RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 20. 4

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Artigo Original

Repercussões da anemia no desenvolvimento da linguagem em crianças: estudo longitudinal prospectivo

Impact of anemia in children's language development: prospective longitudinal study

Juliana Nunes Santos1, Stela Maris Aguiar Lemos1, Joel Alves Lamounier2, Silmar Paulo Moreira Rates3, Flávio Diniz Capanema4

1. Professora Adjunto do Departamento de Fonoaudiologia da Faculdade de Medicina da Universidade do Estado de Minas Gerais- UFMG. Belo Horizonte, MG - Brasil
2. Professor Titular do Departamento de Pediatria e Coordenador do Programa de Pós-graduação em Saúde da Criança e do Adolescente da Faculdade de Medicina da Universidade do Estado de Minas Gerais-UFMG. Belo Horizonte, MG - Brasil
3. Professor de Pediatria da Faculdade de Saúde e Ecologia Humana - Faseh. Vespasiano, MG - Brasil
4. Gerente de Pesquisa da Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais - Fhemig. Belo Horizonte, MG - Brasil. Professor Coordenador do Núcleo da Saúde da Criança e do Adolescente da Faculdade da Saúde e Ecologia Humana - Faseh. Vespasiano, MG - Brasil

Endereço para correspondência

Juliana Nunes Santos
Rua: Cel. Pedro Jorge, 170/201. Bairro: Prado
Belo Horizonte, MG - Brasil, CEP: 30410-350
E-mail: junessantos@yahoo.com.br

Recebido em: 10/05/2010
Aprovado em: 08/09/2010

Resumo

OBJETIVO: avaliar a linguagem de crianças anêmicas tratadas em comparação com as não anêmicas.
MÉTODOS: estudo longitudinal prospectivo caso-controle unicego com avaliação da linguagem de 36 crianças entre dois e sete anos. As crianças foram submetidas à punção digital, para detecção da anemia, e tiveram seu desenvolvimento da linguagem observado. As anêmicas (n = 14) foram submetidas à terapêutica, em dose semanal, por 12 semanas. Foram reavaliadas um ano após o término do tratamento e comparadas com as não anêmicas (n = 22).
RESULTADOS: a concentração média de hemoglobina foi de 10,9 g/dl no grupo-caso e de 12,7 g/dl no controle antes do tratamento. Na avaliação prévia da linguagem, observou-se diferença entre os grupos na recepção (p=0,02) e emissão (p<0,001), piores nos anêmicos. O grupo caso, um ano após o tratamento, continuou apresentando piores índices, diferindo do controle no aspecto da recepção da linguagem.
CONCLUSÃO: as crianças anêmicas podem manter alterações de linguagem após tratamento da anemia.

Palavras-chave: Linguagem; Anemia/terapia; Criança; Pré-Escolar; Creches.

 

INTRODUÇÃO

A anemia por deficiência de ferro é a carência nutricional mais comum no mundo. Atinge aproximadamente 1,62 bilhão de pessoas, o que corresponde a 24,8% da população mundial. No continente americano, estima-se que 23,1 milhões de crianças pré-escolares sejam anêmicas.1 A sua prevalência no Brasil, nessa população, é de 53%2 e de 30% em crianças de creches públicas de Belo Horizonte.3

A relevância da anemia decorre não apenas da magnitude de sua ocorrência, mas, principalmente, das repercussões negativas que ocasiona no desenvolvimento neuropsicomotor, cognitivo, social e de linguagem.4-7 Essas repercussões podem ser irreversíveis, na dependência do estágio do desenvolvimento em que ocorrer.8

Diversos autores têm descrito os efeitos clínicos de intervenções em crianças anêmicas e as repercussões da deficiência de ferro no seu desenvolvimento.4,9 Alguns estudos mostram diferenças significativas no desenvolvimento neuropsicomotor de crianças anêmicas, quando comparadas com crianças não anêmicas de mesma faixa etária e semelhantes condições socioambientais, que se mantiveram após terapia com ferro.6,10,11 Outros estudos com metodologia semelhante (avaliação do desenvolvimento motor e de linguagem antes e depois de adequada suplementação com ferro) mostram diferenças com significância estatística entre os grupos de crianças com e sem anemia, que foram revertidos após a terapia com ferro.12-15

