RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 20. 2

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Artigos de Revisão

Emanações da caixa de Pandora

Emanations from Pandora's Box

Cassandra Pereira França

Pós-Doutorado e Doutorado pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, SP - Brasil

Endereço para correspondência

Departamento de Psicologia / FAFICH/UFMG
Av. Antônio Carlos, 6227, Pampulha
Belo Horizonte, MG - Brasil
Email: cassandrapfranca@gmail.com

Recebido em: 19/05/2010
Aprovado em: 04/06/2010

Instituição: Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais

Resumo

Este artigo tem como objetivo esclarecer as confusões terminológicas contidas nas citações de distúrbios psicopatológicos, como acontece com a psicopatia e a pedofilia. Procurando atender a tal finalidade, serão estabelecidos contrapontos com a nosografia psicanalítica que, na contemporaneidade, classifica tais distúrbios como pertencentes aos quadros de perversão. Concluiu-se, a partir de revisão literária que possibilitou a síntese da definição clássica de psicopatia e de outras classificações psiquiátricas que dela se avizinham, que a proposta da Psicanálise, ao considerar a perversão como uma questão de grau, determinado pela combinação de intensidades de mecanismos psíquicos como a clivagem do ego e a recusa da castração, facilita a compreensão dos distintos estilos de exercício da sexualidade que ajudam os perversos a negarem radicalmente a angústia de castração.

Palavras-chave: Pedofilia; Psicopatologia; Violência; Psicanálise; Maus-Tratos Sexuais Infantis.

 

INTRODUÇÃO

Durante um século, a Psicanálise negligenciou o estudo da perversão, empenhando-se, inicialmente, nos estudos clínicos da neurose e, mais tarde, da psicose. E apesar de Freud ter introduzido, como diz Roudinesco1, "o universal da diferença perversa", ao criar a ciência do sexo e do desejo, a Psicanálise recuou diante do diagnóstico da perversão.

Há uns 20 anos, as condutas desviantes chegavam ao campo da Psicologia como pedidos de intervenção institucional, principalmente com adolescentes infratores, que se lançavam em transgressões à lei estabelecida. Entretanto, aqueles traços perversos que eram encontrados no funcionamento mental desses menores passaram a comparecer mais e mais na clínica psicanalítica, mas, então, identificados nas condutas dos adultos. A mídia logo se encarregou de ser o arauto dessa mudança, invadindo o nosso cotidiano com notícias dos desvios de conduta e de personalidade encontrados em sujeitos até então dignos da confiança da comunidade. Tome-se, como exemplo, o escândalo dos padres pedófilos nos EUA. Os processos na justiça, até 2007, contabilizaram 5.000 padres pedófilos, 13.000 vítimas e o custo aos cofres da Igreja Católica de 2 bilhões de dólares em acordos indenizatórios.

Infelizmente, contudo, nem era preciso ir tão longe para constatar essas mudanças, pois o próprio noticiário brasileiro encarrega-se de apresentar, reiteradamente, as confrarias da corrupção instaladas nas mais diversas instituições, os golpes criativamente aplicados em aposentados e pensionistas, a ditadura perversa do narcotráfico e tantas outras atuações delinquentes. Esses fatos não deixam dúvidas: todos estão como reféns da lógica do funcionamento psíquico perverso, ou melhor, daqueles que, como disse Fingerman2, têm discurso solipsista, inteiramente calcado na doutrina do solipsismo, segundo a qual a única realidade no mundo é o eu e as suas sensações. Assim formado, o discurso do perverso não pode mesmo permitir outro discurso e ele se julgará "um singular auxiliar de Deus"2, súdito apenas de seu próprio desejo.

Várias são as anomalias da personalidade que conjugam, em proporções variáveis e, de um indivíduo para o outro, a inadaptação à vida social, a instabilidade do comportamento e a facilidade de atuação - casos que, geralmente, são de difícil classificação do ponto de vista médico-legal. Incluídos nessa amostra estão os distúrbios antissociais, as conhecidas personalidades psicopáticas e as perversões - formas clínicas difíceis de serem estudadas não só porque os relatos obtidos desses pacientes costumam estar cheios de lacunas, omissões e invenções, mas, também, porque tomam emprestados traços e mecanismos de defesa de algumas estruturas vizinhas, como se pode ver, por exemplo, com os mecanismos obsessivos empregados na elaboração e execução de planos perversos feitos pelos serial killers para assassinar suas vítimas. Uma vez que a palavra "psicopata", apesar de ter caído em desuso no meio psiquiátrico, ainda é muito utilizada pela mídia, gerando certa confusão, retomem-se alguns pontos dessa definição.

