ISSN (on-line): 2238-3182
ISSN (Impressa): 0103-880X
CAPES/Qualis: B2
Suporte hemoterápico ao paciente em emergência médica
Hemotherapeutic support to patients in medical emergency
Mário Soares de Azevedo Neves1; Raquel Baumgratz Delgado2
1. Médico Hemoterapeuta do Hospital das Clínicas - UFMG, Médico Hemoterapeuta do Hemocentro de Belo Horizonte - Fundação HEMOMINAS, Coordenador da Agência Transfusional do Hospital Madre Teresa - BH, Coordenador da Agência Transfusional do Hospital Luxemburgo. Belo Horizonte-MG, Brasil
2. Médica Hematologista do Serviço de Hematologia do Hospital das Clínicas - UFMG, Médica Hematologista/Hemoterapeuta da Fundação HEMOMINAS. Belo Horizonte-MG, Brasil
Mário Soares de Azevedo Neves
E-mail: mariosoares1701@gmail.com
Recebido em: 20/07/2010
Aprovado em: 20/08/2010
Instituição: Hospital das Clínicas da UFMG, Fundação Hemominas. Belo Horizonte,MG - Brasil
Resumo
A hemoterapia implica a adequada indicação dos componentes sanguíneos, a consciência e a prevenção dos riscos inerentes ao ato transfusional, que são guiados pelas condições clínicas do paciente e pelos resultados de exames laboratoriais. Esta revisão trata dos principais hemocomponentes e a prática hemoterápica no adulto em situação de urgência/emergência.
Palavras-chave: Transfusão de Sangue; Transfusão de Componentes Sanguíneos; Serviço de Hemoterapia.
INTRODUÇÃO
A hemoterapia baseia-se no uso racional do sangue, constituindo-se em transplante hematopoiético de tecido líquido (sangue), e representa, apesar da rigorosa triagem médica dos doadores de sangue e da utilização de exames sorológicos de última geração, riscos de doenças emergentes, reações adversas, imunossupressão e aloimunização. Foram notificadas, entre 1994-1999 e 1996-2004, 5,6 e 3,5 mortes relacionadas às transfusões sanguíneas alogênicas, na França e no Reino Unido, respectivamente.1-3 Toda transfusão contém risco, imediato ou tardio.
Constituem-se em princípios básicos da boa prática transfusional: a) a indicação da transfusão feita pelo médico, baseada em critérios clínicos e na premissa de que os benefícios devem superar os riscos; b) a solicitação e a prescrição de transfusão preenchida de forma completa e precisa; c) a identificação rigorosa do paciente: "sangue certo para o paciente certo". Deve-se ter cuidado com homônimos e com a transfusão em pacientes sedados, anestesiados, com distúrbios da audição e afásicos; d) a atenção deve ser redobrada para a identificação de amostras de sangue coletadas em salas de urgência e emergência, devido ao alto risco de troca de amostras; e) antes da transfusão, observar e anotar pulso, pressão arterial sistêmica e temperatura e investigar previamente à transfusão sinais e sintomas apresentados pelo paciente (febre, dispneia, tonteira), que podem ser confundidos com reação transfusional; f) vigilância permanente com o paciente politransfundido; g) atenção redobrada para o risco de sobrecarga circulatória em idosos, pacientes debilitados, cardiopatas e anêmicos crônicos; h) nunca dispensar o teste pré-transfusional, pois ele reproduz a transfusão in vitro; i) não colocar medicamento ou substância na bolsa do hemocomponente, evitando-se o risco de hemólise, contaminação bacteriana ou alterações do produto; j) nunca iniciar a transfusão rapidamente (exceto nas urgências hemorrágicas), pois as reações transfusionais imediatas mais graves tendem a se manifestar logo nos primeiros mililitros infundidos. Logo, o risco é diretamente proporcional ao volume transfundido; k) nunca aquecer o sangue em banho-maria, estufas, micro-ondas, pois há sempre o risco de hemólise.4 O uso de serpentina é condenável.
HEMOCOMPONENTES ORIGINADOS DO SANGUE TOTAL
Concentrado de hemácias (Ch)
É obtido pela centrifugação do sangue total e separado do plasma. O volume de cada bolsa é de 270 ml e o prazo de validade varia com o tipo de anticoagulante, sendo de 35 e de 42 dias para o CPDA1 e o SAG-MANITOL, respectivamente. A bolsa de CH eleva a hemoglobina (Hb) em 1,5 g/dl e o hematócrito (Htc) em 3% em paciente de 70 kg.
