RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 20. 2

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Artigos de Revisão

Violência e relações de poder

Violence and power relations

Izabel C Friche Passos

Professora associada do Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG - Brasil. BDTI2/CNPq. Coordenadora do Laboratório de Grupos, Instituições e Redes Sociais (Lagir)

Endereço para correspondência

Av. Antônio Carlos, 6227, Pampulha
Belo Horizonte,MG - Brasil
Email: izabelfrichepassos@gmail.com

Recebido em: 19/05/2010
Aprovado em: 04/06/2010

Instituição: Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG, Belo Horizonte, MG - Brasil

Resumo

Este artigo é um aprofundamento de entrevista concedida a Rubem R. M. Barros da revista Educação (Passos, 2009). Numa linha de argumentação que tem por base a analítica do poder de Michel Foucault, apresenta-se diferenciação entre violência, processos de normalização social e relações de poder, estas últimas entendidas como condição de possibilidade para a existência de processos de autodeterminação e de resistência de sujeitos e coletividades. A partir do questionamento da violência no âmbito específico da educação, defende-se que é preciso discriminar pelo menos duas dimensões: uma inerente às relações de poder entre educadores e estudantes, nela incluídos aspectos considerados comumente como indisciplina ou violência; outra, oriunda dos problemas sociais, que se manifestam de modo contumaz na escola.

Palavras-chave: Violência; Poder (Psicologia); Educação

 

O QUE É A VIOLÊNCIA ?

Em alguns autores das ciências humanas, a noção de violência possui extensão de uso muito vasta e contraditória, sendo tomada em sentido negativo, corrente no senso comum, como sinônimo de arbítrio e opressão, mas também num sentido positivo ou afirmativo, sem conotação moral. A segunda acepção do termo aparece especialmente em autores de vertentes teórico-intervencionistas conhecidas como Sociologia clínica e Psicossociologia, especialmente em Eugène Enriquez,1,2 André Lévy3 e René Kaës4. Estando essas propostas psicossociológicas, de compreensão e intervenção no social (nos grupos, organizações e instituições), ora mais ora menos fundamentadas nas contribuições da Psicanálise, a violência aparece fazendo parte da própria vida. Nem algo bom nem mau em si, mas força de vida. É que a Psicanálise abandona o conteúdo moral da ideia de violência, como maldade, e transforma o termo em conceito capaz de descrever a força vital ligada ao próprio princípio de criação. Os autores de extração psicanalítica sustentam, cada qual à sua maneira e segundo leituras filosófico-antropológicas próprias, que uma ordem institucional só é quebrada ou transformada de modo radical a partir de sua destruição, isto é, a partir de ações que implicam algum grau de violência, do contrário, estaríamos diante de meros rearranjos, ou aggiornamenti, como prefere dizer Robert Castel5, que preservam a ordem estabelecida sem produzir grandes transformações, apenas mudanças que, ao fim e ao cabo, mantêm as coisas como são.

Veja, por exemplo, como André Lévy3 define violência, quando se trata de violência humana, já que em se tratando do mundo animal, lembra Lévy, vê-se a destruição entre espécies e as rivalidades sexuais como naturais:

A violência aterroriza, portanto. Mas menos em razão de sua destrutividade e dos sofrimentos que pode provocar que em razão de seu caráter excessivo, de sua intensidade louca que deixa transparecer nas palavras, no olhar, a força bruta incontrolável das pulsões susceptíveis de nos invadir a todo instante. Todo excesso de prazer, de alegria ou de dor, implica, com efeito, um arrebatamento brutal, uma ruptura forçosamente dolorosa. E, entretanto, a violência não é boa nem má, ela faz parte da vida, ela é a vida: a desmedida, a intensidade, o "a mais", sem os quais nenhuma obra de criação (literária, científica, artística ou filosófica), nenhum nascimento, nenhuma paixão seria possível3:68 (grifado no original; tradução livre).

A violência é aí pensada como pulsão. Conceito angular na Psicanálise, pulsão é força vital liminar entre o extrato biológico da vida e seu desdobramento psíquico, que no humano se encontra desenvolvido de modo excepcional e destacado do puramente biológico. Seu excesso, ou a incapacidade de ser sublimada ou ordenada pela dimensão simbólica, pode levar a pulsão a se transformar em força destruidora, inclusive ou em primeiro lugar, para o próprio sujeito.