Embora a anemia seja considerada problema de saúde pública nos países em desenvolvimento, há carência de estudos que avaliem o efeito da terapia no desenvolvimento da linguagem em crianças. A maioria das pesquisas internacionais avalia o desenvolvimento global das crianças, com menos ênfase nos aspectos de recepção e emissão da linguagem.

O objetivo deste estudo consiste em avaliar o desenvolvimento da linguagem em crianças anêmicas em comparação com não anêmicas 12 meses após tratamento com sulfato ferroso.

 

MÉTODOS

Foi realizado estudo longitudinal prospectivo, caso-controle e unicego, entre 2006 e 2008, em crianças de creche da região oeste do município de Belo Horizonte, Minas Gerais, dirigido à avaliação da linguagem em crianças entre dois e seis anos de idade, portadoras de anemia, em comparação com as não anêmicas. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), sob protocolo 380/05.

 

CASUÍSTICA

O universo em estudo foi constituído de todas as 139 crianças regularmente matriculadas na Creche Obras Sociais São Jorge, obedecendo aos seguintes critérios:

Critérios de inclusão: estar regularmente matriculado na creche no ano de 2006, possuir idade entre dois e seis anos, ter autorização dos pais ou responsáveis para participação no estudo mediante assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido.

Critérios de exclusão: alterações na avaliação auditiva, história de prematuridade, anóxia, infecção ou outras intercorrências perinatais, alterações cognitivas, impedimentos motores de fala, distúrbios emocionais significativos e sintomatologia neurológica; alguma manifestação de doença aguda (febre, diarreia, vômitos, etc.) no dia das avaliações, pois processos inflamatórios agudos e/ou crônicos acarretam alterações nos níveis de hemoglobina.

Na primeira etapa do estudo, realizada em 2006, foram avaliadas todas as crianças da creche com termo de consentimento assinado, com aplicação de questionário aos pais para investigação da história de vida e desenvolvimento da criança, tempo de aleitamento materno, percepção da mãe sobre a audição e o aprendizado, assim como do nível de escolaridade das mães. Foram realizados exames para a avaliação da hemoglobina (Hb) digital e integridade auditiva, visando à formação de dois grupos comparáveis (anêmicos e não anêmicos), selecionados por amostragem aleatória pareada segundo as variáveis sexo e idade.16

As crianças anêmicas foram submetidas à terapêutica oral com sulfato ferroso em dose única semanal = 4 mg Fe/kg por 12 semanas.17,18 Ao término, novos exames foram realizados, para controle de tratamento.

Na segunda etapa, transcorridos 12 meses do término do tratamento, realizou-se busca ativa direcionada a todos os sujeitos incluídos no estudo inicial, para nova determinação de hemoglobina e avaliação da linguagem, aplicadas pelos mesmos pesquisadores responsáveis pelo estudo.

O intervalo entre a primeira e a segunda avaliação de linguagem justifica-se pelo fato de a linguagem possuir períodos críticos em seu desenvolvimento, marcados pela acentuada maturação das áreas específicas do sistema nervoso central. Essas mudanças, na estrutura e funcionamento cerebral, assim como no comportamento observável das crianças, não são instantaneamente percebidas.19

 

DETERMINAÇÃO DA ANEMIA

As crianças foram avaliadas por meio de punção digital, para a determinação do nível de hemoglobina, utilizando-se o espectrofotômetro de alta precisão HemoCue©, de acordo com as normas recomendadas pelo fabricante. Com uma microcuveta, obteve-se volume preciso de sangue em contato com reagente seco. A microcuveta foi, então, inserida no aparelho, determinando-se o valor de hemoglobina entre 15 e 45 segundos.20 O diagnóstico da anemia baseou-se nos valores estabelecidos pela Organização Mundial de Saúde: hemoglobina < 11,0 g/dl para crianças abaixo de cinco anos e < 11,5 g/dl para crianças de cinco a sete anos.21 A esses valores acrescentou-se 0,3 g/dl, segundo recomendações do fabricante, para se obter mais sensibilidade no diagnóstico.

