RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 20. 2

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História da Medicina

Breve história da eletrocardiografia

Brief history of the electrocardiography

Rodrigo Tobias Giffoni1; Rosália Morais Torres2

1. Médico. Residente de Clínica Médica do Hospital das Clínicas da UFMG, Belo Horizonte, MG - Brasil
2. Professora da Disciplina Registros Gráficos em Cardioangiologia, Faculdade de Medicina da UFMG. Cardiologista do Hospital das Clínicas da UFMG, Belo Horizonte, MG - Brasil

Endereço para correspondência

Rosália Morais Torres
Av. Prof. Alfredo Balena, 190
Belo Horizonte, MG - Brasil, CEP: 30130-100
Email: rmtorres@medicina.ufmg.br

Recebido em: 29/04/2009
Aprovado em: 26/11/2009

Instituição: Hospital das Clínicas de UFMG

Resumo

A eletrocardiografia nasceu e desenvolveu-se graças a pesquisadores ilustres que souberam captar o desenvolvimento da eletrofisiologia e de novas tecnologias na elaboração de uma ferramenta diagnóstica sem precedentes. Einthoven pode ser considerado o pai da eletrocardiografia, já que seu galvanômetro de corda permitiu registros fidedignos e com padronização empregada até hoje. Thomas Lewis foi grande estudioso das arritmias, sucessor de Einthoven, e professor de Frank N. Wilson. As derivações unipolares de Wilson permitiram o registro dos potenciais elétricos em qualquer parte do corpo. A eletrocardiografia também propiciou o estabelecimento da teoria coronariana das síndromes anginosas e, mais recentemente, novas aplicações clínicas, tais como os testes ergométricos, eletrofisiológicos, holter e a eletrocardiografia de alta resolução.

Palavras-chave: História da Medicina; Eletrocardiografia/história; Técnicas de Diagnóstico Cardiovascular; Angina Pectoris; Arritmias Cardíacas.

 

INTRODUÇÃO

A invenção do eletrocardiógrafo, em 1902, pelo fisiologista holandês Willem Einthoven, juntamente com a descoberta dos Raios-X, em 1895, contribuiu para inaugurar uma nova era na Medicina. O emprego de tecnologias para auxiliar os sentidos desarmados remonta a 1819, quando o médico francês René Laennec inventou o estetoscópio.1

A eletrocardiografia possibilitou conhecimento mais amplo acerca das arritmias e da cardiopatia isquêmica. Ao longo de sua evolução, consolidou-se e ganhou ampla aceitação entre os médicos.2,3

De todos os estudiosos da eletrocardiografia, não se pode deixar de mencionar três nomes: Willem Einthoven, Thomas Lewis e Frank N. Wilson. Einthoven soube aplicar os fundamentos da eletrofisiologia e da tecnologia de sua época na elaboração do galvanômetro de corda, instrumento que permitiu o primeiro registro eletrocardiográfico fidedigno, sem a necessidade de correção matemática.2 Thomas Lewis dedicou grande parte dos seus estudos à compreensão das arritmias. Wilson introduziu as derivações unipolares, o que permitiu posteriormente a padronização do sistema de 12 derivações. Com o tempo, os eletrocardiógrafos tornaram-se mais leves e portáteis, popularizaram-se. Novas aplicações clínicas tornaram-se possíveis graças a ferramentas diagnósticas diversas, tais como o teste ergométrico, o estudo eletrofisiológico, o holter e a eletrocardiografia de alta resolução.

 

PRECURSORES

Ao longo do século XIX, a eletrofisiologia surgiu e desenvolveu-se. Em 1842, o físico italiano Carlo Matteucci demonstrou que uma corrente elétrica acompanhava cada contração cardíaca. No ano seguinte, o fisiologista alemão Emil DuBois-Reymond, considerado o fundador da eletrofisiologia, descreveu o potencial de ação e confirmou a descoberta de Matteucci feita em coração de sapo. O primeiro potencial de ação cardíaco foi registrado em 1856 pelos fisiologistas Rudolph Von Koelliker e Heinrich Muller.1

A invenção do eletrômetro capilar pelo físico francês Gabriel Lippman, em princípios da década de 1870, possibilitou, em 1878, a descoberta de duas fases do ciclo cardíaco - a despolarização e a repolarização - pelos fisiologistas britânicos John Burdon Sanderson e Frederick Page.1 Gabriel Lippman, em 1908, recebeu o prêmio Nobel por seu trabalho em outra área: fotografia em cores.2