As psicopatias

Nos manuais de psicopatologia, encontram-se definições que estabelecem proximidade entre a conduta antissocial ou psicopática e a psicose, mas que fazem a ressalva de que na psicopatia a elaboração delirante típica da psicose é substituída pela atuação. Única via de descarga da tensão interior, essa atuação seria a reedição de comportamento arcaico que, embora natural em algum momento do desenvolvimento, ao ressurgir, mostraria a sua faceta patogênica, como ocorre nos casos das mordidas ferozes que tão bem ilustram o sadismo oral.3

Tentando explorar esse exemplo, o cinema acabou criando um estereótipo de psicopata bem diferente daquele encontrado na vida real: o psiquiatra/canibal Hannibal Lecter. A performance dramática de Anthony Hopkins no filme "O silêncio dos inocentes", em apenas 17 minutos, foi suficiente para que o personagem fosse eleito o maior vilão da história do cinema. Vale lembrar que, como adaptação cinematográfica do livro de Thomas Harris, esse filme, produzido na década de 1990, foi a terceira obra a vencer as cinco principais categorias do Oscar em 1992: melhor filme, melhor diretor, melhor roteiro adaptado, melhor ator e melhor atriz. A inteligência arguta, as frases construídas deixam os expectadores seduzidos e petrificados pela sensação de que o canibal está entrando em suas cabeças através da constância dos movimentos projetivos, que mostram como um psicopata é capaz de seduzir e evocar fantasmas, enfim, manipular o outro para ter ascendência sobre ele. Se, de fato, todos esses elementos podem ser encontrados na atuação psicopática, marcadamente repetitiva, pois ecoa nas fixações do desenvolvimento libidinal, o filme não explora o sentido súbito e brutal do ato psicopático e que evidencia o quanto não há nele mediação da linguagem - tanto é que o sujeito só consegue explicar sua crise com palavras estereotipadas ou racionalizações secundárias, uma vez que fica tomado por grande vazio mental.

A afetividade do psicopata mais parece estar paralisada numa posição primitiva, geralmente assimilada às condutas de oralidade, impregnadas pela avidez e pela intolerância à frustração. E a angústia, exatamente por ser terrificante, não pode emergir, tendo de ser evitada a qualquer preço! Este é o sentido do ato psicopático: uma fuga sistemática da angústia pela atuação, o que justifica a ausência de conflito interno, de sofrimento ou de vivência de culpa. A intensa labilidade emocional do psicopata torna seus atos completamente imprevisíveis, pois o psiquismo, por não ter nenhuma possibilidade de elaboração diante da emergência da pulsão, faz com que a atuação brote diretamente da pulsão, vindo daí a frieza que denota a ausência de emoção no momento do ato.

As perversões

Pois bem, a Psicanálise contemporânea considera a perversão uma questão de grau e estilo e nela encaixa todos os traços agora citados para a psicopatia: a inteligência arguta; a capacidade de sedução; a atuação repetitiva e sem mediação da linguagem; a ausência de emoção, conflito ou culpa; a trangressão tanto da regra moral quanto da social. Mas, a essas transgressões, somam-se duas outras também importantes: a da temporalidade e a da realidade. A primeira justificaria a confusão entre passado e presente, a segunda é proporcional à confusão entre realidade e fantasia e, quando atingir níveis extremos, aproximará a psicopatia dos quadros psicóticos. Portanto, "a tomada em conta da realidade", como se expressava Freud4, será um dos vetores a auxiliar a entender que aqueles arranjos psíquicos que levam em conta a realidade podem corresponder a casos mais leves de perversão; e que quanto mais forte for a desconsideração da realidade, a ausência de contenção da pulsão de morte, mais aproximará das clássicas psicopatias e desordens psicóticas.