 

AVALIAÇÃO DA LINGUAGEM

As crianças foram avaliadas segundo critérios definidos por Chiari, utilizando-se o Roteiro de Observação de Comportamentos de crianças de zero a seis anos de idade.22 O desenvolvimento da linguagem de cada um dos participantes foi observado quanto aos aspectos comunicativos de recepção e emissão da linguagem. Para cada criança foi calculado o índice de desempenho na recepção (IDR) e o índice de desempenho na emissão (IDE). Os IDs foram analisados em relação à presença ou ausência de anemia nas diferentes faixas etárias.16

 

 

As crianças foram reavaliadas em 2008, transcorridos 12 meses do término do tratamento medicamentoso, quanto ao desenvolvimento da linguagem, utilizando-se as tarefas do teste de Avaliação de Desenvolvimento de Linguagem (ADL), proposto para identificar alterações na aquisição e desenvolvimento da linguagem.23

A ADL é um instrumento clínico, prático e eficiente para avaliar o conteúdo e a estrutura da linguagem na faixa etária de um ano a seis anos e 11 meses. A administração da ADL foi aplicada de forma individual para avaliar os domínios receptivos e expressivos da linguagem.23 A fim de se obterem medidas comparativas pré e pós-tratamento, calcularam-se os índices de desempenho - IDR e IDE - para cada criança.

 

TRATAMENTO DA ANEMIA

As crianças anêmicas foram submetidas à terapêutica oral com sulfato ferroso em dose única semanal = 4 mg Fe/kg por 12 semanas.17,18

O tratamento foi prescrito pelo médico pediatra pesquisador a todas as crianças que apresentaram valores de hemoglobina compatíveis com anemia. A administração do sulfato ferroso foi realizada na própria creche, pelas cuidadoras das crianças, sob supervisão dos pesquisadores e da coordenadora da creche.

Foi agendado um dia da semana (quarta-feira) no qual todas as crianças anêmicas da creche receberam as gotas de sulfato ferroso via oral em duas tomadas: nos horários de nove e 15 horas. Nas nove primeiras semanas de tratamento, a administração do medicamento aconteceu na creche. No entanto, as três últimas doses foram ou deveriam ter sido realizadas na casa das crianças, pois coincidiu com o período de férias escolares no final do ano letivo. Cada uma das mães e/ou responsáveis pelas crianças foi orientada pelos pesquisadores e recebeu um frasco do medicamento, assim como as receitas médicas com as informações sobre a dosagem e os horários da administração do medicamento.

Ao término do tratamento, logo após o retorno das aulas, novos exames foram realizados, para controle de tratamento.

 

ANÁLISE DE VARIÁVEIS

Para a entrada, o processamento e a análise dos dados, foi utilizado o software EPI-INFO 6.04. Empre-garam-se os seguintes testes: Exato de Fisher, para verificar diferenças entre as proporções; e T de Student (variáveis com distribuição gaussiana) e Mann Whitney (distribuição não gaussiana), para comparar variáveis contínuas entre os grupos. O nível de significância adotado foi de p<0,05.

 

RESULTADOS

Foram incluídas no estudo 132 de 139 crianças regularmente matriculadas na creche no ano de 2006, cujos responsáveis assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido.

Foram avaliadas 132 crianças na primeira etapa, das quais 27 (20,4%) apresentaram níveis de hemoglobina compatíveis com anemia. Destas, cinco foram excluídas por apresentarem alterações ao nascimento (prematuridade e complicações no período perinatal) e/ou alterações auditivas periféricas captadas pelo exame de emissões otoacústicas evocadas transitórias. Deste modo, 22 crianças foram incluídas no grupo de anêmicas.

