RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 20. 4

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Artigo Original

Cicatrização do cólon após mucosectomia mecânica e sutura evertente em ratos

Healing of colon after mechanic mucosectomy and evertent suture in rats

Fernanda Martins Armond1; Ivana Duval-Araújo2; Rafael Calvão Barbuto3; Cláudia Lopes Santoro Neiva4; Leonardo Augusto da Silva Machado5

1. Médico. Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG. Belo Horizonte, MG - Brasil
2. Professor Associado. Departamento de Cirurgia da Faculdade de Medicina da UFMG. Belo Horizonte, MG - Brasil
3. Professor da UNIFENAS. Belo Horizonte, MG - Brasil
4. Médica. Santa Casa de Misericórdia de Belo Horizonte. Belo Horizonte, MG - Brasil
5. Médico. Hospital Municipal de Contagem. Contagem, MG - Brasil

Endereço para correspondência

Ivana Duval-Araújo
Rua: Bento Mendes Castanheira, 121/102
Belo Horizonte, MG - Brasil, CEP: 31260-270
E-mail: idaraujo@medicina.ufmg.br

Recebido em: 28/04/2009
Aprovado em: 18/02/2010

Resumo

A mucosectomia é utilizada durante a confecção de reservatórios ileais nas proctocolectomias por doença inflamatória intestinal. Entretanto, tem-se relatado aumento da incidência de obstruções intestinais em pacientes submetidos ao procedimento, sendo que o contato de uma grande área de submucosa poderia ser responsável pela ocorrência de estenoses, além de poder relacionar-se com aumento da pressão de ruptura desses segmentos. Com o objetivo de avaliar as alterações macroscópicas após a mucosectomia e a pressão de ruptura desses segmentos, foram estudados 16 ratos Holtzman distribuídos em dois grupos: A (n=8), anastomose colo-cólica em plano único extramucoso invertente com pontos separados de fio absorvível e B (n=8), mucosectomia e anastomose colo-cólica em plano único evertente com pontos separados de fio absorvível. No terceiro dia pós-operatório, foram estudadas as alterações macroscópicas e a pressão de ruptura dos segmentos colônicos contendo as anastomoses. Os resultados obtidos mostraram aumento na incidência e intensidade das aderências peritoneais nos animais do grupo B (p=0,01), incidência de 100% de estenoses das anastomoses, sem que ocorresse qualquer estenose no grupo A (p=0,01) e aumento não significativo na pressão de ruptura das anastomoses no grupo B (4,3 ± 2,4 mmHg vs. 10,5 ± 8,2 mmHg). Concluindo, a mucosectomia aumentou a reação inflamatória tecidual, sendo causa não só de aumento na pressão de ruptura como na incidência de estenoses de anastomoses colônicas de ratos.

Palavras-chave: Cicatrização de Feridas; Anastomose Cirurgica; Colo/cirurgia; Proctocolectomia Restauradora.

 

INTRODUÇÃO

A mucosectomia é uma técnica empregada após as proctocolectomias e construção de reservatórios ileais em "J" ou em "S", com o objetivo de reduzir a incidência de recidiva das doenças inflamatórias no segmento retal e prevenir a ocorrência de fístulas ao se anastomosar um segmento com mucosa acometida.1,2,3 Segundo alguns relatos, a mucosectomia realizada nessas afecções aumenta a continência fecal e não promove aumento da morbidade associada à mucosa retal retida.2 Recentemente, a mucosectomia foi também descrita na realização de anastomoses jejuno-pancreáticas, com o objetivo de aumentar a adesão do segmento jejunal ao parênquima pancreático, reduzindo a incidência de fístulas.4

Durante a cicatrização de alças intestinais, a eficácia e intensidade da resposta celular é o principal determinante da aquisição de força tênsil da sutura, prevenindo a formação de fístulas. Esses elementos celulares, presentes na submucosa, como macrófagos e fibroblastos, são os responsáveis pelo início e maturação do processo cicatricial.5 Nas anastomoses em plano único, a superfície linear de contato entre as duas camadas submucosas das duas bocas anastomóticas forneceria a quantidade e ativação ideal dessas células, resultando na formação de uma cicatriz adequada.6 Entretanto, após mucosectomia, teoricamente essas superfícies estariam mais expostas e, portanto, a área sujeita à reação inflamatória seria mais extensa, podendo resultar não só numa cicatriz mais forte, como também favorecer o aumento na incidência de estenoses.

