RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 20. 4

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História da Medicina

Casa de Saúde Santa Fé: breve história de uma ex-colônia de hanseníase

Santa Fé Health Institute: brief history of a former leprosy colony

Tufi Neder Meyer

Endereço para correspondência

Tufi Neder Meyer
Rua: Desembargador Alberto Luz, 129
Três Corações, MG - Brasil. CEP: 37410-000
E-mail: tufi@uai.com.br

Recebido em: 07/10/2008
Aprovado em: 30/06/2010

Instituição: Casa de Saúde Santa Fé, FHEMIG (Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais), Três Corações, MG - Brasil

Resumo

Este trabalho descreve a história de antiga colônia para o isolamento compulsório de hansenianos (lepra), o Sanatório (hoje Casa de Saúde) Santa Fé, em Três Corações, Minas Gerais. São estudadas as origens da política sanitária da internação compulsória, assim como as raízes do preconceito e do estigma em relação à hanseníase. Descrevem-se os aspectos básicos da vida em uma colônia, ao tempo dessa política. As mudanças na destinação do estabelecimento são enfocadas, assim como as suas perspectivas futuras.

Palavras-chave: Hanseníase; História da Medicina; Isolamento de Pacientes.

 

INTRODUÇÃO

Ao longo dos séculos, poucas doenças despertaram tantos receios, pavores e preconceitos quanto a hanseníase, antes chamada de lepra. Durante longo tempo, o desconhecimento de sua causa, a inexistência de tratamento, as deformidades associadas e o mito de que poderia ser castigo, mais que moléstia, levaram ao isolamento dos doentes, banidos da sociedade e ajuntados em lazaretos. Estes evoluíram para sanatórios ou hospitais-colônia, cuja construção, no Brasil, foi política sanitária pública. Com as mudanças radicais na abordagem da hanseníase, derivadas do entendimento de sua etiologia, do aparecimento de terapêutica eficaz e da humanização do atendimento, esses hospitais sofreram profundas alterações.

Em Três Corações, MG, uma ex-colônia, a Casa de Saúde Santa Fé, funciona há mais de 60 anos. Nesse tempo, sofreu profundas alterações e mudou radicalmente sua destinação, a exemplo de outros hospitais de mesmo tipo. Essa evolução é relatada neste trabalho, no qual também se expõe um paradigma de saúde pública que mudou bastante. Toca-se também, ainda que en passant, na questão do internamento compulsório, norma que vigorou durante muito tempo e produziu trauma e uma dívida social. Houve inegável interferência na vida das pessoas doentes, com caráter autoritário e mesmo policial.1

 

ISOLAMENTO E COLÔNIAS

As origens dos leprosários datam da Idade Média. Os doentes eram excluídos e discriminados, encaixando-se em um estatuto jurídico especial; era vedado seu acesso ao sacerdócio e, nos leprosaria, homens e mulheres eram separados e impedidos de procriar. Dadas as terríveis condições de vida dos pobres durante esse período histórico repleto de guerras, doenças, sofrimento e fome, isolar-se em um leprosário constituía uma espécie de duvidoso privilégio: o de morrer da doença e não de inanição. Chegou a haver grande quantidade de leprosários nos períodos do auge da prevalência da hanseníase, constituindo-se uma verdadeira "sociedade leprosa".2

A hanseníase inexistia entre os índios brasileiros, tendo sido trazida pelos europeus e escravos africanos. Já em 27 de janeiro de 1741 foi elaborado, pela Capitania do Rio de Janeiro, um "Regulamento de Profilaxia da Lepra", incluindo medidas de isolamento compulsório.3 Acredita-se que a moléstia tenha adentrado o território de Minas Gerais já no século XVII, visto que o intercâmbio com a metrópole era intenso.4 No século XIX, iniciou-se a construção de leprosários, que deveriam ser feitos em locais de clima favorável, próximos de centros urbanos, com terra para o labor agrícola e instalações para experiências médicas.1 Em Minas, o primeiro surgiu em Sabará, em 1845, seis anos depois de existir uma lei, a de número 148, que permitia a criação de um hospital em cada cidade ou vila destinado à separação dos doentes da sociedade.4 Tais estabelecimentos não eram, na verdade, hospitais: seriam mais lazaretos, em que os doentes não dispunham de assistência de saúde. Eram mantidos pela caridade pública, e não pelo governo, razão pela qual saíam os pacientes frequentemente a esmolar. Essa necessidade de obter auxílio para sua subsistência criou neles, como já acontecera no período medieval, na Europa, o fenômeno do nomadismo.5

Já na República, com o crescimento dos conhecimentos bacteriológicos, surgiram as noções de campanhas contra doenças e de polícia sanitária; em 1911, a hanseníase tornou-se, no Brasil, doença de notificação compulsória.6

As colônias foram planejadas como um instrumento de excelência para o tratamento da hanseníase na chamada era bacteriológica, quando o saber em saúde foi fortemente influenciado pela teoria unicausal da doença, a descoberta de agentes etiológicos na produção e transmissão das doenças e dos seus respectivos modelos terapêuticos de isolamento e quarentena.1 Houve quatro períodos históricos, no que se refere às colônias de hanseníase:

Até meados dos anos 1.950, período em que as colônias aumentaram e o isolamento era obrigatório;

1957-58, quando se estabeleceram "novas bases profiláticas" e o isolamento mudou de compulsório para seletivo;

de 1957-58 a 1977, quando a organização sanitária brasileira sofreu grandes transformações, tanto no plano federal (Sistema Nacional de Saúde, Divisão Nacional de Dermatologia Sanitária) quanto estadual (surgimento da Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais - FHEMIG);

depois de 1977, quando o direito de ir e vir foi completamente restituído aos pacientes das colônias, que foram então liberalizadas em conjunto com as tentativas de fazer da hanseníase "uma doença igual às outras".

