciais da violência na comunidade e policial.8,10

O objetivo deste trabalho foi investigar os comportamentos violentos entre adolescentes do Aglomerado Urbano Morro das Pedras, em Belo Horizonte, relacionando-os ao contexto em que vivem. Este projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

 

METODOLOGIA

Trata-se de estudo qualiquantitativo composto de dois procedimentos metodólogicos, a saber, questionários autoaplicáveis e grupos focais, realizado em 2008, em quatro escolas públicas do Aglomerado Urbano Morro das Pedras, em Belo Horizonte. Participaram os adolescentes definidos pela OMS como pessoas incluídas na faixa etária entre 10 e 19 anos. A amostra referente aos questionários foi representativa de cada escola e calculada com erro de 5%. Quanto aos grupos focais, foram realizados seis em cada escola, um por turno - manhã, tarde e noite - e por faixa etária - de 10 a 14 anos e 15 a 19 anos. O questionário foi elaborado pela equipe do Núcleo de Promoção de Saúde e Paz do Departamento de Medicina Preventiva e Social (DMPS) da Faculdade de Medicina (FM) da UFMG e testado com adolescentes de diferentes idades, na forma de entrevista individual sobre seu entendimento acerca de cada uma das questões. Os questionários foram aplicados em turmas de cada turno, selecionadas por sorteio. Para sua análise, foi utilizado o SPSS. O grupo focal, conduzido segundo roteiro previamente estabelecido, foi organizado a partir do recrutamento de alunos voluntários oriundos das diferentes turmas existentes em cada turno. As informações dos grupos focais foram gravadas, transcritas e analisadas a partir de categorias geradas pela confluência dos achados empíricos com as premissas teóricas do estudo, no presente caso, relacionadas principalmente à discussão do contexto na produção da violência.

 

RESULTADOS

Serão apresentados os dados quantitativos originados pelos questionários autoaplicáveis e as informações geradas pelos grupos focais. Os dados qualitativos serão incorporados diretamente à discussão.

Foram aplicados ao todo 580 questionários, mas houve perdas aproximadas de 10%, decorrentes, principalmente, do fato de terem participado algumas pessoas com mais de 19 anos de idade. Responderam ao questionário 233 adolescentes da faixa etária de 10 a 14 anos e 290 de 15 a 19 anos, perfazendo o total de 523 adolescentes. Foram 44,8 e 55,2% dos gêneros masculino e feminino, respectivamente. Os dados sobre a escolaridade dos genitores revelaram que 8,8 e 10,9; e 2,1 e 1% dos pais e das mães, respectivamente, nunca frequentaram a escola e nunca chegaram ao nível superior. Do total de adolescentes, 50 e 79,1% moravam, respectivamente, com o pai e com a mãe. Os resultados sobre os percentuais referentes às variáveis estudadas relativas às condições de vida existentes e aos comportamentos violentos adotados pelos adolescentes estão nas Tabelas 1 e 2.

 

 

 

 

Foram encontradas várias associações estatisticamente significativas entre comportamento violento e condições de vida ou contexto em que viviam os adolescentes, algumas delas mostradas nas Tabelas 3 e 4.

 

 

 

 