Por se tratar de estudo transversal comparativo do tipo caso e controle, procedeu-se ao sorteio das crianças não anêmicas a fim de se obter pareamento 1:2 para cada criança anêmica. Das 105 crianças sem anemia, foram selecionadas 44 por amostragem aleatória pareada, por gênero e idade.

Os grupos-caso do estudo (crianças anêmicas) e o de caso-controle (crianças não anêmicas) ficaram constituídos por 22 e 44 crianças, respectivamente. Os resultados da comparação dos estudos nessa primeira etapa foram comunicados por Santos et al.16

Na segunda etapa do estudo (2008), tentou-se localizar todas as 66 crianças incluídas na primeira fase para nova avaliação, por meio de busca ativa. Destas, somente 24 (36,3%) continuavam matriculadas na creche; 15 (22,7%) foram estudar em escolas vizinhas; e uma (1,5%) mudou-se para outra creche na regional oeste. Foram localizadas 40 crianças (61%). A busca ativa não conseguiu localizar 26 crianças (39%).

Das 40 crianças avaliadas em 2008, duas foram excluídas por saírem da creche antes de concluídos os procedimentos de avaliação e duas por apresentarem níveis de hemoglobina compatíveis com anemia, sendo do grupo-controle.

A amostra final do estudo foi constituída de 36 crianças, sendo 14 e 22 dos grupos caso e controle, respectivamente, não sendo mais observado o pareamento entre os grupos. Das crianças do grupo-caso, seis continuaram apresentando níveis de hemoglobina compatíveis com a anemia, conforme pode ser visualizado na Figura 1.

 


Figura 1 - Fluxograma de participação no estudo no período de 2006 a 2008.

 

A distribuição das variáveis relativas a gênero, idade, níveis de hemoglobina, escolaridade materna, percepção materna do aprendizado da criança e amamentação natural das 36 crianças está apresentada na Tabela 1.

 

 

Os resultados das avaliações da linguagem dos 36 indivíduos podem ser verificados na Tabela 2.

 

 

Na Tabela 3 estão descritos os resultados das avaliações de linguagem das 30 crianças que não possuem anemia atualmente.

 

 

E na Tabela 4 são apresentados os índices de desempenho da linguagem das crianças de acordo com a faixa etária.

 

 

Após três meses de tratamento com sulfato ferroso, observou-se aumento nos níveis de hemoglobina em todos os participantes. No entanto, 33% deles ainda exibiram níveis de hemoglobina compatíveis com anemia.

 

DISCUSSÃO

Neste estudo, foi possível a inclusão final de 36 crianças. Da amostra inicial, 45% não foram localizadas ou não concluíram a avaliação pós-tratamento com sulfato ferroso. Outras pesquisas também sofreram perdas.6,10,11 A redução da amostra relaciona-se à metodologia adotada, já que estudos longitudinais são mais vulneráreis à perda de sujeitos. Outro fator contribuinte foi o período de acompanhamento das crianças, que na presente investigação coincidiu com o término de dois períodos letivos consecutivos. Diante disso, significativo número de crianças migrou da pré-escola (creches) para o ensino fundamental, dificultando sua localização.

A mudança do instrumento de avaliação da linguagem entre as etapas do estudo deve-se ao fato de a ADL contemplar uma faixa etária maior, que se estende até os seis anos e 11 meses de idade, diferentemente do Roteiro de Observação. Além disso, embora a validação da ADL tenha acontecido no final de 2003, o instrumento só começou a ser comercializado em meados de 2006. A mudança do instrumento, todavia, não implicou prejuízos para o estudo, já que os dois instrumentos avaliam os domínios receptivos e expressivos da linguagem.22,23 Os índices de desempenho criados permitiram a mensuração do aproveitamento da criança em relação ao número de tarefas realizadas em cada domínio, não influenciando a análise comparativa entre grupos caso e controle em cada uma das etapas do estudo. Possíveis diferenças nos IDs de ambos os grupos podem ter ocorrido, uma vez que, embora os dois instrumentos avaliem os aspectos receptivos e expressivos da linguagem, existem pontos de observação específicos de cada protocolo. Neste sentido, para evitar viés na análise, não foi feita a comparação intragrupo pré e pós-tratamento.