No Brasil, assim como em alguns outros países, o termo hanseníase veio a substituir a palavra lepra. A ideia foi dissociar tudo aquilo que milenarmente foi associado pejorativamente à lepra daquilo que efetivamente constitui apenas uma doença. Lepra traz consigo estigma, exclusão social, policiamento, aversão, segregação, preconceito, razão pela qual a troca foi benéfica, conquanto longe de tornar-se uma vara de condão que afastasse todas essas conotações negativas. "Os termos lepra e leproso, forjados na Antiguidade, representam negação de um valor cultural básico, a negação da integridade física e também moral."1

Historicamente, o modelo adotado para a hanseníase baseava-se na exclusão social, no exílio, o que agia como se fosse uma "purificação" das aglomerações sociais. O doente, uma vez descoberto, era expulso, segregado, isolado e a doença encarada como uma ameaça social, um perigo a ser afastado, de vez que não podia ser eliminado. Além do risco do contágio - existente, porém muito mais baixo do que o pavor que a moléstia provocava -, a hanseníase foi vista como uma punição divina, sendo o doente culpado de graves pecados e que devia, também por isto, ser afastado da convivência dos homens. Diagnosticada a doença - e nesses tempos de parcos conhecimentos, muita gente com outras afecções dermatológicas deve ter sido incluída no rol dos leprosos - o infeliz portador assistia a uma "missa do leproso", recebia indumentária própria, de uso obrigatório, além de uma matraca, com a qual anunciava, também compulsoriamente, sua aproximação das cidades, a fim de prevenir os moradores. Em algumas poucas datas de exceção, os doentes podiam aproximar-se e, mesmo, lhes era oferecido um banquete.

Fundamental na hanseníase, "o estigma é a propriedade, que possui certas categorias ou valores sociais de funcionar como sinal desencadeador de uma emoção, que se manifesta numa conduta de afastamento imediato."7 Ainda sobre o estigma, escreveu Goffman8:

Enquanto o estranho está à nossa frente, podem surgir evidências de que ele tem um atributo que o torna diferente dos outros que se encontram numa categoria em que pudesse ser incluído [...] Assim, deixamos de considerá-lo criatura comum e total, reduzindo-o a uma pessoa estragada e diminuída. Tal característica é um estigma8.

As reações podem ser várias: tendência ao autoisolamento, busca de pessoas igualmente estigmatizadas e formação de associações com elas, hostilidade em relação a pessoas "normais", alienação, criação de nova personalidade, tentativas de correção do problema causador, sua exploração para obtenção de ganhos secundários.1

Gandra observou que a deformidade física é a ocorrência mais temida, ao contrário do medo da contaminação. "O que se teme, de fato, é o resultado da contaminação, o efeito e não a própria contaminação." Esse autor dividiu as condutas de afastamento desenvolvidas pela sociedade em relação ao doente, em níveis: evitamento - as pessoas se esquivam do contato de forma não declarada; discriminação - a sociedade afasta-se do doente, criando uma barreira entre ambos e negando-lhe a igualdade no trato; isolamento forçado - implicando o rompimento da solidariedade.7

A conduta do isolamento, como parte do controle da hanseníase, foi relembrada em 1923, na 3a Conferência Internacional de Lepra (Estrasburgo). O referencial foi a bem-sucedida campanha de erradicação dessa doença na Noruega, no século XIX. Entretanto, a sua eliminação naquele país nórdico foi acompanhada de grande melhora das condições sanitárias gerais e do nível de educação, remuneração e bem-estar dos habitantes. Imputar o sucesso da campanha apenas a medidas de isolamento não foi um raciocínio cientificamente válido.

Nos anos 1920, houve debates entre os formuladores das políticas de saúde no Brasil, a respeito do isolamento. Havia correntes que defendiam isolamento seletivo e voluntário, outras o desejavam compulsório e outra, ainda, muito radical, propunha o isolamento insular (por exemplo, a Ilha Grande, no litoral do Rio de Janeiro).9 Venceu a política do isolamento compulsório. Entre 1926 e 1934, foi arquitetada a estrutura para essa política: leprosários, para o isolamento, dispensários, como ambulatórios, e preventórios. Estes últimos eram os locais para onde seriam, também de modo obrigatório, removidos os recém-nascidos de pais hansenianos internados. Em 1934, já havia no Brasil 24 leprosários. Em 1935, foi institucionalizada a Campanha Nacional contra a Lepra, que propôs erradicar a doença mediante, justamente, o isolamento compulsório nos leprosários, o controle e a vigilância nos dispensários e o controle da prole dos doentes nos preventórios. Previu-se a construção de leprosários, sob a forma de colônias agrícolas, em todos os estados do Brasil.1

Em 1938, realizou-se no Cairo o IV Congresso Internacional de Lepra, que referendou a política do isolamento, entretanto, priorizando-o para os chamados "casos abertos", de grande quantidade de bacilos e expressivo potencial de transmissão da doença. Esse isolamento seletivo foi ignorado no Brasil, onde se construiu uma rede de 36 leprosários nos quais, em 1950, chegou a haver o total de 23.000 doentes.10

Em Minas Gerais, além do Hospital de Lázaros de Sabará, foram criadas as Colônias Santa Izabel, em Betim (1931), Santa Fé, em Três Corações (1942), Cristiano Machado, também em Sabará (1944), São Francisco de Assis, em Bambuí (1945), e Padre Damião, em Ubá (1945). No seu conjunto, poderiam internar até 6.580 pacientes.1

 

ORIGENS

A Colônia Santa Fé foi inaugurada em 12 de maio de 1942, na zona rural de Três Corações. Originalmente, teria capacidade para receber 1.600 pacientes de hanseníase.11 Há conflito entre uma versão, que consta de documento fornecido pela própria instituição12, e outra, relatada por fonte fidedigna: a própria pessoa que veio abrir a colônia, o médico Orestes Diniz.13 Segundo a primeira versão, ao ser inaugurada, já recebera 400 pacientes, que para lá teriam acorrido antes mesmo do início oficial de seus trabalhos.