A transfusão de CH pressupõe a realização de testes pré-transfusionais obrigatórios que classificam e comprovam a compatibilidade ABO/Rh(D) entre doador e receptor. O tempo de infusão de CH é habitualmente de duas horas, mas transfusões lentas podem ser realizadas em até quatro horas. A bolsa deve ser fracionada em caso de risco de sobrecarga circulatória e transfundida em duas etapas, respeitando-se a validade máxima de 24 horas para uso do produto fracionado.
Tipos de CH: estão disponíveis os seguintes tipos:
a) Concentrado de hemácias lavadas - é o CH padrão, submetido à lavagem com NaCl 0,9%, para retirar a maioria das proteínas plasmáticas. Está indicado para pacientes com reações transfusionais alérgicas graves, entre eles os que apresentam deficiência de IgA; b) Concentrado de hemácias deleucocitado: é o CH padrão, submetido à filtração para remoção de leucócitos. Os equipos de transfusão padrão são de 170 µ e não removem leucócitos. O uso de filtros especiais permite a remoção de 99,99% dos neutrófilos contidos no CH. Está indicado para a prevenção da reação transfusional febril não hemolítica; da infecção pelo vírus citomegálico (CMV) em transplantados ou candidatos a transplantes e aloimunização leucocitária; de prematuros e recém-nascidos com peso inferior a 1.500 g; de gestantes soronegativas para o CMV; c) Concentrado de hemácias fenotipadas: a bolsa de CH é classificada também para outros antígenos de importância transfusional: do sistema Rh (C, c, E, e), Kell, Kidd, Duffy e MNS. Está indicada para pacientes que necessitam de múltiplas transfusões ou já apresentam "provas cruzadas incompatíveis" devido à aloimunização anterior (pesquisa de anticorpo irregular - PAI - positiva); d) Concentrado de hemácias irradiadas: a bolsa de CH é submetida à radiação gama (2.500 rads) em equipamento especial4, com consequente inativação dos linfócitos T. Está indicada para a prevenção da reação enxerto versus hospedeiro (GVHD), em candidatos a transplante ou transplantados de medula óssea, coração, pulmão; e para transfusões de recém-nascidos de baixo peso, de prematuros, intrauterinas, em pacientes com anemia aplástica e síndrome de imunodeficiência congênita.
Uso clínico
A transfusão de CH objetiva aumentar a massa eritrocitária e a capacidade de transporte de oxigênio. Deve ser cogitada quando os mecanismos fisiológicos de compensação da anemia aguda excedem em até 50% a demanda de oxigênio pelos órgãos e tecidos. Esses mecanismos consistem no aumento da frequência cardíaca e respiratória e na extração de oxigênio das hemácias, o que reduz a afinidade da hemoglobina por esse oxigênio.5 A transfusão, entretanto, não possui nível em que está indicada.6 A decisão médica, diante da hemorragia, será baseada na análise dos seguintes fatores: sinais clínicos, exames laboratoriais, tempo de evolução da anemia, doença de base e a estimativa aproximada da perda sanguínea.
Anemia aguda hipovolêmica: a prioridade no atendimento do paciente com sangramento é manter o débito cardíaco7, o que deve ser conseguido com soluções cristaloides ou coloides. (Tabela 1)
Anemia aguda normovolêmica: os adultos e jovens saudáveis e assintomáticos, sem doenças associadas toleram bem níveis de hemoglobina entre 7 e 8 g/dl, desde que não coexista hipovolemia.7 Os idosos, cardiopatas ou com doença vascular encefálica, em geral, requerem níveis entre 9 e 10 g/dl; aqueles com doenças cardíacas de alto risco quase sempre necessitam de mais de 10 g/dl de hemoglobina.
