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CAPES/Qualis: B2
Perfil epidemiológico dos acidentes causados por serpentes venenosas no norte do estado de Minas Gerais, Brasil
Epidemiological profile of accidents caused by venomous snakes in the northern part of the state of Minas Gerais, Brazil
Paulo Rogério Ferreti Bonan1,2, Juliano Santos Lima1,2, Daniella Reis Barbosa Martelli1,2, Marília Sarmento da Silva2, Sílvio Fernando Guimarães de Carvalho1,2, Marise Fagundes Silveira2, Luciano Oliveira Marques2, Hercílio Martelli Júnior1,2
1. Centro de Ciências Biológicas e da Saúde - CCBS, Universidade Estadual de Montes Claros - Unimontes. Montes Claros-MG, Brasil
2. Hospital Universitário Clemente Faria - Universidade Estadual de Montes Claros - Unimontes. Montes Claros-MG, Brasil
Paulo Rogério Ferreti Bonan
Hospital Universitário Clemente de Faria - Mestrado
Av. Cula Mangabeira, 562 - Santo Expedito
Montes Claros, MG - Brasil, CEP: 39401-001
E-mail: pbonan@yahoo.com
Recebido em: 02/09/2009
Aprovado em: 11/08/2010
Instituição: Universidade Estadual de Montes Claros - Unimontes Montes Claros-MG, Brasil
Resumo
INTRODUÇÃO: os acidentes causados por serpentes venenosas são importante problema de saúde pública devido à sua elevada morbimortalidade.
OBJETIVO: descrever o perfil epidemiológico dos acidentes ofídicos causados por serpentes venenosas no norte do estado de Minas Gerais.
MÉTODOS: foram analisadas informações sobre acidentes ofídicos relativas ao período compreendido entre janeiro de 2002 e dezembro de 2006, por meio de dados obtidos dos bancos SINAN WINDOWS e SINAN NET.
RESULTADOS: foram notificados 816 casos; 695 (85%) devidos às serpentes do gênero Bothrops; 334 (41%) no primeiro trimestre; 593 (73%) na região de Montes Claros; 701 (86%) na zona rural; 328 (40%) picadas nos pés; 695 (85%) receberam soroterapia; 297 (36%) demoraram uma a três horas, em média, após o acidente, para receberam tratamento; e em 681 (83%) a cicatrização da ferida não apresentou sequelas.
CONCLUSÃO: os dados clínico-epidemiológicos permitem reconhecer vários aspectos que possibilitam atitudes médicas de prevenção e abordagem terapêutica adequada ao acidente ofídico no norte de Minas Gerais.
Palavras-chave: Serpentes; Mordeduras de Cobra/epidemiologia; Venenos de Serpentes; Animais Venenosos; Epidemiologia; Saúde Pública.
INTRODUÇÃO
Os acidentes causados por serpentes venenosas representam importante problema de saúde pública, especialmente em países tropicais, devido às elevadas taxas de morbimortalidade.1 A maioria dos acidentes causados por serpentes peçonhentas ocorre em países em desenvolvimento, sendo mais frequente em áreas rurais, onde os dados epidemiológicos são poucos e subnotificados.2 De acordo com dados estatísticos provenientes do Serviço Nacional de Informações Tóxico-farmacológicas, do Ministério da Saúde, os acidentes causados por serpentes venenosas ocupam o segundo lugar nas taxas de intoxicação humana, superados apenas pelas reações causadas por remédios.3
No Brasil, evidenciou-se que, em média, ocorrem 20.000 acidentes causados por serpentes peçonhentas ao ano, com mortalidade próxima de 0,45%.4 Esses dados revelam alguns índices da realidade brasileira, entretanto, desde 1901, após o estudo precursor de Vital Brasil, pouco se publica sobre esse assunto.5,6
Os casos de acidentes ofídicos associados a serpentes venenosas são causados principalmente por Bothrops, Crotalus, Lachesis e Micrurus.1,2,7-14 Esses acidentes afetam, principalmente, trabalhadores das áreas rurais.7,10,12,15
Alguns fatores socioambientais, como tempo chuvoso e quente, vegetação típica, habitação rural e urbanização das áreas periféricas das cidades, estão diretamente relacionados a esses acidentes.1,7,9,12 Este trabalho objetiva avaliar as relações entre os acidentes causados por serpentes venenosas no norte do estado de Minas Gerais, com variáveis demográficas, circunstanciais e de resolução.