Apesar de iniciar seu artigo por essa definição psicanalítica e amoral de violência, André Lévy3 se dedica, com efeito, a analisar as formas de violência que se manifestam como negatividade, isto é, como aniquilação do outro ou de si mesmo, presentes em nossas sociedades, demonstrando como são formas contrárias a todo exercício democrático da política. Seu texto é mais interessante pela minuciosa reflexão que produz em torno da ideia de democracia e de seus limites para efetiva realização, do que por essa definição conceitual de violência. É a violência em sentido moral negativo que se mostra como ameaça permanente à nossa felicidade, ao sentimento de solidariedade e, enfim, à assunção da atitude ética diante da vida cotidiana. Atitude que, para Lévy3, é exigência da transcendência do humano, já que inexplicável por qualquer razão puramente lógica. Segundo ele, a ética é "o absolutamente estranho" em nós. Existe independentemente de qualquer obrigação moral, imposição racional de valores ou crença em preceitos religiosos ou ideológicos. A inquietação ou exigência ética, que pode ser ofensiva e criativa, não é da ordem da racionalidade tranquilizadora nem absoluta, é da ordem do desejo que se sobrepõe a nós mesmos e nos compele a nos posicionar e a fazermos escolhas, diante de nós mesmos e dos outros. Impulso, talvez fruto do reconhecimento imanente de nossa finitude e da tarefa irrevogável e em nenhuma hipótese delegável ao outro, de darmos ou não sentido à nossa vida, a exigência ética impele-nos igualmente à busca da verdade.

Mas, voltando à questão da definição de violência, se, de fato, uma ordem institucional, seja ela moral, política ou estética, só é abalada ou sofre transformação profunda frente a uma ação destruidora, desestabilizadora, percebida como violenta e agressiva por quem a sofre, julgo esclarecedora a distinção feita pelo filósofo Michel Foucault entre violência e exercício do poder. Deixando de lado o que a noção de violência, pensada como pulsão, pode trazer de útil ao pensamento e à prática psicanalíticos, gostaria de propor guardarmos seu sentido negativo corrente no senso-comum e explorarmos essa outra noção, também negativizada, segundo Michel Foucault, por leitura equivocada, que é a noção de poder ou mais precisamente de relações de poder. Neste caso, não só o senso comum, como muitas teorizações em ciências humanas tendem a ver o poder como algo negativo, nefasto e relacionado ao Estado e à sua dominação sobre os indivíduos, o que seria uma visão reducionista numa perspectiva foucaultiana.6

Há pelo menos uma vantagem de saída para adotarmos a noção de relações de poder para pensarmos o problema da violência: essa noção nos remete imediatamente à vida em sociedade e menos à especulação metafísica (como acaba acontecendo com o conceito de pulsão). Não que tal especulação seja desimportante ou irrelevante, mas, de certa forma, ela nos afasta muito do "julgamento moral em situação", expressão usada por Paul Ricoeur para definir ética, citada por Lévy3, e mais interessante para pensarmos a violência que se manifesta nas relações sociais.

Na leitura que faço de Foucault, entendo que o autor reserva a ideia de violência, estritamente falando, ao uso da força bruta direcionada à eliminação ou subjugação total do outro. Violência em Foucault não é um conceito que possa explicar o funcionamento da vida, mas é o resultado visível da ação de destruição do outro. Quanto às relações de poder, o filósofo as pensa como inerentes às relações e práticas sociais que envolvem verdadeiros sujeitos. Contra leituras que vêem no pensamento de Foucault uma diluição do sujeito ao modo do que fazem os estruturalismos, para o leitor atento ao trabalho do filósofo e às transformações importantes por que passa, conforme vai mudando de objetos de pesquisa (da loucura e saberes médicos para as prisões e os modos de punição, destas para a regulação da vida da população e finalmente para a questão ética da produção de modos de subjetivação), é inegável que o sujeito, construído e também apreendido pelas práticas discursivas (os saberes) e pelas práticas sociais e institucionais (via relações de poder), é central, e diria mesmo, quase uma obsessão para o filósofo, do início ao fim de suas produções reflexivas.