O assunto é, entretanto, complexo para se contentar com uma equação tão simples como essa, pois, no interior desse espectro que acaba de ser citado, alojar-se-á uma infinidade de constelações psíquicas que almejam o mesmo fim: o de enganar os limites impostos pelo outro. Vale lembrar que nessa classificação das perversões tanto pode ser encaixada a pedofilia, o incesto, o fetichismo, a zoofilia, a antropofagia e a coprofilia, quanto os estupradores, os sádicos, os masoquistas e os voyeuristas. Quadros psíquicos que, apesar de ilustrarem as marcas deixadas no corpo pelo erotismo primário, ou seja, pelos diferentes pontos de fixação da libido, deixam claro que não pode ser a mesma organização psicológica que sustenta atos tão variados.

Portanto, saber que a sexualidade adulta é polimorfa, que pode mudar de objeto (como acontece na pedofilia e na zoofilia); de zona (com a evitação dos órgãos genitais); de objetivos (como no caso da procura de dor no masoquismo ou, ainda, quando o orgasmo é subordinado a condições imperiosas e externas como no fetichismo ou no voyeurismo) não é suficiente para compreender o que há em comum entre todos esses quadros patogênicos classificados como perversões. Vários autores contemporâneos5-8 julgam que essas doenças são expressões de "soluções" perversas da sexualidade que, calcadas na clivagem do ego, buscam contornar a angústia de castração e disfarçar os profundos laços incestuosos da sexualidade infantil. Portanto, a essência da perversão parece estar sustentada por três eixos: a clivagem do ego, a recusa da castração e o teatro erótico, que formam distintos feixes nosográficos.

Os três eixos que sustentam a perversão

No final do século XIX, as experiências clínicas de médicos europeus que lidavam com os fenômenos da histeria e da hipnose, tais como Breuer e Freud9, fizeram com que eles tivessem a ideia da coexistência, no seio do psiquismo, de dois grupos de fenômenos e, mesmo, de duas personalidades que podem se ignorar mutuamente. Essa divisão intrapsíquica acabou sendo definida como spaltung - termo que costuma ser traduzido por "clivagem" e que põe em causa, principalmente, as relações entre o ego e a realidade.

A clivagem do ego, muito bem ilustrada pelo fetichismo, mostra como é possível conviverem, numa mesma estrutura psíquica, sem se influenciarem mutuamente, duas atitudes contraditórias em relação à realidade da castração: a recusa da percepção da falta de pênis na genitália feminina coexistindo, no seio do ego, com o reconhecimento da falta de pênis na mulher. Atitudes que persistem, lado a lado, ao longo de toda a vida e que tornam extremamente intrigante a compreensão de como e por que o sujeito consciente se separou de uma parte de suas representações.

A clivagem do ego serve para explicar casos surpreendentes em que um sujeito aparentemente pacato, trabalhador e honesto é descoberto como pedófilo. O exemplo do dia é o do austríaco Josef Fritzl, de 73 anos, engenheiro aposentado, que manteve a filha presa num porão durante 24 anos. Condenado à prisão perpétua num manicômio judicial por ter cometido seis crimes: homicídio, escravidão, estupro, cárcere privado, coação grave e incesto, Fritzl tinha, segundo os psiquiatras que o avaliaram, total consciência dos seus atos, tanto que os mantinha sistematicamente. Sua personalidade foi classificada como altamente anormal, caracterizada por mistura de narcisismo, instabilidade emocional e desvio grave de preferência sexual.

Foi a partir da noção de clivagem do ego que Freud10 pôde definir, de maneira cada vez mais afirmativa, a existência de mecanismo específico, a recusa (Verleunung), cujo protótipo é a recusa da castração. Esse mecanismo psíquico veio cobrir um campo que escapava ao domínio do recalcamento, imprimindo a positividade à definição conceitual de perversão, que passou a ser reconhecida como fenômeno psíquico complexo.

Para Pereda11, não é possível circunscrever a recusa ao fenômeno da castração fálica, e sim admiti-la como mecanismo defensivo precoce, uma "recusa estrutural" da qual a criança lança mão já nos tempos que precedem o conflito edípico. No entanto, a permanência dessa defesa básica para além dos tempos do conflito edípico, como ocorre na perversão, seria tipicamente uma "doença da recusa", que terá como ponto final a exclusão da temporalidade.