METODOLOGIA
Este estudo foi retrospectivo e quantitativo, usando informações sobre os acidentes causados por serpentes, ocorridos na macrorregião de saúde do norte de Minas Gerais, no período entre janeiro de 2002 e dezembro de 2006. Essa análise usou dados obtidos das Gerências Regionais de Saúde (GRS) de Montes Claros, Januária e Pirapora, que englobam 86 municípios. Os dados compilados são dos bancos de dados SINAN WINDOWS e SINAN NET, construídos por intermédio da ficha de investigação de acidentes por animais peçonhentos, do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN). As informações utilizadas nesta investigação foram obtidas e tabuladas a partir dos bancos de dados citados.
Para essa avaliação, foram considerados apenas dados relacionados aos acidentes causados por serpentes venenosas, com prévia identificação do gênero, excluindo registros de acidentes com serpentes não venenosas ou não identificadas. Foram enfatizadas, nessa análise, as seguintes informações: gênero da serpente, sazonalidade, região de notificação, região de habitação, zona de ocorrência, sítio anatômico acometido, soroterapia, tempo decorrido entre a picada e o atendimento médico e consequências clínicas. Esses dados foram tabulados e submetidos ao teste qui-quadrado. Este trabalho foi aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade Estadual de Montes Claros (Protocolo 076/2007).
RESULTADOS
Após a tabulação, foram observados 816 acidentes válidos associados às serpentes dos gêneros Bothrops, Crotalus, Lachesis e Micrurus. Os principais dados sociodemográficos relacionados aos acidentes ofídicos, distribuídos por gênero principal de serpentes venenosas, estão demonstrados na Tabela 1.
O gênero Bothrops causou mais acidentes, 695 (85%), considerando todas as variáveis estudadas. Esses acidentes aconteceram, principalmente, no primeiro trimestre do ano, 334 (41%) na região de Montes Claros, 593 (73%) em 2004, 223 (27%) e na zona rural, 701 (86%). A Tabela 2 descreve as características e os cuidados médicos/desfecho relacionados a cada gênero de serpente.
Os achados significativamente mais frequentes associados a esses acidentes foram o envolvimento dos pés, 328 (40%); soroterapia, 695 (85%); uma a três horas para receber os primeiros cuidados médicos, 297 (36%); e cura sem sequelas, 681 (83%). A taxa de mortalidade foi de 0,5%.
DISCUSSÃO
O estudo da epidemiologia dos acidentes ofídicos no Brasil constitui assunto de grande relevância, existindo apenas contribuições pontuais, sendo necessárias mais informações para a sua real compreensão.1,5,7-10,12 O Hospital Universitário Clemente de Farias de Montes Claros é referência e contrarreferência para acidentes causados por serpentes, aranhas e escorpiões, atuando exclusivamente pelo Sistema Único de Saúde (SUS), tendo acumulado imensa experiência imensa na abordagem desses problemas referentes a extensa área do norte do estado de Minas Gerais.16 Este estudo descreve 816 acidentes com serpentes venenosas reconhecidas, nos anos compreendidos entre 2002 e 2006. Esse censo amostral é relevante, em face dos 19.000 a 22.000 acidentes anuais em todo o país, com 115 mortes ao ano.17 Os 816 acidentes ofídicos descritos foram causados, em ordem decrescente, por serpentes dos gênero Bothrops (maioria) e Crotalus, à semelhança de outras pesquisas.1,8,10-13 Essas serpentes são, costumeiramente, encontradas no cerrado, vegetação predominante no norte de Minas Gerais.9 Os acidentes causados por serpentes do gênero Bothrops podem ocorrer no período diurno, apesar de seus hábitos noturnos, em quintais ou áreas rurais, onde estão escondidas em abrigos (buracos, pedras e madeiras). Essas serpentes podem ser agressivas, silenciosas, promovendo agressões durante a limpeza dessas áreas.9 Esse fenômeno é particularmente evidente em áreas periféricas das cidades que margeiam a zona rural.9 Esse fato talvez explique a alta prevalência de casos na região de Montes Claros, que é município maior em extensão e apresenta aumento, nos últimos anos, de áreas periféricas.