Anemia crônica: a instalação de anemia crônica, que cursa com normovolemia, é mais bem tolerada do que a anemia de instalação aguda. A causa da anemia deve ser investigada e o tratamento específico instituído, por intermédio da suplementação de ferro, vitaminas B12, ácido fólico, eritropoietina ou corticoide.7 As transfusões são recomendadas na ausência de tratamento específico e se o benefício esperado for superior ao risco de não se transfundir. A indicação de transfusão é individualizada e nas anemias crônicas as alterações cardiorrespiratória norteiam a conduta. São aceitas, em geral, as seguintes condutas, diante de estabilidade hemodinâmica, para Hb: a) inferior a 6 g/dl: indicada a transfusão; b) entre 6 e 8 g/dl: diminuir a atividade física diária, podendo ser necessário transfundir; c) entre 8 e 10 g/dl: a transfusão será indicada de acordo com a doença de base do paciente e, nos casos cirúrgicos, de acordo com a estimativa de perda no per e pós-operatórios; d) acima de 10 g/dl: evitar a transfusão. A eritropoietina recombinante tem sido usada como tratamento alternativo das anemias em pacientes com doença renal crônica ou oncológica.
Transfusão pré-operatória: a necessidade transfusional pré e pós-operatória pode ser minimizada pela correção da anemia ferropriva, da suspensão de anticoagulantes e de anti-inflamatórios, da rigorosa hemostasia e da avaliação criteriosa do paciente.1 Ressaltando-se a inexistência de um "gatilho" transfusional preestabelecido e a importância de se individualizar a indicação da transfusão, sugere-se que a mesma seja considerada para pacientes cirúrgicos sem fatores de riscos isquêmicos, com Hb inferior a 8g/dl; com risco isquêmico ou outra comorbidade; e com Hb inferior a 10 g/dl. A transfusão de CH é contraindicada para melhorar a cicatrização, prevenir infecção, promover aumento da sensação de bem-estar, expandir o volume quando a capacidade de transporte de oxigênio está adequada e para prevenir futura anemia.9
Concentrado de plaquetas (CP)
O concentrado de plaquetas (CP) é preparado a partir da doação de sangue total, por centrifugação de cada bolsa do plasma rico em plaquetas ou pela plaquetaférese do doador. Não é necessária a realização da prova de compatibilidade (prova cruzada) antes da liberação do hemocomponente. Toda transfusão de plaquetas deverá ser feita em equipamento com filtro de170 µ e de preferência ABO/Rh(D) compatível com o paciente. As mulheres Rh negativo em período fértil devem receber preferencialmente plaquetas Rh negativo a título de prevenção da aloimunização Rh(D) e, em gestações futuras, da doença hemolítica neonatal. Deve ser realizada em gotejamento livre.
Tipos de concentrado de plaquetas: a) Concentrado unitário de plaquetas: é preparado pela centrifugação do plasma rico em plaquetas: volume de 50 ml, contendo 5,5 X 1010 plaquetas por bolsa; b) pool de concentrado de plaquetas: preparado a partir de cinco concentrados unitários de plaquetas, obtidos pela centrifugação e separação da camada leucoplaquetária. O volume é de 250 ml e contém 3,0 x 1011 plaquetas; c) Concentrado de plaquetas por aférese: obtido pelo processamento automático de sangue total de um único doador. Equivale a oito unidades de concentrado unitário de plaquetas. Possui volume de 300 a 400 ml e contém 3,0 X 1011 plaquetas.
Todos os tipos de CP têm validade de cinco dias a partir da coleta.
A dose padrão para o uso do CP é de uma unidade para cada 7 a 10 kg de peso do paciente.
O concentrado de plaqueta está indicado para: a) transfusão terapêutica, na trombocitopenia com sangramento ativo; b) transfusão profilática quando a contagem de plaquetas for inferior a 10.000-20.000/mm3 ou inferiores a 30.000-50.000mm3 antes de procedimentos invasivos1; c) manutenção de plaquetas acima de 10.000/mm3 em pacientes estáveis; d) manutenção de plaquetas acima de 20.000/mm3 em pacientes instáveis e com riscos adicionais de febre, sepse, uso de drogas, quimioterapia; e) procedimentos cirúrgicos e trauma para manter a contagem plaquetária de pelo menos 50.000/mm3. Para procedimentos neurocirúrgicos e diante de sangramento no sistema nervoso central, a contagem deve ser mantida acima de 100.000/mm3. A decisão de transfusão diante de contagens entre 50.000 e 100.000/mm3 baseia-se na extensão do trauma ou da cirurgia, na habilidade do controle do sangramento com medidas locais, na estimativa do sangramento e em disfunção plaquetária ou coagulopatia.12 A maioria dos procedimentos invasivos pode ser realizada com segurança, com a contagem plaquetária em torno de 50.000/mm3, na ausência de associação com anormalidades da coagulação.11 (Tabela 2)
A transfusão de CP não está indicada em plaquetopenia secundária à destruição periférica, como ocorre na: púrpura trombocitopênica imune, hiperesplenismo, púrpura trombocitopênica trombótica, exceto em sangramentos graves que coloquem em risco a vida do paciente.9 Essa regra se aplica nas plaquetopenias decorrentes de infecções como dengue, riquetsiose, leptospirose.