Freud descreve a recusa tanto em relação à menina, como em relação ao menino: perante a ausência de pênis na menina, as crianças "recusam ou negam esta falta, creem ver, apesar de tudo, um membro..."10 É claro que essa recusa trará como consequência imediata a negação da diferença anatômica entre os sexos e, quando reconhecerem a ausência do pênis, essa falta será vista como resultante da castração. Portanto, de modo estrito, no sistema freudiano, a recusa é essencialmente "a recusa da ausência do pênis na mulher", ou seja, esta "recusa" é equivalente à "recusa da castração". Segundo Laplanche e Pontalis12, o objeto mais amplo da recusa é "a realidade de uma percepção traumatizante". Assim, a palavra alemã Verleunung, mantendo-se na metapsicologia psicanalítica, passou a ter como melhor tradução em português as palavras "desmentido" ou "desautorização", que denotam claramente a intenção "de voltar sobre algo que foi confessado"13, para tentar tamponar a angústia de castração e controlar qualquer possibilidade de contingência. Nesse sentido, pode-se observar que se na vida psíquica da criança o mecanismo da recusa não parece ser raro nem perigoso, na vida de um adulto pode corresponder ao ponto de partida da psicose. Na verdade, com o desenvolvimento da Psicanálise a órbita da castração só foi se ampliando e a "recusa" passou a ser o protótipo e a origem de outras recusas da realidade - incluindo-se uma concepção particular da realidade, portanto, a realidade recusada pelo perverso é tudo aquilo que se opõe à realidade de seu desejo.

Sabe-se que as atuações sexuais do perverso geralmente são pobres e repetitivas, um verdadeiro "teatro erótico"6 que serve apenas para ajudá-lo a reinventar a cena primária, uma vez que não aderiu ao pacto que prevê a renúncia ao objeto familiar. Assim, a partir da mudança de objetivos e de objetos da cena sexual, o perverso irá fixar as regras imutáveis de um jogo sexual incapaz de suportar qualquer alteração, pois isto poderá desencadear angústia insuportável. Para essa autora, no ato perverso, a angústia de castração se encontra ilusoriamente controlada em todos os níveis, seja por chicotadas, humilhações, controle dos esfíncteres ou dos orgasmos, atitudes que procuram fazer as angústias de despedaçamento e de morte se tornarem lúdicas. Aliás, um bom exemplo desse teatro erótico de que fala Mc Dougall6 pode ser ilustrado pelo filme Lua de fel. A intenção da criação erótica será, portanto, sempre a de mostrar que não há diferença entre os sexos, afinal, essa foi a melhor solução que a criança pôde encontrar frente aos conflitos e contradições com que teve de se haver em sua infância.

Esse ensimesmamento erótico que leva os perversos à solidão determinará um papel específico para o parceiro no roteiro perverso:

Por sua participação, por seu prazer, o outro vai fornecer a prova de que a castração não faz mal; de que a diferença entre os sexos não é causa do desejo sexual e de que a cena primária é tal como o autor do roteiro a criou. Há uma solução mágica da tensão interna, o que faz com que a procura compulsiva dos parceiros se torne uma "necessidade"' urgente.6:197

Especificidades da pedofilia

Feitas todas essas considerações sobre o funcionamento psíquico do perverso, será agora focalizada a perversão como causa do abuso sexual infanto-juvenil. Para relacionar a fixação do pedófilo ao corpo da criança, é preciso retomar a relevância da recusa do tempo na dinâmica psíquica da perversão e entender o cenário sexual que ela impõe ao sujeito. Em primeiro lugar, a recusa do tempo provocará um estancamento do desenvolvimento libidinal e a respectiva fixação da libido em determinados modos imperativos de satisfação das pulsões parciais, quer estejam subordinadas à fase oral, anal ou fálica. Desse modo, a meta nem sempre será a penetração sexual e sim a satisfação do compulsivo apelo das pulsões escópicas (como o prazer de ver o corpo do outro nu), das pulsões orais (tal como nas práticas de felação) ou do exercício fálico de subordinar o outro a práticas masturbatórias. Em segundo lugar, a exclusão da temporalidade impregnará tanto a imagem do próprio sujeito quanto a de seu objeto, situação em que se terá a "recusa encarnada" que, por sua vez, levará à recusa da diferença geracional (e etária) e ao entrincheiramento das pulsões no cenário incestuoso. Pronto, está composta a trama que fará da criança o parceiro ideal para um roteiro sexual tão pobre e estereotipado.