As relações de poder pressupõem a liberdade, pois onde haja total subjugação do outro, não há mais relações de poder e sim dominação pela violência. As relações humanas envolvem sempre disputas e jogos de poder. Nessa acepção foucaultiana, a ideia de violência seria reservada à situação de exceção, pois de ruptura com toda e qualquer regulação da vida social que leve em consideração a simples existência do outro, do diferente, do desigual ao si mesmo. Violência conserva em Foucault o sentido negativo e moral de total negação do outro, seja ela exercida em nível macro ou microssocial. Acho útil a distinção, especialmente num momento em que, em nosso país, não vivendo em estado de guerra explícita (onde a destruição do outro se torna imperativa e autorizada), estamos, sim, sem dúvida, vivendo frequentes situações de extrema violência, por parte de quem age "contra", quanto de quem age "em nome" da lei. Apesar de fazermos parte de um tipo de sociedade tecnologicamente considerada evoluída, presenciamos e somos agentes ativos de situações corriqueiras que envolvem alto grau de violência contra o outro.

Não vou me estender a comentar a longa e elaborada reflexão do filósofo sobre os modos de exercício do poder, que evolui da reflexão sobre a disciplina, em sua diferenciação da soberania7, passa pela tematização do biopoder (último capítulo do primeiro volume de História da Sexualidade8 e nos cursos Il faut défendre la société9, Sécurité, territoire, population10 e Naissence de la biopolitique11) e deságua na problemática da governamentalidade. Isto é, do governo de si e dos outros, questão tipicamente contemporânea e intimamente relacionada à ética, que emerge como central para a política com o neoliberalismo (Le gouvernement de soi et des outres12, e Le courage de la vérité13). Um aprofundamento da noção de normalização, que se manifesta na dupla face da disciplina e do biopoder, é fundamental para compreendermos as relações de poder, discriminando nelas a potencialidade de seu oposto: a resistência ou, como Foucault também nomeia, as práticas de liberdade, já que em toda relação de dominação existe necessariamente a potência de resistência a ela. Para uma sociedade que se pretende democrática, a negatividade da dominação via uso da violência é problema difícil, mas não devemos ver nas relações de poder em si mesmas apenas essa dimensão negativa. Foucault não cansará de dizer que o poder é antes de tudo produtivo; produz valores, sustenta saberes e, principalmente, produz modos de sermos sujeitos e relacionarmo-nos com outros sujeitos.

Nas análises do chamado "segundo Foucault" (o de Vigiar e Punir7 e o das análises sobre o biopoder14), o filósofo apresenta extensa pesquisa sobre as formas de normalização dos indivíduos presentes nas sociedades modernas. É fruto da ruptura fundamental com as ordens medieval e monárquica anteriores, baseadas em formas monolíticas e centralizadoras de poder, emanadas da figura central e divina de autoridade, respectivamente: Deus e o rei. Nas sociedades industriais modernas, que instauram o modo republicano de governo, são desenvolvidas múltiplas estratégias de poder que Foucault chama de micropolíticas, pois disseminadas por todo o tecido social (da família à fábrica, passando pela escola, pelas igrejas, etc.), que visam a disciplinar e controlar os indivíduos. Há todo um desenvolvimento da leitura foucaultiana sobre os determinantes econômicos e sociodemográficos para o surgimento desse novo modo de normalização dos indivíduos e da vida das populações, que Foucault chama, respectivamente, de disciplina e de biopoder, cuja exposição extrapolaria os limites deste artigo.15 O importante é que fique bem entendido que para nosso filósofo as estratégias de normalização, isto é, de produção de indivíduos adequados e produtivos para a ordem capitalista industrial emergente, é sempre acompanhada da potência de resistência a ela, por se tratar de ordem sustentada, ao mesmo tempo, na massificação, mas também na individualização de indivíduos supostamente livres. A resistência é o outro lado da moeda da disciplina e do biopoder, no modo de produção capitalista das sociedades industriais. Ela se expressa não só em termos dos grandes movimentos sociais de massa (os chamados movimentos revolucionários), mas também em nível individual, na vida cotidiana e, sobremodo, na manifestação das minorias alijadas do poder (movimentos feministas, homossexuais, étnicos, etc.), de que Foucault será um dos primeiros pensadores do século XX a relevar a significativa importância. Na sequência, voltarei à questão da normalização e do poder disciplinar, forma por excelência do exercício do poder nas sociedades modernas emergentes, mas que será combinada, na atualidade, com outras muito mais sutis de controle.