DISCUSSÃO

Para a Teoria da Ação Comunicativa de Habermas, a sociedade deve ser concebida segundo dois âmbitos, mundo da vida, representado pela esfera privada e pela esfera pública, e sistema, representado pela economia e pelo poder adminstrativo. O Núcleo de Promoção de Saúde e Paz do DMPS/FM/UFMG adota essa teoria, em especial a tese da colonização do mundo da vida pelo sistema para explicar a violência tão fortemente presente nas sociedades contemporâneas. Os processos interativos mediados pela linguagem entre sujeitos, que se reconhecem reciprocamente, são, segundo essa tese, substituídos pelos imperativos sistêmicos operados por meio do dinheiro e do poder. Na lógica econômica capitalista, o trabalho que é práxis criadora se transforma em praxis alienante,13 produzindo exploração, subordinação, degradação humana e ambiental. Na lógica do poder e da dominação, o cidadão transforma-se em cliente e a invasão do mundo da vida por essas lógicas provoca, no primeiro caso, a disseminação, na esfera privada, do individualismo possessivo, da competição, da lógica da produtividade; no outro caso, provoca a perda, na esfera pública, dos processos discursivos de formação da opinião e da vontade. Dessa forma, com os meios de controle sistêmicos substituindo as práticas comunicativas da esfera privada e da esfera pública, ficam comprometidos os processos cotidianos pelos quais os atores sociais se reconhecem reciprocamente como sujeitos; os processos pelos quais produzem poder comunicativo e interferem como cidadãos na tomada de decisão e de formulação de políticas públicas; e, ainda, a reprodução simbólica do mundo da vida, surgindo, então, as patologias sistemicamente induzidas, a saber, a perda de sentido, anomia, psicopatologias e alienações, com todas as suas consequências.14,15,16 Nesse entendimento, esse predomínio absoluto do mercado e da dominação sobre a vida dos indivíduos e grupos sociais é por si violência que reedita a violência num ciclo vicioso quase impenetrável, aplicável a todos os extratos sociais das sociedades contemporâneas.17,18,19 A Tabela 1 é o retrato da descrição da colonização do mundo da vida, ou será que ninguém mais se importa ou se espanta com o fato de que 23 e 40,1% de meninos que têm entre 10 e 14 e 15 e 19 anos de idade, respectivamente, trabalham? Pior, a violência nas relações de trabalho, que se mostra pela inserção precoce do adolescente na atividade laboral e se associa à exposição a vários riscos10 mostra-se também pela inexistência de oportunidades de trabalho9,20, como se pode ver pelo fato de que apenas a metade dos que procuraram emprego o encontrou e pela cifra impressionante de adolescentes que têm alguém desempregado na família. É a violência da exclusão social que acompanha pari passu a história do nosso país21 e que, de tão cotidiana, nossos olhos gastos já não mais conseguem ver - exclusão que se repete sistematicamente todos os dias, em todos os lugares:

Porque é o seguinte... eu acho o seguinte, o que a gente é mais ofendido é porque esse lugar igual eles falam é mal falado... ou então o seguinte, se tem uma pessoa e tal e some qualquer coisa, pode tá o mundo todo e se você tiver e se você for desse lugar eles vão culpar você, entendeu? Esse que é o problema, porque, quer dizer tudo você é culpado. Você é ofendido praticamente em todas as áreas, tudo é você, tudo é você, porque você é de lá, lá é isso, lá é isso... isso também é muito... (fala de adolescente).

Múltiplas exclusões. Se sai uma pessoa aqui do Aglomerado e vai lá pra... pro Buritis, entendeu, a maioria das pessoa lá só de vê passando na rua... é perigoso... Nenhum cuidado, nenhuma racionalidade, só violência, essas pessoas são muito cismadinha, sabe que é periferia, trabalha lá no programa primeiro emprego... E mesmo quando existem tentativas de dissimular a gente fica excluído, a gente vê o preconceito. Esses adolescentes são vítimas também da violência institucional, perversa, contraditória, porque exercida por aqueles que deveriam impedi-la:22 Eles deixam a gente irritados pra terem um motivo pra dar tapa na gente à-toa. Igual eles fazem toda hora. Todo cara que eles pegam dão tapa à-toa e ninguém fala nada (fala de adolescente). E do crime organizado, no dizer de Zaluar,9,23 essa nova agência socializadora, que por meio de violência física - aqui a gente ou mata ou morre - se impõe sobre os moradores de bairros e favelas e tem força para definir e orientar comportamentos, muitas vezes legitimada pela comunidade e pelo adolescente:

Olha só... eu não acho que o tráfico seja o causador de guerra, porque tipo assim, tem muitas pessoas que só tá a fim de ganhar dinheiro, sacô? Assim como um empresário ganha dinheiro sentado na cadeira...