A construção da colônia foi o ápice de um longo processo, provavelmente iniciado 10 ou 20 anos antes de sua abertura. Havia alta incidência de hanseníase no sul de Minas Gerais. A população se inquietava, transmitindo suas preocupações à classe política. Os pacientes em piores condições eram párias: os "leprosos" não eram atendidos em clínicas nem podiam tratar-se em hospitais gerais. Muitos perdiam seus empregos e ocupações, vivendo de mendicância, deambulando pelas estradas à cata de esmolas e de comida. Ajuntavam-se em grupos e, quando assim adentravam as cidades, produziam intensas reações da população, sempre temerosa e desinformada.

Já em 25 de setembro de 1933, a partir do Decreto Estadual no 11.087, foi aprovada a criação de um leprosário na Zona de Mata e de outro no sul de Minas, ainda sem localização definida.12 Em 1935, o prefeito de Três Corações, Francisco Franqueira, pleiteou para lá o sanatório. Em 1936, após reuniões envolvendo políticos e proprietários rurais do município, definiu-se área de cerca de 100 alqueires para a colônia. Em 1937 foi apresentada a escritura de doação dessas terras para o estado, condicionada à manutenção do nome "Santa Fé". O estado não tardou a instituir concorrência pública, vencida por uma empresa de Belo Horizonte, iniciando-se os trabalhos. As obras, em 1938, foram inspecionadas pelo Secretário da Educação e Saúde, Cristiano Machado. A notícia da construção espalhou-se pela região, o que teria provocado a chegada de centenas de pacientes de hanseníase - sempre segundo a versão oficial. Eles teriam vindo de trem, em vagões "sanitários" (os pacientes eram proibidos de viajar em vagões comuns, com os demais passageiros), a cavalo ou mesmo a pé e acampado nas vizinhanças da colônia inacabada e, também, dentro da cidade. Isto provocou reações da população e o prefeito requisitou, do estado, as providências cabíveis. Ele recebera autorização para que os doentes fossem encaminhados à colônia, mesmo antes do término das obras, para guarida provisória.

Orestes Diniz, figura ímpar na história da hanseníase em Minas Gerais, médico leprologista, escreveu e publicou muitos relatos científicos sobre a doença. Também publicou um livro não médico, "Nós também somos gente", em 1961. O último capítulo dessa obra ("Abre-se um novo leprosário - inauguração da Colônia do Sul") versa justamente sobre o início da Santa Fé. Os fatos narrados por Diniz são diferentes daqueles hoje aceitos como verdade histórica pela própria instituição e são a seguir resumidos.

A colônia ficou pronta em 1940 e seria suficiente para 1.500 doentes. A inauguração, no entanto, não se fez, por conta de um litígio entre os governos federal e estadual. Este último opinava que a manutenção dos sanatórios deveria ser feita pela Federação, e não pelos estados. Já o governo federal achava que isto seria da alçada dos governos estaduais. No caso da Santa Fé, a pendência durou dois anos entre o término da construção e o início do funcionamento. Nesse ínterim, as obras conclusas e os equipamentos começaram a deteriorar-se. Tal paralisia foi interrompida de modo súbito: em uma tarde do início de maio de 1942, Diniz foi convocado, por telefone, por seu superior, a ir rapidamente para Três Corações e a colocar em funcionamento a colônia. O governo do estado soubera que uma comissão da Aeronáutica lá estava, planejando, com o apoio da Prefeitura, instalar uma escola de aviação. Diniz convocou alguns auxiliares e dirigiu-se ao destino no mesmo dia. Vieram de trem, em viagem diurna e noturna de cerca de 20 horas. Antes de chegar a Três Corações e à colônia, um dos auxiliares, a mando de Diniz, apeou do comboio ferroviário, alugou um caminhão, dirigiu-se a focos de doentes de hanseníase já conhecidos e ofereceu aos mesmos a internação, começando a arrebanhar pacientes. Chegando a Três Corações, outro auxiliar foi despachado para Varginha, com a mesma finalidade. Já havia, acampados nas proximidades da colônia, oito enfermos - Diniz deles se aproximou e lhes ofertou abrigo, prontamente aceito. Fez, ainda, telefonemas a chefes de Centros de Saúde da região para angariar mais doentes. Isso tudo ocorreu no dia 12 de maio de 1942 - data que foi considerada, desde então, a da inauguração da colônia, embora nenhuma solenidade ou festejo tivesse acontecido. Nos dias seguintes, mais pacientes foram chegando: 26 por caminhão, 44 em um vagão especial de trem, outros tantos por modos diversos. As autoridades municipais, secundadas por outras pessoas da comunidade, ficaram sabendo dessa movimentação. Confrontaram Diniz, pois, segundo este, seu desejo, naquele momento, era de fato instalar a escola aviatória nas dependências da colônia. Médicos da cidade opina-ram que deveria ser construída "uma muralha" em torno da mesma, com a finalidade de dificultar a fuga dos doentes. Em que pese tal oposição, Diniz seguiu firme. Em 17 de maio de 1942, cinco dias depois, ele já enviava, ao governo estadual, o primeiro relatório de suas atividades. Deu conta de que a colônia estava funcionando e cumprindo suas finalidades.