Um caso particular: a violência nas escolas

A questão da violência nas escolas tem ocupado a mídia. Os atos de violência entre os próprios estudantes e os que a escola é alvo, como depredações e roubos realizados por pessoas, às vezes, membros da própria comunidade à qual a escola serve, como equipamento público, representam objeto frequente de notícias. Por outro lado, tem aumentado o uso de aparatos de segurança e fiscalização por parte das escolas particulares e públicas. Exemplo foi o pacote de medidas adotadas pela rede pública paulista, prevendo a instalação de 11 mil câmeras em escolas. É tipo de estratégia que alguns associam à ideia do panóptico, proposta pelo jurista inglês do século XIX Jeremy Bentham.16 Na entrevista que deu origem a este artigo, o jornalista Rubem Barros me perguntava se esses aparatos "benthamianos" mais modernos não estariam "tomando o lugar disciplinar dos educadores". É uma indagação interessante por colocar em relevo a função disciplinar dos educadores, que merece ser problematizada e revista na atualidade. Penso, entretanto, que deveríamos ter mais cautela nessa aproximação com o panóptico.

A primeira razão para a cautela é que essa estratégia adotada pelas escolas, de espalhar câmeras por todo lado, parece mais representativa da era do controle ilimitado, que tem se expandido nas últimas décadas, com base no temor generalizado do outro, que é visto como potencial agressor ou inimigo, e menos como estratégia repressiva ou reeducadora característica da disciplina. Os estratagemas de vigilância na atualidade parecem mais explicáveis pela ideia de controle tentacular que prolifera nas sociedades contemporâneas, e que foi principalmente analisada por Gilles Deleuze17, do que propriamente pelo modelo disciplinar de Bentham, analisado por Foucault em Vigiar e Punir7. Quem se detém exclusivamente nesse texto foucaultiano sobre o poder pode ficar com a falsa ideia de que a sociedade disciplinar é sem saída ou, pior ainda, que a lógica de vigilância do cárcere tomará toda a sociedade.

Segundo Tadeu16, Bentham pensou o panóptico como modelo arquitetural ideal para as prisões, por favorecer o olhar do vigia e elevar ao nível paroxístico o controle sobre os prisioneiros. Grosso modo, trata-se de estrutura circular abrigando as celas dos prisioneiros com uma torre colocada no centro do edifício, a partir da qual o vigia tem a visão de todas as celas, acessíveis por vidros a esse olho central, pois, iluminadas, em contraluz, por janelas que se abrem a um pátio externo, permitem que tenham visibilidade total. O vigia pode fiscalizar continuamente o que se passa em todo o espaço prisional. Os prisioneiros, entretanto, não o veem, não sabem quando ele está ou não na torre, que é protegida pela obscuridade, pois tem suas janelas abertas apenas na direção das celas. Quem é olhado não vê quem olha, portanto, sente-se olhado permanentemente, sentese censurado continuamente. A tentativa de estar a par do controle é infrutífera para esse prisioneiro. Eis aí o "ovo de Colombo" de Bentham, como ele mesmo se regozija com sua invenção: produzir um sistema de autocensura que visa a minar não só os atos de rebeldia e tentativas de fuga, mas o próprio desejo de cometê-los. Nas celas individuais ou para pequenos grupos é onde os prisioneiros realizariam todas as suas atividades, inclusive o trabalho. Tratase, portanto, de sistema aplicável a qualquer espaço de adestramento ou fiscalização: escolas, fábricas, hospitais; o prisioneiro pode ser substituído por um escolar, trabalhador ou doente. Por essas características, o panóptico foi considerado modelo de fiscalização e controle quase absoluto. Mas, precisamente por se tratar de um modelo ideal, isto é, sem falhas, o panóptico nunca alcançou sua plena realização concreta, nem mesmo nas prisões, onde teve sua experimentação em raríssimos casos (talvez, por serem essas instituições mais repressivas que propriamente disciplinares). De todo modo, nenhuma instituição detém tal poder disciplinador e centralizador absoluto. Isto só poderia ocorrer numa situação monolítica e totalizante de poder, sem brechas para o conflito de interesses, as contradições sociais e as lutas internas. Ora, já vimos que nas sociedades disciplinares, ou normalizadoras, as resistências, os conflitos, as lutas lhes são inerentes. O panóptico encarna mais um princípio da disciplina, a saber, seu ideal de controle, que propriamente sua concretização real.