Agora me responde uma coisa: quem que controla o tráfico? Porque tráfico não é feito só com bandidos não, entendeu? Tem vez que cai armas na mão dos traficantes que nem polícia tem ainda! Isso quer dizer o quê? Quer dizer que vem coisa de gente grande, lá pra cima... coisa... político... nego tem dinheiro!

Cê quer dizer então que essa gente grande não é traficante não? Do mesmo jeito!

E o que dizer do percentual de adolescentes que apanharam na rua? É verdade, o fenômeno ultrapassa as fronteiras nacionais: pesquisa realizada em 2005, nos Estados Unidos, sobre comportamento de risco entre jovens, mostra que 9,2% dos estudantes do ensino médio dos Estados Unidos já haviam apanhado, levado tapas ou sido machucados pelo namorado ou namorada; 35,9% deles tinham participado de lutas físicas e 3,6% se machucaram nessas lutas a ponto de necessitarem de cuidados de médicos ou enfermeiros.24 Violência que reedita violência:

Violência gera violência. Revide vira revide. Por isso é que a violência cresce tanto. Geralmente, quem apanha corre atrás, nunca sozinho, mas leva outras pessoas e junta uma turma de um lado e outra do outro. Sempre vai levando mais pessoas para a violência (fala do adolescente).

Outra pesquisa realizada no Chile - dentro de estudo internacional organizado pela OMS, o Global School-based Health Survey (GSHS) - mostrou que 46,6% dos estudantes foram vítimas de bullying no mês anterior ao estudo.25 Este trabalho não abordou essa questão, mas não seria lícito supor a relação desse fenômeno com o alto índice de adolescentes (42,2 e 35,5%) que se sentem inseguros na escola? Uma questão muito importante é o fato de 23 e 27,6% dos adolescentes de uma e outra faixa etária, respectivamente, não terem uma pessoa com quem conversar e em quem confiar, quando se sabe que se se tem pelo menos um vínculo social adequado ele pode ser fator de proteção contra comportamentos desviantes.26 A situação familiar não é menos comprometedora, abandono (22,9 e 26,8%), meninos que apanham até ficarem machucados (18,3 e 20,4%), brigas frequentes na família (18,3 e 20,8%):

"Eu apanhei do meu irmão, sabe? Ele bateu em mim até que eu chegasse a desmaiar. Aí ele falava com o meu pai, meu pai falava que ele estava certo, sabe? Aí meu pai dava permissão pra ele, né? Bater na gente que era de menor e às vezes pra gente fazer alguma coisa dentro de casa, até lavar roupa, passar roupa pra eles. Até minha mãe mesmo muitas vezes foi espancada pelo meu pai. Todo mundo lá de casa é assim... um pouco nervoso, sabe? Arruma confusão à-toa. Só por causa disso. Da violência que o meu pai fez com a minha mãe (Grupo focal, fala de adolescente).

Os maus-tratos de crianças e adolescentes podem causar danos futuros, entre os quais psicopatologias, problemas de saúde na vida adulta e vitimização da próxima geração.6 Segundo a OMS,27 a exposição à violência durante a infância se associa à vitimização violenta e exercício da violência, depressão, obesidade, tabagismo, comportamento sexual de risco, gravidez indesejada, uso de álcool e drogas. E os meninos do Morro das Pedras sabem bem disso: a violência começa dentro de casa, às vezes o pai agredir o filho, o próprio filho agredir o pai, a mulher, a irmã.

Por fim, dois outros aspectos precisam ser ainda discutidos. O primeiro deles diz respeito à forte presença da violência física aberta na vida dos adolescentes, 67,6 e 79,3% deles já presenciaram situações de violência perto da sua casa, números frios, relativizáveis, não fossem os relatos dos adolescentes com toda a sua crueza: a rua lá de cima... tá em guerra... a gente não pode nem sair na rua....

