RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 20. 4

Voltar ao Sumário

Relato de Caso

Duodenopancreatectomia no trauma: relato de caso

Duodenopancreatectomy in trauma: case report

Domingos André Fernandes Drumond1; Mario Pastore Neto2; Ricardo Soares Fontes2; Rodrigo Marques de Oliveira3

1. Chefe do Serviço de Cirurgia Geral e do Trauma do Hospital João XXIII. Belo Horizonte, MG - Brasil
2. Cirurgião do Trauma do Hospital João XXIII. Belo Horizonte, MG - Brasil
3. Residente de Cirurgia do Trauma do Hospital João XXIII. Belo Horizonte, MG - Brasil

Endereço para correspondência

Serviço de Cirurgia Geral e do Trauma do Hospital João XXIII - FHEMIG
Av. Professor Alfredo Balena, 400, Bairro: Santa Efigênia
Belo Horizonte, MG - Brasil, CEP: 30130-100

Recebido em: 17/08/2009
Aprovado em: 30/06/2010

Instituição: Serviço de Cirurgia Geral e do Trauma do Hospital João XXIII - FHEMIG. Belo Horizonte, MG - Brasil

Resumo

A duodenopancreatectomia é rara no trauma, entretanto, em algumas situações é necessária, como ocorre nas lesões complexas da confluência biliopancreática. O grau da lesão, tipo do trauma, estabilidade hemodinâmica e a condição homeostática do paciente no momento da cirurgia são fatores que determinam a técnica cirúrgica a ser utilizada no trauma. Este relato objetiva demonstrar tipo de lesão grave e rara no trauma com seu resultado, além da opção de reconstrução do trânsito biliar e anastomose pancreato-duodenal.

Palavras-chave: Pâncreas/lesões; Duodeno/lesões; Traumatismos Abdominais; Pancreaticoduodenectomia.

 

INTRODUÇÃO

O trauma de pâncreas é pouco frequente, independentemente do tipo de impacto abdominal.1,2 Esse fato, por si só, interfere na experiência de cada serviço, assim como na elaboração diagnóstica e terapêutica. Diagnosticar a lesão pancreática, principalmente no trauma fechado, não é tarefa fácil porque muitas vezes ocorre tardiamente ou passa despercebida, o que modifica sobremaneira os resultados.

O primeiro relato de trauma pancreático foi realizado por Travers, em 18273, tendo sido o diagnóstico firmado após necropsia. Desde então, tal problema vem sendo estudado e publicações feitas na tentativa de promover avanço no seu diagnóstico e tratamento.

As taxas de morbidade e de mortalidade são de 30 a 50% e de 9 a 34%, respectivamente, com média de 19% para trauma pancreático.1,4-13

Atualmente, tem sido relatada incidência de 0,2 a 12% e de 5 a 7% dos traumas abdominais fechados5,6 e penetrantes2, respectivamente. Glancy, em revisão de 1989, com 1.984 casos, fez apanhado geral sobre o tema e referiu que o trauma pancreático ocorreu em 73 e 27% das vezes devido a trauma penetrante e contuso, respectivamente.7

Mikulics, em 1903, revisou série de 45 pacientes relatados na literatura da época e separados em grupo sem (20) e com (25) abordagem cirúrgica, notando que a morte aconteceu em 20 e 18, respectivamente. A partir desse estudo recomendou-se que o tratamento para tais lesões fosse através de incisão abdominal mediana, sutura pancreática para hemostasia e posicionamento de dreno.8

Em 1946, Whipple descreveu a sua técnica para ressecção duodenal com pancreatectomia total ou subtotal.9

Nos dias atuais, o tratamento da lesão pancreática é realizado por intermédio de medida não operatória ou simples drenagem até a duodenopancreatectomia ou "damage control", dependendo da situação.10-13

A classificação do trauma pancreático mais utilizada é a da American Association for the Surgery of Trauma (AAST) e assegura a melhor conduta de acordo com a classificação da lesão.11

A lesão pancreática é ainda mais grave e de difícil tratamento se a ela estão associadas lesões em outras vísceras ou estado de choque. As complicações dessas lesões são frequentes, variando de 30 a 60%14, e de difícil manuseio.