As câmeras de hoje, como mecanismo de fiscalização de todos sobre todos, aproximam-se, de fato, desse olho do panóptico. Possuem a importante vantagem de prescindir de um vigia físico, que é agora virtual, ou de uma arquitetura física, já que pode estar em e ser acessado de muitos lugares diferentes ao mesmo tempo (da sala do diretor da escola, da delegacia de polícia, do tribunal de júri, como prova, etc.). É precisamente por não se inserir em mesmo tipo de dispositivo fechado e disciplinar, como as prisões, que as câmeras não cumprem uma mesma função centralizadora de controle do panóptico. Ao contrário, estratégias como essa fazem proliferar funções e usos contraditórios: uma mesma pessoa que supostamente se utiliza da câmera para se proteger de um agressor pode passar de possível vítima a ré, isto é, ser ela própria flagrada num ato comprometedor ou ilícito. Essa estratégia nos torna a todos igualmente possíveis suspeitos ou inimigos uns dos outros.

Se a disciplina está na base das instituições modernas, de que a escola é seguramente um exemplo, não podemos esquecer que ela está original e igualmente presente na família, na fábrica, no exército, nas instituições de saúde, como o hospital, nas universidades, nas instituições religiosas, onde, aliás, para Foucault, o modelo tem suas origens. É na disciplina rigorosa dos conventos que se inspirariam as demais instituições disciplinares. A disciplina tem por função, em primeiro lugar, conformar mentes e corpos, isto significa produzir sujeitos adequados a certa ordem societária. Sua função profícua é, pois, produtiva, formadora e apenas secundariamente ortopédica ou punitiva. A disciplina funciona como um conjunto de práticas, de disposições espaciais, de regulação do tempo, de conformação dos gestos, de educação dos sentidos. É uma combinação de todos esses elementos e não apenas a fiscalização ostensiva. O panopticon é a expressão ideal de um princípio de subjugação do sujeito, mas não pode funcionar de modo puro. A disciplina se torna tanto mais bem-sucedida quanto mais contar com a adesão do sujeito nesse processo de normalização. Sua subjugação é tanto mais eficaz quando feita sem violência ou sem a ostentação de poder puramente repressivo. Daí a escola ser uma das instituições disciplinares mais importantes para a civilização moderna, pois formadora de cidadãos úteis e responsáveis. A escola cumpre papel de normalização social primária, complementar à família e cada vez mais, hoje em dia, no lugar da família. Penso que, apesar de toda a crise de legitimidade social por que passa, a escola está longe de desaparecer. Precisamos reconhecer que todas as instituições modernas têm passado, na contemporaneidade, por processos de reformulação que implicam certa flexibilização do modelo estrito da disciplina, sem que este deixe de ser ainda um dos fundamentos reguladores dessas instituições.

Gilles Deleuze17 diz que desde o segundo pósguerra do século XX estamos entrando em outro tipo de sociedade, não mais disciplinar, mas de controle. Os confinamentos, necessários na disciplina,

[...] são moldes, distintas moldagens, mas os controles são uma modulação, como uma moldagem autodeformante que mudasse continuamente, a cada instante [...] numa sociedade de controle a empresa substitui a fábrica e a empresa é uma alma, um gás. [...] A fábrica constituía os indivíduos em um só corpo, para a dupla vantagem do patronato que vigiava cada elemento na massa e dos sindicatos que mobilizavam uma massa de resistência; mas a empresa introduz o tempo todo uma rivalidade inexpiável como sã emulação, excelente motivação que contrapõe os indivíduos entre si e atravessa cada um, dividindo-o em si mesmo. [...] assim como a empresa substitui a fábrica, a formação permanente tende a substituir a escola, e o controle contínuo substitui o exame. Esse é o meio mais garantido de entregar a escola à empresa.17:221

A outra razão para termos cautela com a metáfora do panóptico diz respeito a que a violência entre crianças e jovens que tem acontecido no interior das escolas ou acometido os próprios estabelecimentos escolares tem de ser vista a partir de pelo menos dois aspectos: a violência interna e a "externa" ou, mais precisamente, a violência social.