Observou-se, em um estudo clínico, que aproximadamente 47% dos pacientes submetidos às técnicas de confecção dos reservatórios ileais após mucosectomia apresentam complicações pós-operatórias7,8, sendo que a maioria (16%) foi decorrente de obstrução intestinal.3 Outro estudo relatou em torno de 25% de incidência de abscessos perianastomoses nesse procedimento.9

Este estudo foi realizado com o objetivo de avaliar alterações cicatriciais no cólon de ratos após a mucosectomia.

 

MATERIAIS E MÉTODOS

Foram avaliados 16 ratos Holtzman fêmeas, com quatro meses de idade e peso médio de 240,3 ± 36,4 g, aleatoriamente distribuídos em dois grupos experimentais:

A (n=8), anastomose colônica em plano único extramucoso;

B (n=8), anastomose colônica evertente após mucosectomia segmentar.

Os animais foram anestesiados com xilazina (8 mg/kg) associada à quetamina (60 mg/kg) administradas por via intraperitoneal. Após a anestesia, o abdome foi aberto e feita a identificação do cólon ascendente, selecionado-se o seu terço médio para execução das anastomoses. No grupo A, após seção de ¾ da circunferência do cólon, foi feita a sutura com pontos separados em plano único extramucoso invertente, utilizando-se o categute 5-0 montado em agulha atraumática, sendo dada média de oito pontos na anastomose. No grupo B, foi retirada a mucosa em aproximadamente 0,5 cm nas duas bocas anastomóticas. Em seguida, fez-se a anastomose com pontos separados, totais, evertentes, sendo dada média de oito pontos no cólon. Após as cirurgias, os animais foram alimentados com solução de glicose a 25% durante 48 horas e, em seguida, utilizada para a alimentação ração padrão para ratos (Labina®, Purina).

Após três dias da realização das cirurgias, os animais foram mortos por sobredose de anestésico. Posteriormente à morte dos animais, foi feita nova laparotomia, identificadas e classificadas as alterações macroscópicas na linha da anastomose colônica, que foram a presença e grau das aderências (+ ausente; 2+ pocas, frouxas; 3+ intensas, froxas; 4+ aderências firmes), abscessos perianastomose, peritonite, fístulas tamponadas ou não, dilatação de alças colônicas ou entéricas acima da linha da anastomose.

Em seguida, foi feita a remoção da anastomose colônica com aproximadamente 2 cm de cólon íntegro em cada direção. Esse segmento foi estudado em relação à pressão de ruptura conforme técnica já padronizada10, na qual a pressão de ruptura dos segmentos é avaliada pela insuflação de ar em uma das bocas, sob fluxo constante, estando o segmento imerso em uma cuba contendo solução salina a 0,9%. O cateter através do qual o ar é insuflado conecta-se também a um manômetro de mercúrio, fornecendo a pressão exercida pelo aparelho. A medida da pressão de ruptura é dada pelo valor registrado no momento da ruptura da alça, verificado pelo borbulhamento no líquido contido na cuba.

Os dados da macroscopia foram comparados entre os dois grupos pelo teste do Qui-quadrado, com correção de Yates, sendo considerados significativos valores de p<0,05. Os dados da pressão de ruptura das anastomoses colônicas foram comparados entre os grupos pelo teste de Kruskall-Wallis, sendo considerados significativos valores de p<0,05.

 

RESULTADOS

O peso pré-operatório dos animais do grupo A foi de 249,1 ± 24,5 g e do grupo B de 231,4 ± 46,7 g, sem diferença significativa entre eles. Observou-se redução da média do peso pós-operatório no grupo B, que foi de 245,3 ± 21,5 g no grupo A e de 221,0 ± 43,6 g no grupo B, sem diferença significativa entre os dois grupos.

No estudo macroscópico, não se constatou abscesso perianastomose ou peritonite difusa em animal algum, em ambos os grupos. Quanto às fístulas, não houve caso algum no grupo A, mas detectou-se um caso (12,5%) no grupo B (P=NS). Em relação às aderências, no grupo A foram 37,5% de aderências classificadas com +, 25% como 2+ e 37,5% como 3+. No grupo B, 100% das aderências foram classificadas como 4+ (p=0,01). As estenoses, identificadas pela dilatação intestinal à montante da anastomose, não ocorreram nos animais do grupo A, mas foram observadas em 100% dos animais do grupo B (P=0,01).