O primeiro eletrocardiograma humano foi registrado pelo fisiologista Augustus D. Waller, em experimentos realizados com o eletrômetro capilar de Lippman, em 1887 (Figura 1). Ele conectou eletrodos no tórax, anterior e posteriormente, e demonstrou que cada batimento cardíaco era acompanhado por uma oscilação elétrica. Com isso, provou que a atividade elétrica precedia a contração cardíaca, o que descartava a possibilidade de os registros serem artefatos provocados pela alteração do contado entre os eletrodos e a pele durante os impulsos cardíacos. Waller não acreditava na aplicabilidade clínica da eletrocardiografia, concluindo que as dificuldades técnicas a impossibilitavam.1,2 Entretanto, seus estudos contribuíram de forma decisiva para o desenvolvimento da eletrocardiografia. A observação interessante que realizou foi a de que se podia registrar os potenciais elétricos a partir dos membros submersos em soluções salinas.1 Seu cachorro, Jimmy, foi utilizado em suas demonstrações em aulas. O Bulldog ficava com suas patas submersas em soluções salinas em baldes. Essa atitude quase foi condenada pela Câmara dos Comuns pelo Cruelty to Animals Act" de 1876 (Figura 2).4

 


Figura 1 - O eletrômetro de Lippman.
Fonte: Obtida de Aquilina O.A brief history of cardiac pacing. Images Paediatr Cardiol. 2006;27:1781 (http://www.sahha.gov.mt/pages.aspx?page=665 Acessado em 22 março de 2009.) permitido uso pessoal ou público não comercial.

 

 


Figura 2 - Waller e seu cachorro, Jimmy, o qual foi utilizado em suas demonstrações em aulas. O Bulldog ficava com suas patas submersas em soluções salinas dentro de baldes. Essa atitude quase foi condenada pela Câmara dos Comuns pelo "Cruelty to Animals Act" de 1876.
Fonte: Obtidas de http://en.ecgpedia.org/wiki/A_Concise_History_of_the_ECG#bibkey_Wood. Acessado em 22 março de 2009.

 

EINTHOVEN

Waller demonstrou sua técnica de registro de potenciais elétricos cardíacos no Primeiro Congresso Internacional de Fisiologistas, em Basel, Suíça, em 1889. Esse evento estimulou Einthoven e outros pesquisadores a trabalharem com o eletrômetro capilar de Lippman e a aperfeiçoá-lo (Figura 3). Einthoven percebeu a limitação de frequência que o aparelho apresentava e, a partir de recursos matemáticos, conseguiu um traçado muito próximo do real. O grande problema do eletrômetro residia na inércia do mercúrio contido num tubo capilar e em interface com ácido sulfúrico dentro do mesmo. O movimento do mercúrio era ampliado e registrado em papel fotográfico.2,3 A solução foi alcançada por Einthoven com a elaboração do galvanômetro de corda, instrumento que revolucionou e, de forma concreta, alicerçou a eletrocardiografia. Para isso, foi fundamental a invenção do galvanômetro, usado em telégrafo, pelo físico francês Arsène D`Arsonval e pelo engenheiro francês Clement Ader, em trabalhos independentes. O invento de Einthoven consistia de um finíssimo filamento de quartzo recoberto por prata, esticado num campo magnético criado por um eletroímã. Mesmo a corrente elétrica fraca de um potencial cardíaco seria capaz de mover o filamento. A oscilação deste dependia da magnitude e direção da corrente elétrica. As sombras geradas pela movimentação do fio de quartzo eram projetadas num filme fotográfico, que rodava à velocidade de 25 mm/s, como nos eletrocardiógrafos atuais. A relação entre a amplitude do traçado e a voltagem era controlada pela tensão do filamento.1,2

 


Figura 3 - Willem Einthoven.
Fonte: Obtidas de http://en.ecgpedia.org/wiki/A_Concise_History_of_the_ECG#bibkey_Wood. Acessado em 22 março de 2009.