Por ser lesão pouco frequente, podendo ser encontrada em menos de 5% dos traumas abdominais graves15, e ter relativamente poucos artigos com consenso de conduta, este trabalho relata um caso conduzido no Hospital João XXIII de Belo Horizonte, centro nível I em trauma. Destacam-se a ressecção e reconstrução do trânsito em um só tempo e a utilização da vesícula biliar como alternativa à anastomose coledocojejunal.

 

RELATO DE CASO

Paciente masculino, 16 anos, vítima de queda de laje, aproximadamente seis metros, após contato com rede elétrica. Colidiu com abdômen contra anteparo fixo. A descarga elétrica acometeu a mão esquerda, com saída pelos pés. Houve relato de perda de consciência. Foi resgatado pelo Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU) segundo o protocolo de atendimento pré-hospitalar.

Foi admitido no Hospital João XXIII após 30 minutos de trauma e atendido de acordo com o protocolo ATLS®. Tinha as vias aéreas pérvias e a coluna imobilizada, frequência respiratória de 24 irpm, sem anormalidades à ausculta respiratória, saturação de oxigênio a 96%, tórax sem sinais de trauma, mucosas hiporcoradas +/4, frequência cardíaca de 100 bpm, pressão arterial sistêmica de 150/100 mmHg, pulsos periféricos amplos e com boa perfusão, abdômen muito distendido com sinais de irritação peritoneal, escala de coma de Glasgow (ECG) de 15, pupilas normais, lesões de segundo e terceiro graus decorrentes de queimaduras em antebraço esquerdo, pernas e pés (Figuras 1 e 2).

 


Figura 1 - Queimadura de terceiro grau nos membros.

 

 


Figura 2 - Queimadura de terceiro grau nos membros.

 

Foi submetido a venóclise, coleta de amostra de sangue e encaminhado, estável, para estudo à tomografia de crânio, cervical e tórax. As tomografias estavam normais. Foi indicada laparotomia devido à irritação peritoneal (Figuras 3 a 10)

 


Figura 3 e 4 - Lesão Gástrica (transecção pré-pilórica).

 

 


Figura 5 - Lesão pancreática.

 

 


Figura 6 - Duodenorrafia e preparação para Duodenopancreatectomia.

 

 


Figura 7 - Pancreatoduodenoanastomose.

 

 


Figura 8 - Preparação da vesícula para anastomose jejunovesical.

 

 


Figuras 9 e 10 - Pancreatojejunostomia e anastomose jejunovesical terminadas.

 

O achado peroperatório foi de grande quantidade de secreção entérica e sangue na cavidade, secção completa do piloro com a primeira porção duodenal, laceração/explosão da segunda e terceira porções do duodeno, laceração e desinserção da cabeça do pâncreas e desinserção do colédoco.

Diante de lesão complexa da confluência biliopancreática e do estado homeostásico do paciente no momento, optou-se por duodenopancreatectomia e jejunostomia. Foram realizadas gastroduodenopancreatectomia, pancreatojejunostomia com rafia ductomucosa guiada por cateter fino, peritonização da face cruenta do pâncreas com a serosa do intestino (como se fosse um segundo plano de sutura), colecistoenteroanastomose (ligado o colédoco e realizada a sutura com a vesícula devido ao seu calibre), gastroenteroanastomose isoperistáltica na grande curvatura.

O paciente permaneceu estável durante todo o procedimento, recebendo: 1.000 ml de coloide, 600 ml de concentrado de hemácias, 600 ml de plasma, 5.000 ml de cristaloide.

O tempo cirúrgico total foi de quatro horas.