A pressão de ruptura das anastomoses no grupo A foi de 4,3 ± 2,4 mmHg e no grupo B de 10,5 ± 8,2 mmHg. Apesar do aumento da pressão de ruptura no grupo B, essa diferença não foi significativa.

 

DISCUSSÃO

A cicatrização das feridas é definida como um processo altamente regulado de sequências bioquímicas e celulares, levando à integridade do tecido após a lesão. O processo da cicatrização de alças intestinais processa-se de maneira única no organismo, com características diferentes da pele e outros tecidos orgânicos, tanto pelas características da síntese do colágeno como da migração de fibroblatos.5 A síntese do colágeno, mediada por fibroblastos na anastomose, é um dos fatores responsáveis pela aquisição da força tênsil capaz de tornar as cicatrizes mais fortes com o tempo e, aparentemente, essa ativação dos fibroblastos ocorre não somente na linha de sutura, mas ao longo de todo o trato digestivo.11,12

A mucosectomia é feita como tática operatória na confecção de reservatórios em "J" após proctocolectomia para doenças inflamatórias intestinais e polipose colônica familiar, com o objetivo de reduzir a recidiva da doença no segmento retal, prevenindo-se, assim, a realização da colectomia total com ileostomia terminal2, mas aproximadamente 16% dos pacientes tratados por essa técnica apresentam complicações, principalmente a obstrução intestinal3,9, que favoreceria exagerada reação inflamatória e, talvez, cicatrização mais forte. Os resultados obtidos neste estudo não mostraram diferença significativa na pressão de ruptura quando comparados os dois grupos, apesar do valor visto no grupo com mucosectomia ser superior, porque houve grande variabilidade no mesmo grupo.

A mucosectomia mecânica pode, eventualmente, permitir a persistência de mucosa colônica. Entretanto, observa-se que, após a mucosectomia, persistem pequenas ilhas de mucosa residual em até 14% dos casos, mas sem evidência de que essas ilhas possam ser responsáveis pela regeneraçãoo da mucosa.13,14 Outras técnicas de mucosectomia, a partir do desbridamento com hidróxido de sódio a 0,5 N, formalina a 1,25% e nitrato de prata podem ser utilizadas15, mas seus resultados não têm sido aplicados na prática clínica. Neste estudo, preferiu-se a realização da mucosectomia com a técnica mais convencional, a do desbridamento mecânico, evitando-se, assim, que a interferência da irritação química pudesse ter efeito deletério ou exarcebar as reações cicatriciais, mascarando nossos resultados.

Importante função das aderências peritoneais é a sua capacidade selante, produzindo o vedamento das anastomoses.16 O mecanismo de formação de aderências após procedimentos na cavidade abdominal pode estar relacionado, entre outras probabilidades, à ocupação transitória do local da injúria por macrófagos, que seriam depois substituídos por células mesoteliais; e nos animais submetidos à mucosectomia, a exacerbação da resposta inflamatória promove aumento do número de macrófagos na linha de sutura, que causaria aumento da incidência e intensidade das aderências à anastomose.

Observou-se que percentual variável de 8 a 16% dos pacientes submetidos à mucosectomia desenvolvem quadros de obstrução intestinal após a mucosectomia e confecção de reservatórios ileais.9,17 Em nosso estudo, 100% dos animais mostraram, macroscopicamente, a estenose da anastomose, com semiobstrução intestinal. Acredita-se que essa estenose decorreu da reação inflamatória mais intensa, com formação de uma fibrose exuberante.

Concluindo, os dados deste estudo permitem concluir que a mucosectomia associa-se a significativo aumento da reação inflamatória na linha de sutura em anastomoses colônicas de ratos, causando aumento da incidência e intensidade de aderências, estenose do segmento e aumento da pressão de ruptura. Esses resultados devem-se, provavelmente, a mais exposição da camada submucosa, que é o fator determinante na cicatrização de anastomoses intestinais. Novos estudos devem ser conduzidos com vistas a ampliar a aplicação dessa técnica em outras condições de cicatrização deficiente em anastomoses intestinais.

 

REFERÊNCIAS

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