Verifica-se forte impacto da sazonalidade sobre os acidentes. A maioria verificou-se em meses de clima quente e intensa pluviosidade, seguindo tendência conhecida na região Sudeste.6 Os acidentes relacionados às serpentes são mais prevalentes durante os meses de janeiro a abril, período de aumento das chuvas e de clima abafado, o que está em concordância com outros estudos de abrangência equatorial e subequatorial.10,12,17 O setor agrícola no norte do estado de Minas Gerais baseia-se na produção vegetal, visando à exportação e pecuária. Os meses de mais atividade nesses setores são os mesmos de maior prevalência de acidentes ofídicos.1,10 É relevante também a redução do metabolismo das serpentes durante o inverno, devido ao clima frio ou à diminuição de oferta de alimento.1,18
A maioria dos indivíduos afetados residia em zona rural e grande parte dos acidentes também foi registrada nessa área. As atividades laborais manuais estão relacionadas a esses acidentes e a urbanização de áreas periféricas das cidades, bem como o desmatamento, contribuem para mesclar o habitat dessas serpentes com as atividades humanas.1,8,9,13,17,19 Outro fator importante é a subnotificação dos acidentes nessas áreas, como demonstrado pelo sistema SINAN19, e da tradição de busca de terapias não convencionais, baseadas no folclore, sem atenção médica.1
Observa-se, também, de acordo com a literatura, que as extremidades dos membros inferiores e superiores são as mais envolvidas no acidente ofídico,1,7,10,12,13 sendo possível evitá-los com o uso de equipamentos de proteção como botas e luvas.12
A maioria das vítimas dos acidentes ofídicos, apesar da busca de terapia alternativa, recebeu soroterapia antiveneno. Referindo-se aos casos em que essa terapia não foi empregada, possivelmente houve inaptidão ou sua indisponibilidade.7,14 Constitui fundamento terapêutico básico a identificação do gênero do ofídio para estabelecer mais especificamente o tipo de imunoglobulina a ser empregada e evitar o excesso de sua dosagem.14
O intervalo entre o momento do acidente e o atendimento médico foi de uma a três horas, em média. O prognóstico parece relacionado de forma enfática com a íntima associação entre o momento do acidente e a brevidade do atendimento médico.7,12 As complicações como necrose e insuficiência renal aguda podem ser evitadas quando o cuidado for rápido, o que reduz substancialmente a morbimortalidade.19,20
A taxa de mortalidade de 0,05% foi similar à preconizada pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Das 3.000 espécies de serpentes, 10 a 14% são consideradas venenosas.21,22 As taxas de mortalidade, devido a acidentes causados por essas serpentes, variam de acordo com diferentes regiões geográficas. Por exemplo, a letalidade foi de 0,7% no Ceará, 1% na região amazônica e 3,9% em Roraima.7,10,13
CONCLUSÕES
Os acidentes causados por serpentes venenosas no norte de Minas Gerais foram principalmente associados ao gênero Bothrops, ao clima chuvoso e quente, predominantemente em áreas rurais, nos membros inferiores, com assistência médica rápida e bom prognóstico.
AGRADECIMENTOS
À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais - Fapemig.
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