O primeiro aspecto diz respeito à questão da "violência" do ponto de vista do interior da própria instituição e que aparece para os educadores, no cotidiano de sua prática educativa, como embates e confrontos, em alguns casos contendo alto grau de agressividade mútua, entre professores e alunos e entre colegas. Preferiria não qualificar a priori este aspecto no espectro da violência, a não ser quando a situação extrapola em intencionalidade, mais que em intensidade, como diz André Lévy3, numa vontade de destruição do outro, gerando atos (verbais ou físicos) inequivocamente violentos. Prefiro pensar esses embates como expressão de jogos de poder que, eventualmente, podem desencadear a violência. Apesar de não ser uma coisa nova, os conflitos na escola têm adquirido dimensão maior, mais evidente, talvez devido à crise de legitimidade social da disciplina de modo geral. Na verdade, a questão do poder está posta pelo próprio discurso e pelas práticas da instituição escolar, que é uma instituição disciplinar, normalizadora. Por quê? O que se espera das instituições sociais na modernidade? Precisamente, normalizar os indivíduos, produzir indivíduos mais dóceis e conformes às normas e aos valores sociais dominantes. Essas instituições têm papel fundamental de socialização, de formação e de produção de indivíduos, como toda instituição social. Ocorre que, no caso das sociedades modernas, essa socialização é feita por meio do modo paradoxal da normalização, típico de nossas sociedades, que implica a um só tempo a liberdade e a dominação desses mesmos indivíduos individualizados. Outros modos de socialização podem ser constados na história das sociedades humanas, como, por exemplo, o modo ritualístico, que não desaparece nas sociedades modernas, mas que se torna francamente secundário. Vemos, com a antropologia, que o próprio conceito de indivíduo pode não existir em certas sociedades holísticas.18 Dada essa condição de instituição civilizadora, os conflitos sociais se manifestam inevitavelmente dentro da escola. Os conflitos de autoridade e geracionais são praticamente inevitáveis. As instituições disciplinares implicam uma hierarquização do poder e do saber e os alunos nessa situação estão submetidos ao jogo de poder da escola.

O segundo aspecto é que esses conflitos internos são perpassados pelas contradições da sociedade: por preconceitos de classe e de raça, pelas desigualdades sociais. A escola tem se tornado alvo de violência "externa" (entre aspas, pois não se trata de algo que venha exatamente "de fora", mas que faz parte dela, como instituição social que é), que a tem atingido de maneira exacerbada, num crescente que acompanha a violência urbana mais ampla. Daí esse uso de novas estratégias de controle, como o uso exacerbado de câmeras, para tentar controlar a violência que tem invadido as escolas. É preciso diferenciar essa violência social da relação de poder inerente à normalização. A violência é algo da ordem da destruição, do massacre, do desrespeito absoluto ao outro. Nesse caso, as escolas têm sido vítimas inegáveis da violência proveniente do uso abusivo de drogas, de seu tráfico e do tráfico de armas, do pouco valor dado à vida humana nesse contexto urbano de um tipo especial e novo de guerra que estamos vivendo. A violência tem produzido situações e atos absurdos de extermínio de jovens com índices de mortalidade mais altos que aqueles verificados em países em guerra.

Quando falo de relações de poder e do papel civilizatório e normalizador da instituição escolar, refirome exatamente a pensar o poder de uma outra maneira, não apenas como controle e subjugação, mas como algo em que se baseiam todas as instituições sociais. E que é positivo, não no sentido de ser bom, mas de ser eficaz, produtivo, porque não produzimos nada se não houver limites, se não houver normas e regras para as ações. Nessa questão de se formar um cidadão está implícito um jogo de forças. O poder que é só negativo, que só controla ou pune é pouco eficaz porque pressupõe o uso da força por parte de quem está submetendo o outro. E nas sociedades que se reinventaram na democracia, a partir da sociedade grega antiga, o valor da liberdade e o da igualdade entre os indivíduos são valores básicos. É exatamente por isso que o poder disciplinar é o poder típico da sociedade moderna, pois pressupõe indivíduos livres e a adesão desses indivíduos às normas, cuja ideologia certamente cumpre um papel, mas é absolutamente insuficiente para explicar o poder. O poder não é uma questão de violência, de força bruta, como nos regimes absolutistas e totalitários, paradoxos da história moderna, que evidenciam a potência de exacerbação de seu exercício.