 

FUNCIONAMENTO

A logística do atendimento de uma colônia como a Santa Fé era toda baseada no isolamento. Sua arquitetura obedecia a tal sistemática: havia, dentro da unidade, um setor dito "sadio" e outro de doentes. Os médicos, alguns funcionários e as irmãs de caridade eram as únicas pessoas que passavam de um setor para o outro sem restrições. No setor sadio ficavam as diversas residências de funcionários. Durante muitos anos, o diretor residia ali, exercendo seu cargo em tempo integral e dedicação exclusiva. O mesmo se aplicava ao administrador e a alguns servidores não hansenianos. Também a clausura das irmãs e a residência do capelão ficavam nesse setor. Completavam-no: administração, laboratório, farmácia, almoxarifado e preventório. Neste ficavam crianças, que eram parentes de internados, em observação até a exclusão da doença.

Um vestiário era usado por todos os que passavam de um setor para o outro. No local, aventais, calças, gorros e máscaras de tecido branco eram colocados por sobre as roupas comuns e usados durante as atividades no setor doente. Terminadas estas, de volta ao vestiário, médicos e funcionários removiam as vestes brancas, que eram colocadas em um cesto de roupas servidas, a fim de serem lavadas, todos os dias.

No hospital do sanatório, essa lógica de segregação se mantinha. Para evitar confusão, é bom que se esclareça que o "sanatório" era toda a área, compreendendo as terras e as instalações já descritas e a descrever, enquanto o "hospital" era um edifício destinado a atividades de internação semelhantes àquelas de um nosocômio comum. Entretanto, mesmo quem residisse em casas dentro do sanatório, sendo doente, considerava-se um "internado". O hospital, um grande prédio de dois pavimentos, possuía uma área de enfermarias, alguns apartamentos destinados a pacientes de mais posses, um bloco cirúrgico simples, salas administrativas, um serviço de Raios-X e um grande setor ambulatorial, com consultórios e outras dependências. Tal área de ambulatório era longa, tendo suas salas entre dois corredores laterais. Um dos corredores era "doente" e o outro, oposto, era "sadio". Os médicos e funcionários adentravam os consultórios e demais salas por uma porta comunicando-se com o seu corredor sadio. Os pacientes aguardavam no corredor deles, do qual saía outra porta, oposta àquela já citada, pela qual ingressavam nas salas. Os corredores dos setores de internação situavam-se também externamente, de modo consentâneo com o raciocínio do isolamento.

Além do hospital, havia pavilhões horizontais padronizados, constando todos de um salão de entrada, para o qual se abriam as instalações sanitárias comunitárias, e mais 10 quartos, cinco à direita e cinco à esquerda, em cada um dos quais residiam dois a três pacientes. Tais edifícios eram chamados de "enfermarias", se neles se abrigassem pacientes asilares, que demandavam cuidados constantes, ainda que sem indicação para internação formal no hospital. Havia enfermarias masculinas e femininas separadas, sempre sob o olhar vigilante das irmãs de caridade. O mesmo tipo de prédio passava a chamar-se "pavilhão" se servisse apenas como moradia coletiva, com pacientes que não exigiam atenção constante. Os pavilhões podiam ser de solteiros, em cujo caso eram também separados em masculinos ou femininos, ou de casados - em cada quarto morava um casal. Havia também casas que podiam ser construídas por pacientes mais abonados, com permissão do estado e seguindo plantas fornecidas por este. Bem próximo de um campo de futebol localizava-se um pavilhão especial, diferente dos demais, onde ficavam as crianças doentes - não aquelas nascidas de pais hansenianos, mas as que eram trazidas de fora, já vítimas da moléstia, para internação compulsória, separadas de seus pais. Um tipo curioso de edificação eram as chamadas "cozinhas". Os pavilhões não possuíam instalações para esse fim, talvez porque os planejadores originais achassem que todos os pacientes devessem tomar refeições no refeitório ou receber comida já pronta. Como o uso não consagrou esse procedimento, os pacientes se arranjaram construindo toscos casebres de meia-água, próximos dos pavilhões, onde cozinhavam sua alimentação. Em alguns casos, ampliaram essas edículas, a ponto de nelas poderem residir, mesmo assim conservando o nome de "cozinha".

Rígidas medidas de manutenção do isolamento eram empregadas: regulamentos estritos, cuja imposição era da alçada do diretor e cujo cumprimento era vigiado por um corpo de guardas. Estes eram também doentes e sua chefia ficava a cargo de um "delegado". Não havia caráter oficial na função, a não ser pela nomeação feita pelo próprio diretor da colônia, o que não bastava para, do ponto de vista legal, investir de autoridade policial o "delegado". Como, entretanto, não houvesse qualquer tipo de policiamento oficial no interior da colônia - os soldados da cidade ali não iam - esse corpo de guardas improvisados servia à manutenção da ordem pública, além de cuidar para que nenhum doente intentasse fugir da instituição. Não havia respeito ao direito de ir e vir, os internados ficavam de fato restritos ao interior da colônia e, ali, tampouco podiam passar para o setor "sadio".