 

O aparato de Einthoven pesava cerca de 270 kg e estava localizado no laboratório da universidade de Leyden, quase a uma milha do hospital universitário.1,3 Ele era difícil de ser operado, necessitando de cinco pessoas.3 Para registrar os eletrocardiogramas dos pacientes internados, Einthoven recorreu à sugestão de seu colega Johannes Bosscha, isto é, conectou seu instrumento na linha telefônica de modo a transmitir os impulsos elétricos dos pacientes do hospital até seu laboratório. No domingo de 22 de março de 1905, foi realizado o primeiro teleeletrocardiograma. Einthoven também conectou um microfone ao tórax dos pacientes, realizando, além disso, o primeiro telefonocardiograma. Era o nascimento da telemedicina.1,3,5

A construção do eletrocardiógrafo de Einthoven representou a síntese de várias ideias desenvolvidas ao final do século XIX.2 Recorreu ao galvanômetro, já mencionado, e ao desenvolvimento dos oscilógrafos para medição de correntes alternadas e da indústria de cabos transoceânicos; à melhoria das emulsões fotográficas, das lentes de projeção e à criação de técnicas para construção de filamentos de quartzo. Esses filamentos, pesando um milionésimo do grama, poderiam responder a um milionésimo de milionésimo de um ampere (10-12 amp).2

Em 1913, Einthoven introduziu o conceito de vetor cardíaco e defendeu seu uso clínico na distinção entre hipertrofias e mudanças na posição do coração, inaugurando a vetocardiografia. Em 1924, quando ganhou o prêmio Nobel de Fisiologia e Medicina pelo desenvolvimento do galvanômetro de corda e suas aplicações, mencionou em seu discurso a satisfação que tinha de que os seus cálculos de correção dos registros com o eletrômetro de Lippman estavam corretos e pelo fato do galvanômetro de corda ter cumprido seu papel (Figura 4).2

 


Figura 4 - Registro obtido pelo eletrômetro capilar de Lippman (acima), correção matemática realizada por Einthoven (registro intermediário) e registro através do galvanômetro de corda (abaixo).
Fonte: Obtidas de http://en.ecgpedia.org/wiki/A_Concise_History_of_the_ECG#bibkey_Wood. Acessado em 22 março de 2009.

 

A razão da escolha das letras P, Q, R, S, T por Einthoven nunca foi por ele explicada,3 entretanto, reflete a tradição matemática que remonta ao século XVII com o filósofo e matemático francês René Descartes.1

THOMAS LEWIS

O eletrocardiograma foi fundamental para a compreensão das arritmias. Thomas Lewis, após visitar o laboratório de Einthoven, em 1909, retornou a Londres com estímulo para estudá-las (Figura 5). O estudo do ritmo cardíaco, antes da eletrocardiografia, era realizado com o auxílio do esfigmógrafo, instrumento que media os impulsos produzidos por vasos e o próprio ictus cordis.2 Karel Frederik Wenckebach e James Mackenzie realizaram descobertas de alterações do ritmo cardíaco sem o auxílio de eletrocardiógrafos. Wenckebach usou apenas as alterações de pulso arterial e cronômetro para distinguir contrações atriais e ventriculares prematuras, pela ausência ou presença de pausa compensatória, e definiu o comportamento fisiológico do bloqueio átrio-ventricular (BAV), que atualmente recebe seu nome. Mackenzie documentou a natureza do bloqueio completo apenas por registros discordantes de pulso jugular e radial.2 Arthur Cushny, fisiologista escocês, concluiu, após anos de estudo com o esfigmógrafo, que a fibrilação atrial observada em cães também ocorria em humanos. Entretanto, somente os estudos de Lewis com o galvanômetro de corda foram convincentes a ponto de concluir que a fibrilação atrial era uma condição comum em humanos. O valor clínico da eletrocardiografia foi cada vez mais reconhecido. Waller, no entanto, demorou muitos anos para reconhecê-lo.1

 


Figura 5 - Eletrocardiógrafo usado por Lewis, construído pela Cambridge Scientific Instrument of London, 1911.
Fonte: Obtidas de http://en.ecgpedia.org/wiki/A_Concise_History_of_the_ECG#bibkey_Wood, acessado em 22 março de 2009.