PLASMA FRESCO (PFC)
É composto de água, proteínas, carboidratos e lípides e obtido por meio da centrifugação do sangue total ou por plasmaferese. Deve ser estocado a -20ºC. A bolsa de PFC (200 ml) contém todos os fatores da coagulação, inclusive os lábeis, isto é, os fatores V e VIII. Não é necessária a realização de testes de compatibilidade antes das transfusões, devendo-se usar bolsas ABO compatíveis com o paciente. As bolsas de plasma fresco, ao serem descongeladas, devem ser utilizadas em gotejamento livre, imediatamente ou no máximo até quatro horas.
Indicações: a transfusão de PFC possui uso restrito, sendo indicado em paciente com sangramento associado a deficiências múltiplas de fatores da coagulação, devido à coagulação intravascular disseminada (CIVD), hepatopatias e na coagulopatia dilucional por transfusão maciça. É também usado na reversão rápida do efeito da warfarina em caso de cirurgia imediata, na plasmaférese terapêutica, na púrpura trombocitopênica trombótica, na deficiência de proteínas C, S e antitrombina III.
Contraindicações: o PFC não deve ser usado para a reposição de fatores de coagulação que existam sob a forma de concentrados específicos liofilizados, na expansão de volume, como fonte proteica em pacientes com deficiências nutricionais, em sangramentos sem coagulopatias, nos grandes queimados e na septicemia.
CRIOPRECIPITADO (CRIO)
É obtido a partir de uma unidade de plasma fresco, por meio da precipitação das proteínas plasmáticas a 4ºC. A bolsa (20 ml) contém os fatores VIII e XIII, fibrinogênio e fibronectina. É armazenado a -20ºC e após o descongelamento da bolsa. Deve ser transfundido imediatamente e usadas bolsas de crioprecipitado ABO compatíveis, mas não é necessária a realização de provas de compatibilidade.
Indicações: está indicado nos sangramentos ativos ou procedimentos invasivos nas seguintes situações: CIVD, hipofibrinogemia congênita ou adquirida, disfibrinogenemia, sangramento microvascular com fibrinogênio inferior a 100 mg/dl e deficiência de fator XIII.
TRANSFUSÃO EM UNIDADE DE TERAPIA INTENSIVA (UTI)
O desenvolvimento de anemia é favorecido, especialmente, em pacientes internados em Centro de Tratamento Intensivo (CTI) (Tabela 3)13
Vários fatores colaboram para o desenvolvimento de anemia no CTI, como: a) volume de sangue retirado para exames laboratoriais é, em média, de 40 a 70 ml/dia, sendo em uma semana igual ao de uma bolsa de CH; b) as citocinas inflamatórias (ex: fator de necrose tumoral) inibem a liberação da eritropoietina renal, o que provoca diminuição abrupta da eritropoiese endógena e redução da resposta medular à eritropoietina. A anemia associada à inflamação tem as mesmas características da anemia da doença crônica: redução do ferro, da capacidade de ligação do ferro e dos níveis de transferrina no plasma com aumento da ferritina.
É controversa a adoção da taxa de hemoglobina limítrofe para a indicação transfusional, independentemente de outros sinais e sintomas de anemia.9 A mensuração do grau de hipóxia é complexa em pacientes normovolêmicos. Não há sinais específicos para a hipóxia tissular, podendo-se medir a partir da saturação de oxihemoglobina artério-venosa (SaO2 - SvO2). Isto significa que a saturação tecidual de O2 (SaO2 - SvO2) de 50% ou mais é sinal de oxigenação tecidual inadequada. Outros sinais indiretos são acidemia e hipotensão arterial, que sugerem disfunções orgânicas.