Havia penalidades importantes para quem tentasse transgredir tais normas. Um prédio funcionava como cadeia - ao arrepio de inquéritos, processos, julgamentos ou outras normas elementares de Direito. Elevado número de pequenas "penalidades" tinha suas punições decididas pelo próprio delegado, enquanto as mais relevantes eram levadas ao conhecimento do diretor, o qual impunha a pena. Esta podia ser, inclusive, de detenção na cadeia, por períodos variáveis. As maiores permanências no cárcere eram destinadas a quem fugisse da colônia, havendo progressividade na medida em que houvesse reincidência. Esse sistema "penal" improvisado, embora de certa forma acobertado por regulamentos internos e do próprio estado,14 mantinha a ordem pública na ausência dos sistemas oficiais judiciários e policiais. Como mesmo pequenos delitos (embriaguez, furtos, desrespeito à hierarquia ou à moral e costumes) eram punidos, o ambiente era de respeito. Isso não impedia, entretanto, abusos de parte a parte, chegando a gerar, certa feita, um processo jurídico da situação de um guarda que repeliu uma ofensa de um internado.15

A grande autoridade da colônia era o diretor. Sempre um médico, não se limitava, entretanto, aos assuntos da profissão - tratava igualmente, senão mais, da administração; decidia sobre punições, como já se mencionou; autorizava casamentos entre pacientes; liberava eventualmente algum doente para ausentar-se, quando o assunto era grave, dando-lhe licença. Esta era fornecida por escrito, por tempo determinado e deveria ser portada pelo favorecido em qualquer lugar onde fosse, fora dos limites da colônia, a fim de evitar detenção e reenvio prematuro à instituição. O diretor dirigia, mas também era juiz de pendências de toda ordem entre os pacientes, inclusive de caráter sentimental. Sua autoridade era máxima e derradeira.

A portaria principal do sanatório dividia as duas grandes áreas, sadia e doente. Havia ali uma guarita, com um guarda dia e noite, e uma corrente. Desta para fora os pacientes eram proibidos de passar. Quem viesse de fora também não podia entrar, exceto com permissão do diretor. Vendedores externos, por conseguinte, foram vedados por muito tempo. Para resolver as pequenas necessidades de gêneros e miudezas, alguns doentes tornaram-se comerciantes, abrindo vendas, sendo obscuro como eles conseguiam abastecê-las.

Houve, no início da vida da colônia, atividades científicas de expressão. Em 1945, ali se realizou o Congresso de Leprologia, promovido pelas sociedades da especialidade de Minas Gerais e de São Paulo. Estiveram presentes 82 leprólogos, entre os quais três estrangeiros (da Argentina, Paraguai e Chile). Compareceram professores de faculdades médicas do Rio de Janeiro e de Belo Horizonte, além de cientistas do Instituto Oswaldo Cruz. Também veio o Secretário de Educação e Saúde, Cristiano Machado - figuras que, posteriormente, ficaram famosas nos meios leprológico e dermatológico no Brasil, apresentaram trabalhos - como Lauro de Sousa Lima, Ernani Agrícola, Francisco Rabelo, Sebastião Sampaio, Abraão Rotberg e Orestes Diniz.16

Bem no princípio da vida das colônias, não havendo comércio algum, nem algo para pagar ou comprar, era vedada, aos pacientes, a posse de dinheiro. Entrando na colônia, se alguém o tivesse, o mesmo tinha que ficar retido na administração. Sendo manifestamente impossível a ausência completa de meios de troca, chegou a existir uma moeda informal na Colônia Santa Izabel, próximo de Belo Horizonte, chamada de "boró". Os internados a utilizavam para seus pequenos negócios. Quando se viu que, além de inconveniente, era ilegal persistir em tal situação de confisco, voltaram os doentes a ter seu dinheiro. Ao usarem-no para pagar algo que viesse de fora, as cédulas tinham que passar por uma estufa, para que fossem esterilizadas. Anos mais tarde, quando a saída dos doentes passou a ser bem mais liberal, os mesmos faziam compras no comércio de Três Corações. O dinheiro dos pacientes era manuseado, pela população da cidade, com extremo cuidado, separado das demais notas e "processado" com ferro de passar roupa, para matar os micróbios.

O isolamento era mantido até mesmo quando das visitas de familiares e conhecidos. Junto à portaria, havia uma edificação, o "parlatório": um salão com acessos por dois lados (sadio e doente), separado completamente em dois setores por uma larga mesa de cimento. De um lado ficavam os pacientes e, do outro, sem contato físico, os visitantes, sob a vigilância dos guardas. Amigos, parentes, mesmo filhos não podiam apertar as mãos, nem abraçar ou beijar seus visitados ou visitantes.

Não eram, na colônia, os nascimentos tão frequentes quanto em ambientes normais, sendo reduzida a taxa de fertilidade. É que a hanseníase, antes de haver tratamentos eficazes, levava comumente à esterilidade masculina, em virtude de acometimento dos testículos pelo bacilo. Mesmo assim nasciam crianças. Os partos, forçosamente normais, eram assistidos, em sua maioria, por parteiras sem formação escolar, sendo rara a participação de médicos nesses trabalhos. As crianças eram separadas de seus pais no momento em que eram dadas à luz. Passavam da colônia para um preventório, situado em Varginha (Educandário Olegário Maciel). Ali viviam como órfãos de pais vivos, até que pudessem ser eventualmente adotados ou que atingissem a maioridade e pudessem ser independentes. De quando em quando, as crianças eram trazidas para uma visita aos pais. Esta se limitava ao avistamento, pais longe dos filhos, estes cuidados pelas irmãs de caridade ou por funcionárias do preventório, que aos pequenos apontavam uma figura e diziam: são aqueles os seus pais. E era só.