 

Thomas Lewis pode ser considerado o sucessor de Einthoven e foi professor de Wilson. Lewis dedicou-se até 1920 ao estudo das arritmias, contribuindo para elucidar muitos mecanismos de funcionamento cardíaco, até então sem embasamento científico. Ele expôs, em seu livro Clinical Disorders of the Heart Beat, os termos "marca-passo", contrações prematuras", taquicardia paroxística", fibrilação atrial", além de agrupar as arritmias em seis grupos, isto é: arritmia sinusal, bloqueio, contração prematura, taquicardia paroxística, fibrilação atrial e alternância de pulso. Após 1920, o interesse dos pesquisadores concentrou-se na teoria do eletrocardiograma, nas derivações e nas anormalidades das ondas eletrocardiográficas. Frank N. Wilson foi quem mais se destacou nesse período. Introduziu as derivações unipolares em 1934, que consistiam de um eletrodo explorador e um indiferente, com potencial elétrico nulo. Mais tarde, foram adicionadas as derivações unipolares aumentadas (aVF, aVL e aVR).3

Apesar da eletrocardiografia ter contribuído expressivamente para o estudo das arritmias, não houve mudança significativa em seu tratamento. Os digitálicos e a quinidina permaneceram a terapêutica principal até a década de 1950.1 O papel do eletrocardiograma como instrumento diagnóstico, contudo, ampliou-se consideravelmente e, na década de 1920, além da caracterização das anormalidades de formação do impulso cardíaco, condução ou a detecção de hipertrofias atriais e ventriculares, os pesquisadores reconheceram sua importância no infarto agudo do miocárdio.1

 

A TEORIA CORONARIANA DAS SÍNDROMES ANGINOSAS

A primeira descrição das características típicas do infarto agudo do miocárdio foi publicada em 1910 pelos médicos russos W. P. Obrastzow e N. D. Straschesko. Eles enfatizaram o desconforto torácico prolongado (status anginosus) e a dispneia persistente (status dyspnoeticus), além de associarem a trombose coronariana como causa do desconforto torácico, principalmente quando este se relaciona à dispneia.1 Em 1912, o médico de Chicago James Herrick descreveu as características clínicas do que ele acreditava tratar-se de trombose coronariana. Ele sugeriu também que a oclusão coronariana nem sempre seria fatal e os pacientes poderiam se recuperar plenamente. Smith, em 1918, trabalhando com Herrick, realizou a oclusão experimental da coronária esquerda de um cão e destacou as semelhanças com achados em humanos. Herrick defendia a realização de mais estudos com animais e acreditava que poderiam ser associadas as alterações dos traçados eletrocardiográficos ao acometimento de artérias coronárias específicas. Em 1920, Harold Pardee, trabalhando em Nova York, registrou elevação do segmento ST nas derivações II e III e inversão progressiva da onda T e retorno gradual à linha isoelétrica nas semanas seguintes, após a instalação do infarto agudo do miocárdio.1,3 O médico Bernard Oppenheimer era aluno de Thomas Lewis e estudou 100 pacientes, comparando as alterações de eletrocardiogramas com a observação do coração à necropsia. Concluiu sobre a importância da eletrocardiografia na diferenciação de sintomas decorrentes de processos abdominais agudos e cardíacos, determinando o tratamento.1

Em 1928, o termo corrente de lesão" (injury current) foi criado por John Parkinson e Evan Bedford para se referirem à lesão focal recente do miocárdio. No ano seguinte, o cardiologista Samuel Levine, trabalhando em Boston, destacou o importante auxílio da eletrocadiografia no diagnóstico clínico de trombose coronariana.1

Avanços em relação à compreensão da angina pectoris também ocorreram, sobretudo na década de 1930. Cada vez mais era aceita a teoria coronariana, mas ainda havia pessoas influentes, como o inglês Clifford Albutt e o alemão Karel Wenckebach, que atribuíam a angina à distensão da aorta proximal. Charles Wolferth e Francis Wood, em 1931, na Filadélfia, encontraram alterações eletrocardiográficas em metade dos 30 pacientes submetidos a esforço, o qual era interrompido com o surgimento de dor. Provavelmente, a cautela em parar o exercício com o aparecimento de sintomas e o uso apenas das derivações DI, DII e DIII limitaram o encontro de anormalidades ao eletrocardiograma. Wood e Wolferth perceberam que havia áreas silenciosas e contornaram esse problema com o uso, posteriormente, da derivação IV (ântero-posterior), uma derivação precordial que havia sido usada por Waller no primeiro eletrocardiograma.1 Eles consideraram perigosa a provocação da angina de modo indiscriminado, defendendo seu emprego em casos duvidosos e em indivíduos relativamente saudáveis do ponto de vista cardiovascular.1,6 Em 1932, Goldhammer e Scherf propuseram o uso do eletrocardiograma após esforço moderado para auxiliar no diagnóstico de insuficiência coronariana.7 Uma década depois, Arthur Master, em Nova York, padronizou o teste em duas etapas para avaliação da função cardíaca ao exercício.8 Em 1963, Robert Bruce descreveu o teste ergométrico de múltiplas etapas em esteira, mais tarde denominado Protocolo Bruce. Ele comparou o coração a um carro usado. Ninguém realiza a compra sem antes verificar o funcionamento do motor. O mesmo deveria ser realizado quanto ao coração.9 Em 1966, Mason e Likar introduziram modificações no sistema de 12 derivações durante o teste ergométrico. Apesar das mudanças reduzirem a variabilidade de registro durante o exercício, observam-se alterações na amplitude das ondas em relação ao posicionamento convencional dos eletrodos.10

