RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 20. 2

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Relato de Caso

Síndrome de Cushing na gravidez: relato de caso

Cushing syndrome in pregnancy: case report

Jonas Soares Silva Santos1; Lucas Ligeiro Barroso Santos1; Thiago José Albuquerque Santana1; Jander Toledo Ferreira2; Henrique Vitor Leite3; Anelise Impelizieri Nogueira4

1. Alunos do curso de Medicina da Faculdade de Medicina da UFMG, Belo Horizonte, MG - Brasil
2. Cirurgião-Geral da Equipe de Cirurgia do Hospital das Clínicas da UFMG, Belo Horizonte, MG - Brasil. Membro Especialista da Sociedade Brasileira de Cirurgia
3. Professor, Doutor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais. Diretor de Ensino, Pesquisa e Extensão do Hospital das Clínicas da UFMG, Belo Horizonte, MG - Brasil
4. Professora, Doutora do Departamento de Clínica Médica do Hospital das Clínicas da UFMG. Coordenadora do Ambulatório de Gestações de alto-risco em endocrinologia do HC-UFMG, Belo Horizonte, MG - Brasil

Endereço para correspondência

Faculdade de Medicina da UFMG, Departamento de Clínica Médica
Av. Professor Alfredo Balena, 190, Santa Efigênia
Belo Horizonte, Minas Gerais
Email: anelise@medicina.ufmg.br

Recebido em: 06/05/2009
Aprovado em: 14/04/2010

Instituição: Faculdade de Medicina da UFMG, Belo Horizonte, MG - Brasil

Resumo

A ocorrência de síndrome de Cushing (SC) durante a gravidez é rara, com menos de 150 casos reportados na literatura. Este relato demonstra a dificuldade diagnóstica e a gravidade da desordem adrenal específica durante a gestação, assim como a necessidade de diagnóstico e intervenção precoces. Este trabalho apresenta paciente portadora da SC com início das suas manifestações clínicas a partir do terceiro mês de gestação. Foi realizada durante a gestação a investigação bioquímico-laboratorial, que permitiu avaliação clínico-laboratorial e confirmação diagnóstica de SC. O método de imagem empregado foi a ressonância magnética do abdômen. Após a cirurgia por videolaparoscopia, houve redução do peso e dos níveis pressóricos e normalização dos níveis do cortisol plasmático e urinário, além do controle dos níveis glicêmicos.

Palavras-chave: Síndrome de Cushing; Gravidez; Laparoscopia.

 

INTRODUÇÃO

A síndrome de Cushing (SC) resulta das manifestações clínicas secundárias à exposição prolongada de quantidades elevadas de glicocorticoides livres plasmáticos.1 A SC endógena resulta de hiperprodução de glicocorticoides pelo córtex da adrenal, o que ocorre em 80 e 20% dos casos na dependência e independência, respectivamente, do hormônio adrenocorticotrófico (ACTH). A SC dependente de ACTH é causada, principalmente, por tumores hipofisários corticotróficos, produtores de ACTH1, definindo a doença de Cushing. Pode ser causada, raramente, por produção ectópica de ACTH ou por tumores secretores de CRH. A SC ACTH-independente é ocasionada por tumores adrenais benignos ou malignos ou por hiperplasia adrenal bilateral.1

Existem peculiaridades da SC quando se manifesta em grávidas no tocante à etiologia, manifestações e tratamento.2,3 A gravidez representa estado de relativo hipercortisolismo, resultante da interação entre o eixo hipotálamo-hipofisário materno e o fetoplacenta. Na gestação normal, hipercortisolismo e hiperaldosteronismo não são clinicamente aparentes. Porém, as desordens adrenais que ocorrem na gestação contribuem para significativa morbidade materno-fetal. A apresentação clínica da SC durante a gestação é semelhante à da população geral, exceto pela manutenção dos ciclos menstruais normais antes da concepção. Associa-se com a alta morbidade materna, incluindo pré-eclâmpsia, hipertensão, diabetes mellitus, fraturas e infecções oportunísticas, inclusive morte.2,3 Os efeitos do hipercortisolismo sobre o feto incluem abortamento espontâneo, morte perinatal, parto prematuro e crescimento intrauterino restrito.2,3 Desta forma, o diagnóstico e tratamento precoces da SC durante a gestação são fundamentais para a saúde do concepto.

 

RELATO DE CASO

AAFRA, 27 anos de idade, dentista, leucodérmica, primigesta, com história familiar de hipertensão arterial sistêmica (HAS) e diabetes mellitus (DM) e ciclos menstruais normais, com dificuldade para perder peso nos últimos anos.

O início do pré-natal (PN) foi sem intercorrências até 12 semanas de gestação, quando houve súbita elevação da pressão arterial sistêmica (PA) para 150/90 mmHg, da frequência cardíaca (FC) e do peso corporal. Nessa ocasião, notou-se aumento da oleosidade cutânea e da acne, ganho excessivo de peso, palpitações, edema de membros inferiores e o surgimento de manchas hipercrômicas nas mãos e de estrias nas mamas e no abdômen.