Esta pesquisa mostrou aumento médio de 0,6 g/dl nos valores de hemoglobina entre os anêmicos após 12 semanas de terapêutica em dose semanal, superiores aos encontrados em creches de São Paulo24 e Pernambuco11 após seis meses de suplementação semanal com sulfato ferroso. Outros estudos mostraram ganhos mais expressivos nos valores médios de hemoglobina, o que variou com a faixa etária das crianças e a dose semanal utilizada.18,25 Destaca-se que, transcorridos 12 meses da terapia, mais da metade das crianças do grupo caso se manteve com adequados níveis de hemoglobina. No entanto, seis continuaram a apresentar quadro de anemia, mostrando a necessidade de estratégias de avaliação e intervenção mais apropriadas.26 Há de se considerar que o tempo prolongado de suplementação - quatro meses - pode ter facilitado a baixa adesão das mães, que foram responsáveis pela oferta do sulfato ferroso no mês de janeiro, período em que as crianças não frequentam a creche.

Embora não tenham sido realizados exames complementares, considerou-se anemia como sendo ferropriva, já que mais de 70% das anemias são causadas pela deficiência de ferro, sendo a mais comum na população de pré-escolares brasileiros.2

Entre as outras causas da anemia, destacam-se as parasitoses e hemoglobinopatias, menos comuns nessa população.27 Além disso, as crianças da creche têm acompanhamento médico periódico com pediatras voluntários, que avaliam as condições das crianças. O contato com esses profissionais, o questionário com os pais e a investigação da ficha individual da criança na creche foram aspectos considerados no pareamento inicial dos grupos, sendo excluídas da amostra inicial aquelas com relato de doenças e/ou alterações no estado de saúde.

As crianças dos grupos caso e controle não diferiram em relação a idade, gênero e aleitamento natural (Tabela 1). A grande diferença entre elas foi a vigência de anemia no início do estudo. Além disso, as mães residiam na mesma região sociodemográfica e tinham escolaridade similar. Do ponto de vista delas, as crianças estavam expostas aos mesmos fatores ambientais.16 No entanto, deve-se analisar a influência da qualidade do ambiente como fator estimulante ao desenvolvimento das crianças, algo que não foi controlado no presente estudo. Pode ser que a situação ambiental vivenciada pelas crianças anêmicas tenha favorecido o distúrbio de linguagem. Sugere-se que essa questão venha a ser retomada em investigações posteriores.

No tocante ao efeito da terapia de ferro sobre o desenvolvimento da linguagem das crianças um ano após o tratamento, os grupos caso e controle continuaram a apresentar diferenças entre si nos índices mensurados. As medidas descritivas foram mais reduzidas no grupo caso antes e depois de transcorridos 12 meses do término do tratamento medicamentoso (Tabela 2). A maior parte dos estudos na literatura não foi capaz de mostrar evidências definitivas de melhora no desenvolvimento da criança, tanto em suplementações preventivas como terapêuticas. Porém, esses achados podem ser explicados pelo fato de os trabalhos utilizarem diferentes doses e durações da suplementação e não controlarem a influência dos estímulos ambientais no desenvolvimento.4,28