FRANK N. WILSON

Em 1931, Wilson descreveu a derivação unipolar, provando matematicamente a possibilidade do registro da atividade elétrica do coração em qualquer parte do corpo. Houve valorização da eletrocardiografia do ponto de vista clínico, mas era necessário padronizar a disposição dos eletrodos das derivações precordiais. Isso foi definido, em 1938, pela American Heart Association e a Cardiac Society of Great Britain, quanto às derivações de V1 a V6. As 12 derivações eletrocardiográficas que atualmente são empregadas foram estabelecidas graças às contribuições de Einthoven, Wilson e Emanuel Goldberger, o qual, em 1942, introduziu as derivações aumentadas aVR, aVL e aVF, a partir das derivações unipolares originais de Wilson, VR,VL e VF.1

 

DESENVOLVIMENTO E NOVAS APLICAÇÕES CLÍNICAS

A eletrocardiografia contribuiu para definir a cardiologia como especialidade. Segundo o médico e historiador Joel Howell, muitos especialistas justificam sua especialização em certa área da Medicina por sua habilidade em operar um equipamento médico. Foi reconhecido, entretanto, que a restrição da interpretação do eletrocardiograma a especialistas era impraticável. Na década de 1930, houve elevado aumento de especialistas em doenças do coração, criando nos médicos generalistas questionamentos sobre sua competência em lidar com pacientes cardiopatas. Samuel Levine defendeu, em seu livro Clinical Heart Disease, em 1936, a importância do conhecimento clínico tradicional, sem o qual um especialista em eletrocardiografia tornar-se-ia menos capacitado.1 Durante a década de 1930, a invenção dos eletrocardiógrafos com registro direto em papel, sem o processamento fotográfico, contribuiu para popularizar os aparelhos de eletrocardiografia. Houve críticas devido ao fato de muitos médicos não estarem adequadamente treinados para a interpretação do eletrocardiograma.1

O desenvolvimento de exames de imagem desafiou a primazia do eletrocardiograma como instrumento clínico. Houve acentuado desenvolvimento da eletrofisiologia cardiovascular a partir da segunda metade do século XX, destacando-se o monitoramento por holter, os estudos eletrofisiológicos invasivos, o eletrocardiograma de alta resolução e o mapeamento intracardíaco.1 Também se destacaram os registros eletrocardiográficos em pacientes submetidos a esforço, os testes ergométricos.

O monitoramento eletrocardiográfico ambulatorial (holter) tornou-se cada vez mais sofisticado desde sua introdução, em princípios da década de 1960. Os dispositivos tornaram-se mais leves e compactos, a tecnologia digital tornou mais confiável a gravação da eletrocardiografia, eliminando as distorções provocadas pelas fitas magnéticas e a necessidade de reprodução (playback). No princípio da década de 1990, surgiram os primeiros discos rígidos com tamanho reduzido e custo viável, os quais foram substituídos pelos cartões de memória instantânea (flash). A qualidade dos registros avançou a ponto de oferecer, inclusive, a eletrocardiografia de alta resolução. Houve possibilidade de gravações mais prolongadas, edição e armazenamento em computador, além de envio de dados pela Internet.11

O registro de holter típico apresenta duração de 24 a 48 horas, possibilitando a detecção de anormalidades eletrocardiográficas transitórias no contexto de vida normal do paciente. As aplicações dessa tecnologia são diversas, como: detecção de alterações do segmento ST, efeito terapêutico de antiarrítmicos e drogas anti-isquêmicas, variação da frequência cardíaca, análise de marca-passos e potenciais tardios com eletrocardiograma de alta resolução.11 O holter representa também importante instrumento para a abordagem inicial a pacientes com síncope e representativa probabilidade de apresentar arritmias.12