O recente filme francês Entre os muros da escola, de Laurent Cantet, ganhador da Palma de Ouro no Festival de Cannes em 2008 e baseado em livro homônimo de François Bégaudeau, que interpreta o professor protagonista, deveria ser visto por professores, pais e estudantes. O filme trata daquele primeiro aspecto das relações de poder no cotidiano da escola, traduzido pelo confronto entre professores e alunos. Os adolescentes do filme estão vivendo uma fase da vida em que a agressividade é fundamental e diria mesmo saudável. O tempo todo eles confrontam a coerência do professor, os valores que este tenta passar ou reproduzir para seus alunos. É forma de resistência salutar, pois é formadora. Não se trata de mera rebeldia, os estudantes estão tentando encontrar os seus referenciais morais e éticos para a vida. Estão num momento de passagem para a idade adulta e fazem isso por meio da contestação, de um teste dos valores que os adultos querem lhes impor. E há uma ética entre eles. Quando um aluno briga com outro, eles se xingam, mas na hora em que aquele com quem ele briga é desafiado pelo professor, eles se aliam. É a ética do companheirismo, da camaradagem, em meio a um conflito geracional inevitável.

Nessa altura da entrevista, o jornalista Rubem Barros me confronta dizendo que, no filme, os alunos põem em questão todo "o universo do saber, não veem utilidade na linguagem culta, tomando-a como um mero artifício de poder", e me indaga se a escola não teria perdido "a capacidade de produzir discursos formadores de saber e indutores do prazer na relação com o conhecimento". Questão importantíssima que atinge o coração da educação formal. Mas, o que me pergunto é se algum dia a escola exerceu essa capacidade plenamente e sem problemas. Desconfio de avaliações que dizem que o que estamos vivendo é consequência da falência das instituições. Segundo esse discurso, a escola estaria falida como instituição formadora, a família como referência moral, e assim por diante. Será que a escola ou qualquer outra instituição consegue realizar de maneira tão harmônica os princípios a que se propõe? Ora, a sociedade é cheia de conflitos, contradições e lutas. Não vivemos numa sociedade harmônica. A escola antiga era mais rígida e mais presa a esse modelo disciplinar tradicional. As sociedades poderiam ser mais estáveis em termos de conflito social, como, por exemplo, o Brasil dos anos "dourados" de 1950. Mas a custa de quê? De uma exclusão acentuada de jovens e crianças da escola. A partir dos anos de 1960, vivemos a transformação das instituições disciplinares, que tem um lado positivo importante, de crítica a essa estrutura hierárquica rígida, na qual o saber está de um lado e as faltas, o não-saber, de outro. O referido filme é bonito porque mostra os esforços, às vezes desastrosos, dos professores de uma escola da periferia de Paris, cuja maioria dos alunos é constituída de filhos de imigrantes, pessoas pobres sem o mesmo acesso à sociedade e à cultura letrada francesa, para compreender esses meninos e meninas, dialogar com eles.

A autoridade não está assegurada a priori por regimentos, normatizações (regras escritas), diploma ou cargo de autoridade. As famílias têm tido dificuldade de exercer essa autoridade sobre os jovens e as crianças porque, para construí-la, é preciso ser um sujeito consistente, autônomo, ciente das próprias limitações. Os pais e famílias das classes mais pobres estão em condições de sobrevivência tão terríveis que impedem qualquer forma de parar para pensar nos cuidados a seus filhos. E as famílias de classe média e média alta têm abandonado esse trabalho de construir sujeitos autônomos a instituições que lhes substituam. Então, existe um problema que está nos níveis mais elementares do tecido social. A autoridade é algo que se constrói nas relações, não existe modelo para ela. Nesse sentido, a violência propriamente dita, a que brota no seio da vida social urbana, precisa ser enfrentada pela sociedade inteira; por todos nós e cotidianamente. Precisamos refletir sobre como, nos pequenos gestos e palavras direcionadas ao outro, estamos (re)produzindo ou combatendo a violência.

 