O aspecto de recepção da linguagem, expresso pelo índice de desempenho na recepção, diferiu estatisticamente entre os indivíduos do grupo-caso e do grupo-controle em todas as avaliações realizadas. Essa diferença se manteve ao comparar somente os indivíduos que melhoraram com o tratamento medicamentoso (Tabela 3). Tais achados retrataram que as crianças anêmicas, quando comparadas às não anêmicas, antes e depois do tratamento, manifestaram mais dificuldades para receber as informações do meio externo e compreender a linguagem oral. Acompanhamentos com crianças anêmicas e não anêmicas do nascimento aos cinco anos de idade também acusaram piores habilidades de linguagem nas anêmicas após efetivo tratamento29, sendo essas observações confirmadas por outros estudos terapêuticos em Israel 30 e Costa Rica6. Nas crianças anêmicas da Indonésia, verificou-se12,14 que após quatro ou seis meses de tratamento com sulfato ferroso apresentaram recuperação dos escores do desenvolvimento psicomotor da escala de Bayley.

Em Braga, Portugal, as crianças com anemia na infância após tratamento efetivo não exibiram aos cinco anos de idade diferenças nos aspectos da linguagem receptiva e expressiva mensurados pelo teste Griffiths15. Na África, observou-se melhora no desenvolvimento da linguagem das crianças após suplementação diária com ferro, de modo semelhante ao presente estudo, não estatisticamente significante.13

Ao se comparar os resultados das avaliações de linguagem das 36 crianças, considerando-se a presença do quadro atual de anemia (Tabela 2), foi possível perceber que as seis crianças anêmicas apresentaram os mais baixos IDs, reforçando uma vez mais a relação entre anemia e pior desenvolvimento de linguagem. Além disso, a comparação dos IDs das 30 crianças sem anemia também revelou pior desempenho do grupo-caso (Tabela 3). A literatura referencia estudos que mostram que, apesar da regularização dos valores de hemoglobina após tratamento, as crianças continuam a apresentar baixos índices de verbalização durante a interação com suas mães5 e piores escores nos testes de inteligência, leitura, escrita e aritmética.6,10

Neste estudo, os participantes com anemia (grupo-caso) não alcançaram os índices de desempenho de linguagem dos participantes sem anemia (grupo-controle) após um ano da suplementação terapêutica. Pesquisas recentes mostram efeitos da anemia nos processos cognitivos superiores que possibilitam o aprendizado da linguagem e indicam que a anemia atua na diminuição da oxigenação no cérebro, alterando os processos de neurotransmissão e de mielinização8,31, podendo gerar consequências permanentes no desenvolvimento das crianças. Em algumas pesquisas, o atraso no desenvolvimento observado nas crianças anêmicas tem sido irreversível até os cinco, 11 e 19 anos de idade.6 Essa irreversibilidade pode ser devida a mudanças no estrato de ferro cerebral, que não podem ser corrigidas com tratamento, conforme observado em estudos experimentais com ratos32, ou podem associar-se a confusão de fatores sociais e de carências na dieta.4

Os achados sugerem que as consequências da anemia no desenvolvimento da linguagem podem persistir mesmo após o tratamento. No entanto, existem evidências de que a anemia esteja associada a muitos fatores socioeconômicos, ambientais e orgânicos, os quais podem, por si sós, afetar o desenvolvimento de linguagem das crianças.4 Embora este estudo tenha controlado alguns fatores que interferem no desenvolvimento da linguagem, seguramente existem outros que não foram investigados.

Portanto, permanece a necessidade de realizar novas avaliações que abordem a relação entre anemia e linguagem, de modo a obter resultados mais consistentes que venham reforçar a importância da anemia entre pré-escolares, especialmente por estarem inseridos num processo pedagógico contínuo, com aquisição de habilidades cada vez mais complexas.

 

CONCLUSÃO

A linguagem de crianças com e sem anemia diferiu de maneira significante antes do tratamento. Transcorridos 12 meses da terapêutica com ferro, as crianças anêmicas mantiveram baixos índices de desempenho nos aspectos de recepção da linguagem.

Portanto, os resultados sugerem que alterações de linguagem podem ser permanentes em crianças anêmicas submetidas à terapêutica à base de sais ferrosos, como preconizado pela literatura.

 

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