A maioria dos funcionários da unidade era composta de doentes: trabalhadores rurais, operários, artesãos, bombeiro, eletricista, pedreiros, auxiliares, costureiras, alfaiates, carpinteiros, marceneiros, pequenos comerciantes, etc. Havia uma espécie de "corpo de enfermagem" improvisado, pois não existia profissional algum habilitado, nem mesmo para chefia ou supervisão. As irmãs de caridade auxiliavam na direção desses práticos. Alguns pacientes prestavam serviços básicos de enfermagem, uns aplicavam injeções, enquanto outros, chamados de "curativeiros", trabalhavam com as múltiplas trocas de curativos, em uma sala a isso destinada. Essa era uma atividade muito requisitada, dado o alto número de úlceras de perna ou plantares que acompanham a desnervação periférica, um dos apanágios da hanseníase.

Ao tempo em que a colônia teve sua população máxima, de mais de 1.000 pacientes internados, tornou-se uma pequena cidade, com suas normas e re-gras particulares, entre as quais as mais importantes diziam respeito à já aludida privação da liberdade de ir e vir. Como em toda localidade, havia uma Igreja católica, com um pároco privativo. Durante largos anos, a função foi exercida por frades franciscanos oriundos da Itália.

Naqueles tempos sem televisão, em que apenas o rádio trazia notícias de fora, o lazer dos internados era suprido de várias formas. Havia um bom campo de futebol e uma quadra de esportes, aquele muito mais usado do que esta. Essas áreas foram construídas apesar de, por causa das características da doença, ser quase sempre contraindicada a prática de exercícios usando pés e mãos, por causa da insensibilidade. Um cinema funcionou durante algum tempo, exibindo filmes em cartaz na cidade. Festas e bailes eram promovidos pela Caixa Beneficente. Esta foi fundada pelos internados, para auxiliá-los em vários sentidos, inclusive conseguindo doações que redundassem em prol de todos. Tinha sede própria, com área administrativa, cantina e salão de festas. Mantinha alguns bens, como gado, do qual se angariava renda. Curiosamente, da direção da Caixa participavam sempre, por norma estatutária, o diretor e o administrador da colônia.

Já se mencionaram "ganhos secundários" - a exploração, pelos pacientes, de sua doença, para a obtenção de algum tipo de vantagem. Isso ocorria bastante nas colônias, em especial sob a forma de um procedimento apelidado de "bater gatos". A prática consistia em, perto do Natal, enviar cartas a inúmeras pessoas, nas quais o signatário se descrevia como um "leproso", internado em um lugar sem recursos, passando fome e necessidades e pedindo um donativo em dinheiro. Como as respostas foram compensadoras, o número de cartas aumentou ano a ano. Catálogos telefônicos forneciam nomes e endereços de destinatários. As cartas eram sempre manuscritas e, por tal razão, sendo em grande quantidade, quem as enviava em tais montantes tinha que contratar pessoas para escrevê-las, o que era feito ao longo do ano todo. Chegado o mês de dezembro, a agência de correios da colônia, privativa do local, despachava uma quantidade descomunal de cartas e recebia, como vales postais, representativo número de donativos. Alguns pacientes teriam enriquecido com essa prática, chegando a viver de rendas financeiras dela oriundas. Apesar de esclarecimentos prestados pela direção das colônias a quem os pedisse, dando conta de que não havia o quadro pintado pelos pedintes em suas missivas, pouca gente, na verdade, procurava essas orientações.

Quem falecesse na colônia era sepultado lá mesmo, no campo santo privativo, e não no cemitério da cidade. Não é errôneo dizer, então, que o isolamento era compulsório até depois da morte. A chamada "Missa do Leproso", que se rezava, na Idade Média para quem fosse banido da sociedade, tinha em seu texto, literalmente, palavras que equiparavam o status de doente ao de "uma morte em vida". O médico Almeida Neto, que foi diretor da colônia, publicou, em um artigo, que considerava que profissões poderiam ou não ser adequadas aos hansenianos, um relato a respeito dessa cerimônia, a separatio leprosorum, do qual o trecho a seguir, originalmente de Heisser, expressa muito bem o espírito da questão:

"[...] ajoelhava-se o leproso diante do altar, coberto o rosto com um véu negro, e ouvia devotamente a missa. Por três vezes o oficiante pegava numa pá, cheia de terra de cemitério, deixando-a cair sobre a cabeça do leproso, enquanto dizia: - Meu amigo, isto é o sinal de que estás morto para o mundo. Sis mortuus mundo."17

Até o fim dos anos 1940, não havia drogas ativas contra o bacilo de Hansen. Na falta de tratamentos, muitos experimentos, a maioria deles sem fundamentação científica ou ética adequada, eram praticados, a tal ponto que foi necessária uma regulamentação da matéria pela União.18 Os tratamentos empíricos incluíam a cauterização de lepromas, a injeção de óleo de chaulmoogra dentro dessas lesões, o uso de vitaminas e outras modalidades igualmente ineficazes.

As formas de transmissão da doença eram também pouco esclarecidas. Nos primeiros anos da vida da colônia, ali esteve o cientista Heráclides César de Souza-Araújo, fazendo experiências e pesquisas com possível transmissão da doença por insetos hematófagos. Dois trabalhos foram publicados a respeito, sendo coautor de um deles o então diretor da Santa Fé, o dermatologista José Mariano.19,20

Outro aspecto essencial da vida civil foi também vedado aos doentes, durante muito tempo: o direito ao voto. O já citado Souza-Araújo enviou correspondência ao presidente do Tribunal Superior Eleitoral, na qual defendia a observância disso que, segundo ele, era mesmo uma prerrogativa dos leprosos.21 Somente depois disso é que os internados passaram a votar. Mesmo assim, a apuração das urnas era feita dentro da própria colônia, por causa do receio que as pessoas tinham de manusear as cédulas.