A indicação de transfusão em pacientes em CTI deve ser feita por necessidades fisiológicas, definidas de forma individual para cada paciente. O uso de transfusões em pacientes anêmicos pode minimizar a demanda de oxigênio durante a descontinuidade da ventilação mecânica.13
As seguintes indicações constituem recomendações para a transfusão de CH em adultos criticamente enfermos ou em situação de trauma: a) choque hemorrágico (grau de recomendação nível 1); b) hemorragia aguda e instabilidade hemodinâmica ou inadequada oferta de oxigênio (nível 1).
A estratégia "restritiva" é tão eficaz quanto a "liberal" para indicar a transfusão de CH quando a Hb é inferior a 7 ou 10 g/dl, respectivamente, em pacientes críticos com anemia hemodinamicamente estável. Constituem possível exceção os pacientes com isquemia miocárdica aguda (nível 1). Deve ser evitado o uso do valor da Hb como único parâmetro de "gatilho" para transfusão. A decisão da transfusão de CH deve ser individualizada, considerando o volume intravascular, o estado de choque, a duração e a magnitude da anemia e parâmetros fisiológicos cardiopulmonares (nível 2). A CH deve ser transfundida como unidade isolada, na ausência de hemorragia aguda, seguida de reavaliação (nível 2). Deve ser considerada a transfusão se a Hb for inferior a 7 g/dl em pacientes criticamente enfermos que: requeiram ventilação mecânica (VM); sofreram trauma; apresentam cardiopatia estável. Não há benefício para esses pacientes na estratégia "liberal" da transfusão quando a Hb for inferior a 10 g/dl (nível 2). A transfusão de CH não deve ser considerada método único para melhorar a oxigenação de pacientes críticos (nível 2). A transfusão de CH pode ser benéfica para pacientes com síndrome coronariana aguda com anemia (Hb < 8 g/dl).14
TRANSFUSÃO DE URGÊNCIA
Refere-se à necessidade urgente da administração do sangue para permitir a sobrevida do paciente. Entre os fatores críticos envolvidos, estão: a interrupção da hemorragia maciça, a reposição do volume intravascular e o restabelecimento do transporte de oxigênio.
Recomenda-se a reposição imediata de volume intravascular com soluções coloides e cristaloides, com o cuidado de racionalizar o volume total infundido para evitar a hemorragia dilucional, ou seja, a diluição dos fatores da coagulação. Caso essas medidas levem à estabilização clínica, a transfusão torna-se menos urgente e pode-se aguardar a determinação do grupo sanguíneo ABO/Rh e a realização das provas de compatibilidade. Esses testes são finalizados em 30 minutos após a entrada da amostra do paciente na agência transfusional. Caso as condições clínicas do paciente não se estabilizem rapidamente, devem ser transfundidas hemácias "O negativo" sem teste de compatibilidade.
Estratégia do tratamento: o atraso no fornecimento de sangue, devido ao tempo necessário para a realização dos testes pré-tranfusionais, pode, às vezes, colocar a vida do paciente em risco. Neste caso, de acordo com a legislação vigente RDC 153/2004 ANVISA, as bolsas de CH serão liberadas antes que os testes de compatibilidade estejam finalizados. O médico assistente assinará um Termo de Compromisso para que ocorra a liberação das bolsas sem teste.15 Ele será informado dos riscos e se responsabilizará pelas consequências do ato transfusional, se a emergência houver sido criada por seu esquecimento ou omissão.9
Deve ser usado CH O Rh(D) negativo, se o tipo sanguíneo do paciente for desconhecido, em especial, em mulheres em idade fértil; e na sua ausência pode ser usado sangue O positivo, sobretudo em homens ou mulheres com mais de 45 anos de idade.6
TRANSFUSÃO MACIÇA
A perda sanguínea maciça é arbitrariamente definida como perda de volemia num período de 24 horas, sendo a volemia do adulto estimada em 7% do seu peso ideal. Outras definições consideram a perda de 50% da volemia em três horas ou taxa de perda de 150 ml/min.16
Os objetivos principais da transfusão maciça são: manter a perfusão e a oxigenação dos tecidos por meio da restauração da volemia e da hemoglobina; conter o sangramento (tratamento do local da perda sanguínea traumática, cirúrgica ou obstétrica; uso criterioso e racional do sangue para corrigir a coagulopatia).16
A mortalidade dos pacientes submetidos à transfusão maciça varia, nos diversos estudos, de 30 a 60%, mas pode ser mais elevada em idosos, nos pacientes com doenças crônicas, nos hepatopatas e com alteração da hemostasia.