Foi encaminhada ao serviço de endocrinologia e PN de alto risco na 20ª semana de gestação, por apresentar elevação progressiva nos níveis pressóricos, atingindo 200/110 mmHg, apesar do uso de propranolol e metildopa.

Apresentava TSH suprimido, com T4 livre dentro dos limites da normalidade, anticorpos antitireoidianos negativos e tireoide não palpável. Nessa ocasião foi diagnosticado diabetes mellitus gestacional (DMG), utilizando-se dos critérios da ADA, com glicemias em jejum, uma, duas e três horas após 100 g de dextrosol, respectivamente, 85, 173, 182 e 180 mg%, sendo iniciadas monitorização glicêmica e dieta adequada.

A partir de 24 semanas de gestação houve agravamento das manifestações clínicas, além de noctúria, fraqueza muscular e surgimento de pelos terminais na face, sem controle adequado dos níveis pressóricos, que se mantinham entre 180 e 190/100 mmHg em decúbito lateral e em ortostatismo. Apresentava, então, TSH e T4livre dentro dos limites da normalidade e controle glicêmico limítrofe.

Iniciada propedêutica para SC com realização de cortisol livre urinário, ACTH e ritmo de cortisol diurno (não estava disponível na ocasião a dosagem de cortisol salivar), com resultados que sugeriram a hipótese de SC provável de origem adrenal, visto o valor de ACTH = 2,0 pg/mL. O cortisol plasmático, cortisol livre urinário, ACTH plasmático, TSH e T4 livre foram determinados por quimioluminescência. As metanefrinas urinárias estavam dentro da normalidade.

Realizou-se RNM de abdômen (Figuras 1 e 2), que revelou lesão expansiva de suprarrenal esquerda, com presença de nódulo de 4,0/3,0 cm.

 

 

A paciente foi submetida à cirurgia videolaparoscópica na 20ª sexta semana de gestação, sendo realizada adrenalectomia esquerda.

A lesão era de coloração acastanhada, consistência firme e elástica, medindo 7,5/5,0/3,0 cm e pesando 41 gramas.

A lesão revelou superfície de corte com nódulo de coloração amarelada, de aspecto sólido e consistente, medindo 4,0/3,5 cm. O exame microscópico diagnosticou adenoma de córtex, com padrão sólido, encapsulado, e focos de calcificação, sem evidências de necrose, reproduzindo rudimentarmente a forma glomerulosa e fasciculada. Não foi identificada invasão capsular, vascular ou fibrose expressiva. Havia várias áreas de pleomorfismo nuclear e baixo índice mitótico, sem identificação de foco de mielolipoma.

Após a cirurgia, houve normalização dos níveis pressóricos, redução de peso corporal e de todos os sintomas iniciais. O restante da gestação transcorreu sem outras anormalidades, sem uso de medicamentos hipotensores, obtendo-se regularização dos níveis de TSH e adequado controle glicêmico, mesmo sem dieta específica.

O parto cesáreo ocorreu com 36/37 semanas de gestação devido à amniorrexe prematura, com RN baixo peso sem complicações. A paciente teve nova gestação sem intercorrências, quatro anos depois.

 

DISCUSSÃO DE CASO

A ocorrência de SC durante a gravidez é rara, com menos de 150 casos reportados na literatura.1 Facilmente confundida com pré-eclâmpsia e diabetes gestacional, é associada a alta morbimortalidade materno-fetal1: aumenta as taxas de infecções oportunistas, fraturas, aborto espontâneo, morte perinatal, prematuridade e retardo do crescimento intrauterino.2,3

A fertilidade encontra-se reduzida nesse tipo de paciente, porque o hipercortisolismo e o hiperandrogenismo apresentam efeitos supressivos sobre a função reprodutiva da mulher.4 Mas isso não exclui a possibilidade de fecundação, principalmente nas fases iniciais da enfermidade, quando a ovulação se processa normalmente.4 A gestação afeta de maneira dramática o eixo hipotálamo-hipófise-adrenal materno, resultando em aumento da produção hepática da globulina ligadora de corticosteroides (CBG), aumento dos níveis séricos, salivares e livres urinários de cortisol, falta de supressão do cortisol após administração de dexametasona e produção placentária de CRH e ACTH. Além disso, pode também ocorrer bloqueio da resposta do ACTH e do cortisol ao CRH exógeno.5 Assim, o diagnóstico de SC durante a gravidez torna-se muito mais difícil. A falha em se diagnosticar SC é também comum, já que a síndrome pode ser facilmente confundida com pré-eclampsia ou diabetes gestacional.2-4

Foi observado nessa paciente e nas mulheres grávidas, especialmente na primeira metade da gestação, a supressão do TSH (hormônio tireoideoestimulante) devido à ligação de uma fração da molécula do hormônio β-HCG nos receptores de TSH da glândula tireoidea, sem, contudo, determinar hipertireoidismo.6 A paciente apresentou, em consequência, estado de "pseudo-hipertireoidismo" transitório.