AMPLIANDO O DEBATE: O PAPEL DAS POLÍTICAS PÚBLICAS NO COMBATE À VIOLÊNCIA

O caminho para se combater a violência não pode vir de uma política imposta de cima para baixo, o que parece um contrassenso. Importa encontrar estratégias que ajudem a construir um sistema de autoridade compartilhado que ao menos minimize a violência exacerbada que atinge a escola e nela se reproduz. O problema é que as políticas públicas costumam ser planejadas em gabinetes, por especialistas que fazem muitas pesquisas para subsidiar as estratégias sugeridas, mas fazem pouca articulação com as bases comunitárias, com quem vive na pele os problemas da violência ou com quem terá de implementar as políticas, a partir de seu trabalho cotidiano. Talvez uma das formas de construir melhor essas ações seja permitir que as escolas e as comunidades pensem, conjuntamente com os especialistas, as estratégias. Não basta só haver cartilhas e manuais gerais que indiquem como agir em algumas situações ou que tragam alguns princípios e valores como diretrizes para a ação. As pessoas precisam estar realmente engajadas em projeto comum, coletivo. O Estado pode disponibilizar recursos, estrutura, material de trabalho, isto é, pode fornecer os meios para que as comunidades locais construam os seus modos de atuação, valorizando os recursos nelas existentes. Quem vive na comunidade sabe melhor do que qualquer especialista por onde passa a violência em potencial. Táticas unidirecionais como o toque de recolher para crianças e adolescentes, para que saiam das ruas depois das 23 horas, parecem completamente inócuas. É impressionante a facilidade com que apelamos para medidas repressivas quando as coisas fogem ao nosso controle. Quando a violência nos atinge de forma muito próxima, pensamos em revanche, em resposta violenta contra a violência; por exemplo, na evocação da pena de morte frente ao crime horrendo. O toque de recolher é, na verdade, espécie de policiamento da vida, da família e da população em geral. Faz-nos pensar no outro braço da normalização, que é o biopoder - conceito desenvolvido por Foucault em sua analítica do poder para dar conta do controle sobre a própria vida e sobre a população, exercido pelo governo e pelo Estado com o auxílio de novos saberes como a demografia, a saúde pública e, nela, especialmente a epidemiologia, o urbanismo, etc.

Impor por meios legais uma hora para o adolescente estar em casa, levá-los para o Conselho Tutelar, caso não cumpram a lei, ou aumentar o policiamento nas ruas não irá eliminar per se a exposição desses jovens ao risco. Tornar o Conselho Tutelar cada vez mais policialesco não vai nos ajudar. Quem tem responsabilidade sobre as crianças e os jovens são, em primeiro lugar, os pais ou responsáveis. É norma de nossa ordem sociocultural. Ademais, se o jovem está se drogando, não é o toque de recolher que vai reverter essa situação. Se pensarmos bem, já temos leis e normatizações demais, o que precisamos é reconstruir os laços sociais, familiares e comunitários que nos tornem capazes de pautar nossa conduta mais pela atitude ética, pela crítica reflexiva de compromisso com a busca da verdade, e menos pela mera normalização social.

 

REFERÊNCIAS

1. Enriquez E. De la Horde A Letat. Paris: Gallimard; 2003.

2. Enriquez E. A Organizaçao em analise. Petrópolis: Vozes; 1997.

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5. Castel R. A gestão dos riscos: da antipsiquiatria à pós-psicanálise. Rio de Janeiro: Francisco Alves; 1987.

6. Passos IF. O poder positivo. Entrevista a Rubem R. M. Barros. Educação agosto 2009,148. [Citado em 2010 mar. 09]. Disponível em: http://revistaeducacao.uol.com.br/textos.asp?codigo=12743.

7. Foucault M. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. 18ª ed. Petrópolis: Vozes; 1998.

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9. Foucault M. Il faut défendre la société. Cours au Collège de France (1975-1976). Paris: Seuil/Gallimard; 1997.

10. Foucault M. Sécurité, territoire, population. Cours au Collège de France (1977-1978). Paris: Seuil/Gallimard; 2004.

11. Foucault M. Naissance de la biopolitique. Cours au Collège de France (1978-1979). Paris: Seuil/Gallimard; 2004.

12. Foucault M. Le gouvernement de soi et des autres. Cours au Collège de France (1982-1983). Paris: Seuil/Gallimard; 2008.

13. Foucault M. Le courage de la vérité. Le gouvernement de soi et des autres II. Cours au Collège de France (1984). Paris: Seuil/Gallimard; 2009.

14. Foucault M. Microfísica do poder. (1977) 11ª ed. Rio de Janeiro: Graal; 1995.

15. Passos IF, organizador. Poder, normalização e violência. Incursões foucaultianas para a atualidade. Belo Horizonte: Autêntica; 2008.

16. Tadeu T, organizador. O Panóptico/Jeremy Bentham. Belo Horizonte: Autêntica; 2008.

17. Deleuze G. Post-scriptum sobre as sociedades de controle. In: Deleuze G. Conversações. Rio de Janeiro: Editora 34; 1992. p.219-26.

18. Strathern M. O gênero da dádiva. Problemas com as mulheres e problemas com a sociedade na Melanésia. Campinas: Unicamp; 2009.