Quando eu jogava com o X, tipo assim, eu tava sentado no beco perto da minha casa, os cara subiu armado perguntou por ele, subiu lá pra cima da Dez, desceu e pegou o cara no campo. Aonde que eles tava passando ali, se trombar trombou, não tem um lugar mais perigoso do que outro, o cara pode tá entrando dentro da igreja que leva tiro!

Tipo assim, igual eu tava falando que tem lugares que é mais perigoso é por isso, igual a Rua Dez, tá em guerra com a lojinha, se a gente for pra Dez, se o cara não conhece a gente, pensa: ela é da lojinha e tá trazendo recado, vai lá e... entendeu... faz isso com pessoa até inocente, leva bala.

O outro aspecto refere-se ao papel da violência verbal que, ao contrário de ser desprovida de impacto em um mundo tão violento, como se poderia pensar pelo senso comum, tem papel central na geração de todo tipo de violência, como ilustram as falas dos meninos do Morro: é, uma simples palavra gera a morte. Palavra gera violência... E descrevem com calma a situação: ameaças, xingamento, acusações indevidas, medo, vingança - vou matar ela [a pessoa] antes que ela me mate.

Depois de tudo, não seriam os dados da Tabela 1 simples anúncio dos dados da segunda Tabela sobre comportamentos violentos? Esse é o exato sentido das associações estatisticamente significativas e das falas dos adolescentes apresentadas, pois qual é a lógica de se esperar que a formação de sujeitos traga frutos diferentes dos processos segundo os quais foram socializados e que os constituíram como tais?28,29,30 E, ainda assim, muitos resistem a sucumbir de vez aos apelos e comandos! A colonização do mundo da vida pelo mercado e pelo poder - incluam-se aí, na vida dos adolescentes do Morro das Pedras, as dificuldades de sobrevivência, a exclusão, o preconceito, a violência interpessoal, a violência institucional, o tráfico - faz com que a violência passe à condição primeira de mediação das relações estabelecidas. Sua presença permanente marca a vida das pessoas, constroi as suas personalidades, define os seus caminhos e produz uma nova cultura, uma nova concepção, um novo jeito de se relacionar com o outro - a violência tem agora o papel de norma.

Questão de você viver num lugar onde a maioria da sua vida é... tipo assim, você viveu a maioria da sua vida onde só rola tiros, uma hora você acaba se acostumando, sô. Igual lá na rua, antigamente vivia cheio de gente assim, dava um tiro e rapidinho espalhava todo mundo, agora tá dando tiro ali na frente tem gente andando com toda calma pra cá, não vai pra lá, mas vem pra cá, não tem aquele desespero mais. Com o tempo você acaba se acostumando.

Suas leis devem ser seguidas por todos - a violência tem regras que a gente tem de seguir. Processo brutal de reificação, que goza de legitimidade porque assume ante os olhos dos adolescentes a feição de natureza: é instinto humano... O cara foi lá e matou ele. E aí, o que que aconteceu? A família dele foi e vingou. Vai matando... Passa de filho para pai, de pai para filho. E, mais importante, rouba deles qualquer possibilidade de saída: não adianta.

Para concluir, resta dizer que essa situação tão indevassável ao olhar do adolescente não precisa de fato ser assim - é só lembrar que, segundo nossa orientação teórica, essa situação tem início com a supressão das interações linguisticamente mediadas, na qual todos se reconhecem como sujeitos, autênticos portadores de competências, direitos e vontades. De forma muito perspicaz, os próprios adolescentes perceberam, a perda dessa intersubjetividade reciprocamente reconhecida pelo simples uso inadequado da palavra pode levar a lugares impensáveis de violência. O que dirá, pela miséria, exclusão, domínio absurdo e desigual... Por outro lado, a simples retomada de práticas tão cotidianas, que se confundem com o próprio homem e sua história, disponíveis a todos sem exceção desde tempos imemoriais, podem estar na raiz da solução e impedir, de modo preventivo, a escalada para situações completamente fora de controle. Não vale a pena inaugurar um novo olhar?

 

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