A SC de ocorrência na gravidez é, usualmente, associada a graves complicações materno-fetais. Seu diagnóstico e tratamento precoces são fundamentais para a progressão adequada da gravidez.

O diagnóstico da SC consiste, inicialmente, em afastar o uso exógeno de glicocorticoides (em que os valores de cortisol e ACTH são indetectáveis) e documentar o hipercortisolismo endógeno. Isto é feito pelas dosagens salivares, urinárias ou séricas de cortisol, em amostras coletadas em horários apropriados e/ou após uso de dexametasona em doses baixas. A seguir, procede-se ao diagnóstico etiológico da SC empregando-se basicamente dosagens de ACTH e de cortisol após o uso de doses mais altas de dexametasona, não utilizadas nesta paciente devido à gravidade dos níveis pressóricos e do descontrole metabólico. A complexidade da doença, muitas vezes, exige o uso de testes funcionais mais sofisticados, como o emprego do CRH, chegando a ser necessário o cateterismo do seio petroso inferior, com coleta de amostras para dosagem de ACTH e, por fim, a realização de exames de imagem.1,7,8

A utilização de múltiplos testes e a avaliação de seus resultados de forma conjunta são vitais para a obtenção do diagnóstico da SC.7,8 Todavia, cabe salientar que não há consenso de qual a melhor forma de confirmar-se o diagnóstico clínico e de definiremse as causas da SC. Entretanto, a maioria dos protocolos de investigação utiliza, no mínimo, dois testes funcionais que enfocam diferentes aspectos da fisiopatologia do eixo hipotálamo-hipófise-adrenal.3,5,7 Entre esses testes, destaca-se a dosagem do cortisol salivar e urinário livre, a dosagem sérica do ACTH e o teste com altas doses de dexametasona.

Durante a gravidez, o tratamento clínico da hipertensão em casos leves pode ser suficiente até o parto. Isso também é recomendado para casos diagnosticados na gravidez avançada. Entretanto, a cirurgia é o tratamento de escolha para a SC na gravidez3,7,8, exceto, talvez, no final do terceiro trimestre, sendo o tratamento medicamentoso a segunda opção.

Os adenomas adrenais parecem ser a causa mais comum de SC na gestação, representando cerca de 50 a 60% dos casos2,3,7,9, seguidos dos adenomas hipofisários. Em presença de adenomas, a exérese exclusiva da glândula afetada se impõe9. A cirurgia pode ser ampliada em face de tumores malignos.

De acordo com o seguimento dos pacientes com SC adrenal na gestação, observa-se cura na maioria.9

Diante do exposto, é importante salientar a necessidade de diagnóstico e tratamento precoces para minimizar os efeitos adversos do hipercortisolismo sobre a mãe e o feto. Diante de suspeita do diagnóstico de Cushing, testes específicos devem ser realizados em curto intervalo de tempo e o tratamento instituído o quanto antes, o que pode modificar, em muitos casos, a história natural dessa rara e grave enfermidade.

 

REFERÊNCIAS

1. Newell LP J, Bertagna X, Groossman AB, Nieman LK. Cushing's syndrome. Lancet. 2006;367:1605-17.

2. Lindsay JR, Jonklaas J, Oldfield EH, Nieman LK. Cushing's Syndrome during pregnancy: personal experience and review of the literature J Clin Endocrinol Metab. 2005;90:3077-83.

3. Lindsay JR, Nieman LK. Adrenal disorders in pregnancy. Endocrinol Metabol Clin North Am. 2006;35:1-20.

4. Wallace C, Toth EL, Lewanczuk RZ, Siminoski K. Pregnancy-induced Cushing's syndrome in multiple pregnancies. J Clin Endocrinol. 1996;81(1):15-21.

5. Lindsay JR, Nieman LK. The hypothalamic-pituitary-adrenal axis in pregnancy: Challenges in disease detection and treatment. Endocrinol Rev. 2005;26:775-99.

6. Marx H, Amin P, Lazarus JH. Hyperthyroidism and pregnancy. BMJ. 2008;336(7645):663-7.

7. Vilar L, Freitas MC, Lima LHC, Lyra R, Kater C. Cushing's Syndrome in pregnancy: an overview. Arq Bras Endocrinol Metab. 2007;51:1293-1302.

8. Findling JW, Raff H. Cushing's Syndrome: important issues in diagnosis management. J Clin Endocrinol Metab. 2006;91:3746-53.

9. Shaw JA, Pearson DW, Krukowski ZH, Fisher PM, Bevan JS Cushing' syndrome during pregnancy: curative adrenalectomy at 31 weeks gestation. Eur J Obstet Gynecol Reprod Biol. 2002;105:189-91.