Observa-se tendência anormal à hemorragia após curto período da transfusão de 15 a 20 unidades de hemocomponentes (CH, CP, plasma fresco, crioprecipitado).17 A RNI e o PTTa aumentam mais de uma vez e meia e a contagem de plaquetas diminui de 50 x 109/L devido à diluição dos fatores de coagulação ou aumento no consumo dos fatores devido à inadequada perfusão tecidual pela hemorragia ou choque levando à CIVD. A coagulopatia dilucional é desenvolvida em cerca de 50% dos que receberam mais de três litros de fluidos (cristaloides) de reposição na fase pré-hospitalar de atendimento ao choque. Esses pacientes requerem o diagnóstico precoce da coagulopatia e a adoção de rápidas medidas terapêuticas, para se evitar a instalação de coagulopatia, hipotermia e acidose.18 A relação de transfusão de PFC:CH >1 está associada à evolução favorável e menos mortalidade.19 (Tabelas 4 e 5)
Os riscos de transfusão maciça são constituídos por: a) riscos metabólicos: durante a transfusão, em geral, não se observa hipercalemia, entretanto, poderá acometer pacientes com insuficiência renal, com extensa necrose muscular ou em casos de rápida infusão de concentrados de hemácias. Anticoagulante citrato nas bolsas de hemocomponentes poderá, eventualmente, levar à hipocalcemia, principalmente em pacientes hepatopatas e hipotérmicos. Neste caso, deve-se realizar a injeção de gluconato de cálcio 10% (1 ml/100 ml de sangue), em via diferente daquela que está correndo a transfusão. A hipercalemia pode ser devida à alta concentração de potássio no CH estocado; b) alterações do equilíbrio ácido-básico: quando ocorrem alterações do equilíbrio ácido-básico na transfusão maciça, elas geralmente estão ligadas à doença anterior do paciente, à acidose nos casos de insuficiência renal ou insuficiência circulatória ou choque e à alcalose em casos em que haja hiperventilação; c) hipotermia: a transfusão de hemocomponentes frios pode perturbar o metabolismo do citrato, levar à diminuição da avidez da Hb pelo oxigênio e alterar os testes laboratoriais (RNI, PTTa), que ficarão artificialmente diminuídos, já que esses testes são realizados a 37ºC. Pode provocar também alterações cardíacas como extrassístoles, parada cardíaca e alterações eletrocardiográficas caracterizadas por alongamento de ST e do QRS e achatamento de T. A coagulopatia pode ser revertida pelo aquecimento do paciente, dos hemocomponentes e de outros fluidos, mas são contraindicados os métodos não controlados de aquecimento das bolsas de hemocomponentes, como a colocação da bolsa em água aquecida ou micro-ondas. Os CHs, quando expostos a temperaturas superiores a 40ºC, podem ser hemolisados. Para o aquecimento seguro das bolsas, deve-se utilizar equipamentos próprios com temperatura controlada tipo blood warmer; d) sucesso da transfusão maciça - sobrevida do paciente: a identificação precoce da coagulopatia nos pacientes agressivamente transfundidos é fundamental para que não piore a doença de base do paciente e obtenha-se o sucesso do tratamento dos quadros hemorrágicos graves. A correção precoce dos fatores adicionais como a acidose, hipotermia e hipocalcemia desencadeadas nessas ações podem ser determinantes no controle da hemorragia.13 Cada serviço de emergência deve implementar protocolos específicos e procurar o melhor e mais adequado sinergismo de ações entre as equipes de resgate, cirurgiões, intensivistas, laboratório e agência transfusional (Comitê Transfusional), visando rápidas ações terapêuticas, com a devida segurança e uso racional dos hemocomponentes.
HEMODERIVADOS
Pode-se obter a partir da industrialização das bolsas de plasma fresco a concentração, purificação e liofilização dos fatores específicos (frações coagulantes, imunoglobulinas e albumina) contidos no plasma fresco. Esses produtos chamados hemoderivados são utilizados na maior concentração e no menor volume.