Foi encaminhado ao Centro de Tratamento Intensivo (CTI) no pós-operatório com os seguintes exames: pH: 7,23, PO2: 302 mmHg, HCO3: 16 mEq/L, Hb: 11 g%, Htc: 36%, RNI: 1,24, CPK: 16140 UI.

Foi realizada no terceiro dia de pós-operatório (DPO) a amputação da mão esquerda. A CK reduziu e a extubação foram realizadas nos terceiro e sexto DPOs, respectivamente. A alta do CTI foi possível no oitavo DPO. A dieta oral foi restabelecida no oitavo e nono DPOs, sendo completa três dias após. Realizou-se enxertia nos membros inferiores no 17º DPO.

 

DISCUSSÃO

O trauma pancreático por vezes pode ter manifestação frustra ou mesmo se apresentar com irritação peritoneal. A dosagem de amilase pode ser normal, com ruptura ou não do ducto pancreático.15,16

Nas vítimas de trauma contuso e estáveis, a tomografia pode ser importante método diagnóstico na falta de marcadores que indiquem laparotomia.6,17 Tem grande sensibilidade e especificidade, além de ser importante para o acompanhamento complementar da avaliação clínica. O intervalo para repetir o exame ainda não está bem determinado e depende da evolução do paciente.

A laparotomia foi indicada neste caso devido ao mecanismo de trauma e a presença inequívoca de lesão abdominal. A maioria das lesões pancreáticas é diagnosticada em laparotomia exploradora devido a sangramento intra-abdominal ou a lesões associadas.18

A colangiopancreatografia retrógrada endoscópica (CPRE) também é importante método propedêutico para os traumas contusos em pacientes estáveis devido à possibilidade de diagnosticar lesões ductais e propiciar tratamento precoce.6,19 A CPRE tem acurácia próxima de 100% para lesão ductal.20

O trauma de pâncreas, especialmente os decorrentes a trauma contuso sem lesão ductal, pode ser tratado de maneira conservadora21, sendo a decisão de intervenção guiada pela clínica do paciente. Já os traumatismos penetrantes requerem intervenção e procedimentos específicos, mesmo porque pode haver outras lesões associadas à lesão pancreática.10

As complicações decorrentes de trauma pancreático podem ser sangramento, abscesso, pancreatite, fístula e pseudocisto. A causa de óbito geralmente é sepsis, hemorragia tardia ou necrose por pancreatite. A presença de lesão ductal é o principal fator determinante de morbimortalidade.5,13,16

A duodenopancreatectomia é opção para as lesões grau V de pâncreas com altas taxas de mortalidade, principalmente se estiver associada lesão vascular.22,23

Neste caso, houve ótima evolução clínica, apesar da gravidade da lesão, dos riscos relativos às suas complicações e sequelas da queimadura elétrica.

A decisão de realizar o procedimento em um só tempo se deve unicamente ao achado e à estabilidade clínica do paciente. O tipo de reconstrução envolvendo a vesícula parece diminuir o risco de complicações com as vias biliares. A anastomose término-lateral pancreato-jejunal envolvendo somente o ducto pancreático com a peritonização do remanescente pancreático com o próprio intestino também diminui a ocorrência de fístula.

A falta de experiência com esse tipo de lesão se deve à baixa incidência de duodenopancreatectomia no trauma. No Hospital João XXIII verificam-se cerca de 900 laparotomias devido a trauma por ano e os casos de duodenopancreatectomia são em torno de um a dois por ano, em média.

O trauma pancreático é situação complexa e de difícil diagnóstico e tratamento, principalmente nos casos de trauma contuso. Há situações em que a escolha do tratamento recai sobre a ressecção da lesão com reconstrução em um ou dois tempos.

A boa evolução advém da experiência da equipe e das condições clínicas do paciente no momento da operação.

 

REFERÊNCIAS

1. Wisner DH, Wold RL, Frey CF. Diagnosis and treatment of pancreatic injuries. An analysis management principles. Arch Surg. 1990;125(9):1109-13.