O atendimento era feito, desde o início e até a década de 1980, por um corpo médico de apenas três ou quatro profissionais, que tratavam das centenas de doentes. Durante um bom tempo, houve um dermatologista e hansenólogo na colônia, mas não o tempo todo, de tal sorte que os clínicos gerais é que exerciam tais funções. Muitas das consultas médicas eram feitas apenas ouvindo-se o que o paciente tinha a dizer ou observando alguma lesão externa. Quanto ao exame físico, não eram poucas vezes ignorado, a tal ponto que os próprios pacientes achavam natural, ou costumeiro, que os médicos não os tocassem.

 

MUDANÇAS E PERSPECTIVAS

Em fins da década de 1950, houve um início de liberalização do isolamento, que passou a ser recomendado apenas para casos multibacilares, com alto risco de contágio. Isto reduziu um pouco o fluxo de pacientes, mas a colônia, mesmo assim, continuou populosa. Na década de 1960, durante o governo Magalhães Pinto, decidiu-se que o hospital, então em pleno funcionamento, precisava de reformas profundas. Uma empreiteira veio para a colônia, após a interdição do hospital. Nos setores de internação, isto é, na maior parte do prédio, quase todas as janelas foram removidas, o telhado foi trocado, colocou-se uma laje no segundo pavimento (antes dotado de forro de madeira) e, de repente, as obras foram interrompidas e o silêncio da ausência caiu sobre o hospital. Até hoje, 50 anos passados, o segundo pavimento do edifício continua servindo de habitação de pombos.

Nesse largo tempo, foram reconstruídos e equipados alguns setores. Em meados da década de 1970, com doações italianas conseguidas pelo capelão, Frei Estanislau de Gangi, foi reconstruído o bloco cirúrgico, juntamente com quatro apartamentos. Foi possível contratar um cirurgião, especialista até então inexistente. Operações de baixa complexidade passaram a ser feitas - não havia, como não há, anestesista contratado. Em meados da década de 1990, entretanto, mesmo estando em bom estado o bloco, decidiu-se novamente reformá-lo. Isso demorou muito a ser concretizado e não se terminou de todo, visto que o equipamento necessário ainda não fora adquirido pelo estado, de tal sorte que o bloco praticamente não funcionou. Na mesma época, parte do andar térreo do hospital foi reformada, instalando-se 20 leitos hospitalares em cinco enfermarias coletivas. O ambulatório foi igualmente reformado, passando a contar com um serviço de Radiologia, outro de Fisioterapia, uma nova Farmácia e um Laboratório de Patologia Clínica.

A vinculação da colônia se fazia antes diretamente à Secretaria de Saúde, na qual havia uma Diretoria de Lepra. Na década de 1970, foi constituída uma fundação estadual para a gestão dos serviços de hanseníase, denominada Fundação Estadual de Assistência Leprocomial (FEAL). As colônias passaram a se chamar sanatórios. Além da Santa Fé, a fundação geria os sanatórios Santa Izabel (Betim), Padre Damião (Ubá), São Francisco de Assis (Bambuí) e Cristiano Machado (Sabará), bem como a Colônia Penal Ernani Agrícola (Sabará) e, junto da administração, em Belo Horizonte, o Hospital de Recuperação. Posteriormente, a FEAL foi unida a outras fundações estaduais, a Fundação Estadual de Assistência Médica de Urgência (FEAMUR) e a FEAP (Fundação Estadual de Assistência Psiquiátrica), surgindo a Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (FHEMIG).22

Como o bacilo destrói nervos sensitivos e motores, mesmo que um paciente se cure do micróbio com algum tratamento, não haverá mais recuperação da função nervosa. Com isto, persistem para sempre anestesias e paralisias. O paciente, portanto, não crê no médico quando este lhe diz que está curado. Curado, ele, paciente, não se vê, pois há insensibilidade, perda de movimentos, deformidades, úlceras. Tal coisa remete à questão da reabilitação, fundamental no tratamento correto da hanseníase.

Durante largos anos quase nada se fazia em referência à reabilitação. Pouco se ouvia falar de operações reconstrutivas, de fisioterapia, de terapia ocupacional e de outros procedimentos de recuperação funcional e de aparência. A pacientes que perdiam as sobrancelhas, parte do nariz, das orelhas, que passavam a ter mãos deformadas, tudo criando ou perpetuando o estigma da doença, não era oferecida opção alguma de correção. Pior que isso: nem mesmo técnicas de prevenção de incapacidades, como o uso de calçados especiais ou adaptados, existiram na colônia - décadas a fio. Não que esta fosse uma deficiência privativa da unidade em questão; na verdade, tal situação era a mesma Brasil afora. Foi somente nos últimos 10-20 anos do século XX que as coisas começaram a mudar. Houve, da parte do estado, repetido esforço de formação, treinamento e reciclagem de profissionais diversos, com vistas à prevenção, diagnóstico precoce, tratamento adequado e, finalmente, reabilitação nessa importante doença. Se, antes, os doentes eram atendidos por pequena equipe de médicos não especialistas, um farmacêutico-bioquímico e atendentes de enfermagem improvisados - e isso por cerca de 40 anos - modernamente a assistência passou a ser multidisciplinar. Se a hanseníase já foi uma doença de internamento compulsório, como já se viu, felizmente passou a ter tratamento predominantemente ambulatorial. Reservam-se as internações para intercorrências, complicações e operações diversas. Tudo isso pode ser feito em hospitais gerais - mas há, nisto, apesar de benefícios de integração, alguns senões, que são relativos ao despreparo da maioria dos médicos e serviços não especializados no que tange à doença.