Albumina humana
É obtida do plasma de doadores de sangue total ou por plasmaférese. Contém 96% de albumina e 4% de globulina. Tem apresentação comercial a 5% (isosmótica) e a 25%.1 É utilizada, em geral, para exercer atividade oncótica em pacientes hipovolêmicos e hipoproteinêmicos nas seguintes situações: hipotensão ou choque secundário à hemorragia que não responde ao uso de cristaloide ou coloide15; choque não hemorrágico, se a proteína total for < 5,2 g/dl; hipoalbuminemia pós-transplante de fígado; reposição de volume após grave pancreatite necrotizante, que não responde ao uso de cristaloide ou coloide15; nefropatia/enteropatia perdedora de proteína com edema não responsivo ao uso de diurético; hipotensão pós-paracentese (remoção > 4 litros)15; queimadura com hipoproteinemia (após 24 horas); plasmaferese terapêutica.
Fatores da coagulação
São obtidos do plasma fresco, fator VIII da coagulação: a) tratamento de sangramento ou preparo de procedimentos invasivos em pacientes com hemofilia A; b) fator IX da coagulação, indicado para o tratamento ou preparo para a realização de procedimentos invasivos em pacientes com hemofilia B; c) complexo protrombínico (CPP) contém os fatores II, VII, IX, X da coagulação.
Os fatores de coagulação devem ser prescritos sob a orientação de hematologista/hemoterapeuta experiente e conhecedor da coagulopatia específica do paciente.
AFÉRESE TERAPÊUTICA
Constitui-se em procedimento realizado com equipamento automatizado, em que um ou dois acessos venosos calibrosos são puncionados no paciente. Através desses acessos venosos é coletado o sangue total e durante o processo é separado em hemocomponentes. Um dos hemocomponentes é então retido e os outros são reinfundidos e retornam para o paciente.
De acordo com o componente retido, o procedimento pode ser classificado em: plasmaferese terapêutica, eritrocitoaférese terapêutica, leucaférese terapêutica, trombocitoaférese terapêutica.
O objetivo da aférese terapêutica baseia-se nas seguintes premissas: o agente patogênico existente no sangue contribui para o processo da doença de base ou de seus sintomas; esse agente patogênico pode ser mais efetivamente removido do sangue pelo processo automático do que pelos mecanismos naturais do paciente. A redução ou remoção da célula ou proteína envolvida na doença do paciente objetiva melhorar os resultados nas doenças passíveis de controle por meio dessa técnica. A aférese terapêutica raramente é curativa, mas uma modalidade terapêutica adjuvante à terapia convencional.11(Tabela 6)
Riscos do procedimento
A aférese não é isenta de riscos, podendo apresentar efeitos adversos para o paciente: intoxicação pelo citrado de sódio, presente no anticoagulante, podendo levar a parestesia e hipocalcemia. Acesso venoso deve ser escolhido com veias calibrosas puncionadas na fossa cubital com agulhas 16G ou 18G (Gauge) para se obter bom fluxo de sangue. Em pacientes debilitados ou em esquemas terapêuticos prolongados, com múltiplas sessões de aférese, a opção é a implantação de um cateter venoso central. Há risco de hemorragia, flebite, sepse, trombose. Outros riscos são, especialmente, depleção de proteínas e imunoglobulinas; embolia aérea; depleção de fatores da coagulação; reação vasovagal.
A avaliação do risco/benefício do tratamento para o paciente é uma decisão entre o médico hemoterapeuta e o médico assistente.
REAÇÕES TRANSFUSIONAIS
São eventos adversos ocorridos durante ou após a transfusão sanguínea e a ela relacionados, podendo ser classificados em imediatos, quando ocorrem até 24 horas após a transfusão; ou tardios, quando se verificam após 24 horas da transfusão22 (Tabela 7).
Incidentes transfusionais imediatos: as reações transfusionais imediatas requerem, em geral, as seguintes medidas: interromper imediatamente a transfusão; manter acesso venoso com NaCl 0,9%; aferir a identificação e ABO da bolsa e do paciente; verificar os sinais vitais do paciente; comunicar o incidente ao médico assistente, instituir o tratamento clínico específico e preencher a ficha de notificação de reação transfusional; encaminhar a bolsa de hemocomponente envolvida na reação e a ficha de notificação de reação transfusional para o serviço de hemoterapia, responsável pelas transfusões do hospital; providenciar a coleta de amostras do paciente, para o banco de sangue e para o laboratório, quando indicado; registrar o incidente no prontuário do paciente (Tabela 12.8).
O Comitê Transfusional do Hospital deverá estabelecer protocolo multidisciplinar de manejo das reações transfusionais, atendendo à legislação sanitária vigente.
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