Mas, afinal, o que mais se sabe sobre a pedofilia? Antes de mais nada, que se trata de parafilia que envolve a presença de fantasias sexuais intensas e recorrentes, que tem como objeto erótico de preferência uma criança em idade pré-púbere. Segundo Roudinesco1, a palavra parafilia designa não apenas todas as práticas sexuais antigamente qualificadas de perversas (exibicionismo, fetichismo, bolinação, pedofilia, masoquismo sexual, sadismo sexual, voyeurismo, travestismo), mas também todas as fantasias perversas que não são em absoluto assimiláveis em práticas perversas (escatologia telefônica, necrofilia, parcialismo, zoofilia, coprofilia, clisterofilia, urofilia).

Essa doença crônica acomete, majoritariamente, indivíduos masculinos e tem seu início, costumeiramente, na adolescência, embora alguns refiram o seu início na meia-idade. Segundo Fagan14, o abuso sexual perpetrado por homens representa 89% do total, sendo que as meninas são até três vezes mais vitimadas do que os meninos. Esses indivíduos em geral são tímidos, impulsivos, têm baixa autoestima, menos capacidade de socialização, mais consumo de pornografia e dificuldade para atrair parceiros da mesma idade. A faixa etária de suas vítimas masculinas varia, em geral, entre oito e 11 anos e as femininas entre 11 e 15 anos. Apesar de muitos pedófilos serem incapazes de se lembrar do que lhes aconteceu na infância, a pesquisa mencionada ressalta que, de seis sujeitos que sofreram agressão sexual na infância, cinco se tornaram pedófilos. O dado de que os molestadores de crianças apresentam, com frequência, histórico de abuso sexual na própria infância pode ser encontrado também em outra tese de doutorado intitulada "Consumo de álcool e outras drogas e impulsividade sexual entre agressores sexuais"15 . Ela também apresenta outras conclusões significativas, como a de que os pedófilos costumam apresentar idade média superior à dos agressores sexuais de adultos; assim como mais gravidade no consumo de bebidas alcoólicas do que os agressores de adultos, que, em geral, consomem mais drogas (maconha e cocaína). Um outro dado interessante, por mostrar que esses sujeitos acabam sendo tomados pela pulsão de morte, é o fato de que há entre eles alto índice de suicídio - por volta de um terço dos casos catalogados16 salientaram índice de 75% de comorbidade entre pedofilia e outros transtornos psiquiátricos.

A pornografia infantil, não importa o meio pelo qual seja veiculada, representa sintoma de pedofilia. Quando um pedófilo é pego em flagrante, normalmente está acompanhado desse material, que tem a função de seduzir a criança. Além de contar histórias que povoam o imaginário infantil, o pedófilo usa fotos para fazer a criança acreditar que pode participar daquela cena. Mas há também aqueles que consomem pornografia infantil apenas pelo prazer em olhar e usar as imagens de crianças para se masturbar ou divulgar entre seus conhecidos.

A caixa de Pandora está aberta

A Internet, que representa o meio de comunicação mais revolucionário da história da humanidade, infelizmente, nesse campo de trabalho, abriu a caixa de Pandora, provocando um boom de pornografia infantil, denunciando um sintoma não só da pedofilia, mas também da cultura contemporânea. Embora tendo sempre existido e sido ilegal, a pornografia infantil ganhou proporções inimagináveis com a difusão rápida e ampla de videos e fotos, pois as pesquisas comprovam que tais sites estimulam o desejo sexual e provocam no sujeito o encorajamento para que concretize aquilo que antes só fazia em sua imaginação.

Apesar das tentativas policiais de confiscar material e punir os envolvidos em pornografia infantil, as medidas são sempre insuficientes, pois esbarram na própria armadilha do mundo virtual: outros sites brotam imediatamente. Não há legislação específica que garanta que essa violação seja tratada como crime e sequer se sabe como criar legislação que vigore para as redes de todos os países e que não transgrida as idiossincrasias de cada cultura. Enquanto isso, como sempre, os perversos usam da realidade para se enquistar nas brechas deixadas pela lei e continuar satisfazendo seus mais recônditos desejos.