2. Cogbill TH, Moore EE, Morris JA Jr, Hoyt DB, Jurkovich GJ, Mucha P Jr, et al. Distal pancreatectomy for trauma: a multicenter experience. J Trauma. 1991;31(12):1600-6.

3. Travers B. Rupture of the pancreas. Lancet. 1827;12:384.

4. Wilson R, Moorehead R. Current management of trauma to the pancreas. Br J Surg. 1991;78(10):1196-202.

5. Jones RC. Management of pancreatic trauma. Am J Surg. 1985;150(6):698-704.

6. Cirillo RL Jr, Koniaris LG. Detecting blunt pancreatic injuries. J Gastrointest Surg. 2002;6(4):587-98.

7. Glancy KE. Review of pancreatic trauma. West J Med. 1989 July;151:45-51.

8. Mikulicz-Radecki I von. Surgery of the pancreas. Ann Surg. 1903;38:1-27.

9. Whipple AO. Observations on radical surgery for lesions of the pancreas. Surg Gynecol Obstet. 1946;82:623-31.

10. Sims EH, Mandal AK, Schlater T, Fleming AW, Lou MA. Factors affecting outcome in pancreatic trauma. J Trauma. 1984;24(2):125-8.

11. Moore EE, Cogbill T, Malangoni M, Jurkovich GJ, Champion HR, Gennarelli TA, et al. Organ injury scaling II: pancreas, duodenum, small bowel, colon, and rectum. J Trauma. 1990; 30:1427-9.

12. Young PR Jr, Meredith JW, Baker CC, Thomason MH, Chang MC. Pancreatic injuries resulting from penetrating trauma: a multiinstitution review. Am Surg. 1998;64(9):838-44.

13. Akhrass R, Yaffe MB, Brandt CP, Reigle M, Fallon WF Jr, Malangoni MA. Pancreatic trauma: a ten-year multi-institutional experience. Am Surg. 1997;63(7):598-604.

14. Moore EE, Feliciano DV, Mattox KL, editors. Trauma. 5th ed. New York, NY, USA: McGraw-Hill, 2003.

15. Craig MH, Talton DS, Hauser CJ, Poole GV. Pancreatic injuries from blunt trauma. Am Surg. 1995;61:125-8.

16. Bradley EL, Young PR Jr, Chang MC, Allen JE, Baker CC, Meredith W, et al. Diagnosis and initial management of blunt pancreatic trauma: guidelines from a multiinstitutional review. Ann Surg. 1998;227:861-9.

17. Peitzman AB, Makaroun MS, Slasky BS, Ritter P. Prospective study of computed tomography in initial management of blunt abdominal trauma. J Trauma. 1986;26(7):585-92.

18. Brooks A, Shukla A, Beckingham I. Pancreatic trauma. J Trauma. 2003;5(1):1-8.

19. Patton JH Jr, Lyden SP, Croce MA, Pritchard FE, Minard G, Kudsk KA, et al. Pancreatic trauma: a simplified management guideline. J Trauma. 1997; 43:234-9.

20. Coppola V, Vallone G, Verrengia D, Di Filippo G, Alfinito M, Coppola M, et al. Pancreatic fractures: the role of CT and the indications for endoscopic retrograde pancreatography. Radiol Med. 1997;94(4):335-40.

21. Chrysos E, Athanasakis E, Xynos E. Pancreatic trauma in the adult: current knowledge in diagnosis and management. Pancreatology. 2002;2:365-78.

22. Mansour MA, Moore JB, Moore EE, Moore FA. Conservative management of combined pancreatoduodenal injuries. Am J Surg. 1989;158(6):531-5.

23. Wynn M, Hill DM, Miller DR, Waxman K, Eisner ME, Gazzaniga AB. Management of pancreatic and duodenal trauma. Am J Surg. 1985;150(3):327-32.