As técnicas de registro por cateter dos potenciais do feixe de His em humanos foram primeiramente descritas por Scherlag et al., em 1969. Atualmente, o estudo eletrofisiológico invasivo apresenta muitas aplicações, diagnósticas e terapêuticas (ablação, por exemplo). Elas permitem a geração de arritmias em contexto padronizado e controlado, por meio da colocação de cateteres para função de marca-passo, estimulação e registro em múltiplas câmaras cardíacas. O conhecimento dos mecanismos de arritmias contribui para nortear as estratégias terapêuticas, farmacológicas ou não. Indivíduos com suspeita clínica de arritmia (com episódios de síncope e palpitação, por exemplo) também podem se beneficiar do estudo eletrofisiológico invasivo, estimando-se a predisposição para desenvolverem arritmias espontaneamente. As técnicas de mapeamento (mapping) possibilitaram a determinação da sequência de ativação durante arritmias, além de permitirem melhor ajuste dos cateteres para marca-passo. As plataformas de registro digital, por meio de computadores, substituíram o registro analógico e de multicanal (técnica de 128 canais, por exemplo) e permitiram a interpretação em três e quatro dimensões das informações acerca da ativação e voltagem.13

A eletrocardiografia de alta resolução (ECGAR) permite a detecção de sinais de baixa amplitude denominados "potenciais tardios", impossível nos eletrocardiógrafos convencionais. Esses potenciais tardios apresentam impacto no prognóstico de pacientes que sofreram infarto agudo do miocárdio ou possuem aumento do risco de infarto agudo do miocárdio subsequente e morte súbita. O exemplo de ECGAR consiste no Signal-avareged ECG, o qual realiza registro representado pela média de vários sinais, reduzindo o ruído do traçado. A gama de frequências dos sinais varia de 0,05 Hz a 300 Hz contra 1 Hz a 80 Hz de um ECG tradicional. O ECGAR permite a realização de diagnósticos antes apenas possíveis com métodos invasivos ou minimamente invasivos.14

O diagnóstico de doença coronariana em pacientes com síndromes anginosas constitui a principal indicação do teste ergométrico. Há muita controvérsia acerca da análise quantitativa da depressão do segmento ST com convexidade para cima (upsloping). Os estudos para avaliar a sensibilidade e a especificidade do teste ergométrico, comparando-o com a cineangiocoronariografia, considerada padrão-ouro, são divergentes, com médias de 68% (DP 16%) e de 77% (DP 17%) para sua sensibilidade e especificidade, respectivamente. Os resultados próximos do ponto de corte e a interrupção precoce do exercício constituem limitações do teste.15

A interpretação do eletrocardiograma por computador, por um lado, agilizou a análise pelos médicos; por outro lado, constituiu obstáculo para a aquisição de novas habilidades.1 A técnica, entretanto, carece de reprodutibilidade e acurácia.3

A eletrocardiografia, como todo exame complementar, apresenta limitações. São alguns desses exemplos as dificuldades em reconhecer intervalos e voltagens baixas, a dependência da análise dedutiva e a probabilidade de diagnósticos múltiplos. Além disso, há mais probabilidade de resultados falso-positivos em indivíduos sadios do que em indivíduos com doença cardíaca ou queixa clínica. Apesar disso, a eletrocardiografia pode diagnosticar alterações patogênicas antes que ocorram mudanças estruturais observadas por outros métodos diagnósticos, além de apresentar boa aceitação entre os médicos, constituindo importante passo inicial para o estabelecimento de condutas.3,16

 

CONCLUSÃO

A eletrocardiografia desenvolveu-se num contexto de avanços tecnológicos e da eletrofisiologia. O primeiro eletrocardiógrafo, construído por Willem Einthoven, já permitia registros com qualidade e padronização muito semelhantes às dos aparelhos atuais. Nas décadas que se seguiram à invenção de Einthoven, houve importantes descobertas em relação às arritmias, síndromes coronarianas, além da introdução de novas derivações e de testes diagnósticos com múltiplas aplicações clínicas. Apesar de suas limitações, a eletrocardiografia constitui exame de baixo custo e muito útil na avaliação cardiológica de modo geral.

 

AGRADECIMENTOS

Ao Professor José Agostinho, pela orientação. Além de leitura criteriosa e sugestões temáticas e bibliográficas, mostrou-se muito prestativo.

 

REFERÊNCIAS

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