A Internet, tal como a própria Pandora da mitologia grega, parece ter sido modelada por Zeus para se tornar irresistível e castigar os homens. Revestida, pelos deuses, de atrativos e de graça, Pandora, que simboliza todas as mulheres, tanto tem de bela quanto de terrível flagelo instalado no meio dos mortais, maldita, mas imprescindível exatamente por ser maravilhosa. Atená ensinou-lhe a arte da tecelagem, adornou-a com a mais bela indumentária e ofereceu-lhe seu próprio cinto; Afrodite deu-lhe a beleza e insuflou-lhe o desejo indomável que atormenta os membros e os sentidos; Hermes, o Mensageiro, encheu-lhe o coração de artimanhas, imprudência, astúcia, ardis, fingimento e cinismo; as Graças divinas e a respeitável Persuasão embelezaram-na com lindíssimos colares de ouro; e as Horas coroaram-na de flores primaveris... Por fim, o Mensageiro dos deuses concedeu-lhe o dom da palavra e chamou-a Pandora, cujo nome significa presente de todos (Pan= todo, dôron=presente). Todos os deuses do Olimpo presentearam, assim, os homens com a desgraça!17 Satisfeito com a cilada que armara contra os mortais, o pai dos deuses enviou o presente a Epimeteu (irmão de Prometeu), que se esquecera da recomendação de jamais receber um presente de Zeus se desejasse livrar os homens de uma desgraça. Epimeteu, porém, aceitou-o e, quando o infortúnio o atingiu, foi possível perceber que (conforme se segue e explica toda a trama de Zeus):

A raça humana vivia tranquila, ao abrigo do mal, da fadiga e das doenças, mas quando Pandora, por curiosidade feminina, abriu a jarra de larga tampa, que trouxera do Olimpo, como presente de núpcias a Epimeteu, dela emanaram todas as calamidades e desgraças que até hoje atormentam os homens. Só a esperança permaneceu presa junto às bordas da jarra, porque Pandora recolocara rapidamente a tampa. É assim, que, silenciosamente, porque Zeus lhes negou o dom da palavra, as calamidades, dia e noite, visitam os mortais [...]18:166-8

Como, então, ter esperanças de que haja alguma possibilidade de as estatísticas se reverterem, se a realidade mostra que, de cada 100 telefonemas recebidos pelo Disque 100 (Programa de denúncias anônimas implantado pela Secretaria Especial de Direitos do Governo Federal), apenas um caso é condenado, enquanto as outras 99 denúncias de abuso sexual infantil ficam sem punição por falta de provas? Acreditar que um dia a tampa da Caixa de Pandora irá se fechar pode muito bem ser pretensão utópica, afinal, como afirmou Montesquieu19: "Como ser físico, o homem é governado por leis invariáveis, do mesmo modo que os outros corpos; como ser inteligente, o homem viola incessantemente as leis que Deus criou e modifica as que ele próprio estabeleceu".

Diante do estrago que a Internet está trazendo para o campo das práticas sexuais abusivas contra crianças e adolescentes, quer seja estimulando os pedófilos, quer seduzindo as vítimas, não se pode estranhar que boa parcela da sociedade, em algum momento de indignação, chegue a desejar, secretamente, que esses criminosos virtuais recebam castigo à altura do que Zeus deu a Prometeu por ter roubado a centelha do fogo divino e devolvido a inteligência aos mortais: Prometeu foi acorrentado sobre uma rocha com grilhões de que não se podia livrar e, durante o dia, uma águia enviada por Zeus lhe devorava o fígado (considerado como sede da vida), que durante a noite voltava a crescer, para que se repetisse o castigo ao amanhecer. Per omnia saecula saeculorum...

 

REFERÊNCIAS

1. Roudinesco E. A parte obscura de nós mesmos: uma história dos perversos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; 2008.

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9. Breuer J, Freud S. Estudos sobre a histeria. Edição Standard das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (ESB). Rio de Janeiro: Imago; 1980. Edição Standard das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (ESB), v. 2.

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