Também na própria ex-colônia têm sido desenvolvidas atividades de treinamento. Na hoje chamada Casa de Saúde Santa Fé, foi fundado, nos anos 1990, um centro de estudos. O serviço foi instalado, inicialmente, em três salas do antigo cinema, o qual se encontrava parcialmente desmantelado e teve esses três cômodos reconstruídos. Deu-se o nome ao centro de estudos de "Dr. Frank Duerksen", para homenagear um médico paraguaio-canadense, ex-membro da American Leprosy Mission e de outras instituições internacionais de ajuda aos hansenianos, e que teve papel muito relevante na formação de profissionais especializados no Brasil. Ele esteve no local em eventos científicos e para receber justa homenagem. Recentemente, o restante do antigo cinema foi restaurado e equipado, de tal sorte que o centro de estudos passou a contar com um local de boa qualidade para a realização de suas atividades.

Reeditando o conclave acontecido no início do funcionamento da colônia, em 1945, dois seminários sul-mineiros de hansenologia já foram realizados no centro de estudos, em 1993 e 1995.

O destino das ex-colônias descolou-se, em parte, da hanseníase. Há nelas, é certo, ainda apreciável contingente de ex-hansenianos, que ali permanecem, entre outras razões, porque já não têm mais para onde ir. A maioria desses residentes é de pessoas idosas, muitas delas com incapacidades parciais ou totais. Isto mudou o tipo de assistência. Se, antes, tratava-se todos os aspectos da hanseníase, hoje dá-se atenção mais asilar do que propriamente de saúde. Com o correr dos anos, as ex-colônias deixaram de ser exclusivas para a moléstia, abriram-se, tornaram-se hospitais gerais, porém, ainda, de certo modo, estão em busca de uma vocação. Não foi diferente com a Santa Fé. Determinações da Secretaria de Estado da Saúde, ao longo de vários anos, de modo nem sempre claro e retilíneo, com as marchas e contramarchas típicas do que é governamental, fizeram com que as ex-colônias passassem a receber, pouco a pouco, pacientes com outras doenças. A reconstrução parcial de seu hospital e, sobretudo, a instalação de um ambulatório, sob o modelo de atendimento à demanda, inicialmente com atenção básica e, mais recentemente, limitado a especialidades, fizeram com que a característica de instituição dirigida apenas à hanseníase desaparecesse. É certo que, principalmente por causa da permanência dos pacientes asilares ou residentes e, também, em virtude da tradição de décadas, conserva-se a ligação. Não menos certo, por outro lado, é que ela se atenuou muito, apesar do treinamento recebido por membros da equipe profissional, tanto em Minas Gerais quanto no Instituto Lauro de Souza Lima, em Bauru, centro de referência da OMS e da OPAS para a doença.

Recentemente instalou-se, na Santa Fé, um centro de reabilitação física geral, com características regionais, destinado ao atendimento à população de cerca de 50 cidades do sul de Minas Gerais. As ex-colônias da FHEMIG passaram a integrar um complexo de reabilitação e atenção ao idoso. Ademais, há planos concluídos para terminar a reforma do antigo nosocômio, transformando-o em hospital de reabilitação, igualmente para prestação de serviços à região. Reconhece-se, enfim, que ainda há muito a ser feito na reabilitação do hanseniano.

 

REFERÊNCIAS

1. Lana FCF. Políticas sanitárias em hanseníase: história social e a construção da cidadania [tese]. Ribeirão Preto (SP): Universidade de São Paulo; 1997.

2. Le Goff J. As doenças têm história. Lisboa: Terramar; 1985.

3. Souza-Araújo HC. História da legislação antileprosa da América do Sul no período colonial. In: Anais do I Congresso Panamericano e III Congresso Brasileiro da História da Medicina; 1958 Abr 12-20; Rio de Janeiro, Brasil. Rio de Janeiro: IBHM; 1958.

4. Orsini O. A lepra em Minas Gerais. Arq Min Leprol. 1941;l(1):43-8.

5. Monteiro YN. Hanseníase: história e poder no Estado de São Paulo. Hansen Int. 1987;12(1):1-7.

6. Nemes MIB. A hanseníase e as práticas sanitárias em São Paulo: 10 anos de subprograma de controle da hanseníase na Secretaria de Estado da Saúde (1977-1987) [dissertação]. São Paulo(SP): Universidade de São Paulo; 1989.

7. Gandra DS. A lepra: uma introdução ao estudo do fenômeno da estigmatização [tese]. Belo Horizonte(MG): Universidade Federal de Minas Gerais; 1970.

8. Goffman E. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4ª ed. Rio de Janeiro: Guanabara; 1988.

9. Merhy EE. A saúde pública como política: um estudo de formuladores de políticas. São Paulo: Hucitec; 1992.

10. Diniz O. Profilaxia da Lepra. Rio de Janeiro: Imprensa Oficial; 1960.

11. Inauguração da Colônia Santa Fé. Arq Min Leprol. 1942;2(3):49.

12. Sanatório Santa Fé. Histórico. Três Corações (MG): FHEMIG; 1993.

13. Diniz O. Nós também somos gente. Rio de Janeiro: Livraria São José; 1961.

14. Brasil. Departamento Nacional de Saúde Pública. Serviço Nacional de Lepra. Portaria n.o 5 de 25 de março de 1947. Dispõe sobre normas reguladoras da disciplina interna dos leprosários. Arq Min Leprol. 1947;7(3):131-4.

15. Silva CP. A posição do internado que transgride as normas regulamentares. Situação jurídica do guarda que repele a ofensa. Arq Min Leprol. 1941;1(1):315-20.

16. Um conclave científico de expressão nacional. Arq Min Leprol. 1945;5(3):139-42.

17. Almeida Neto J. Considerações sobre profissões permitidas e não permitidas aos hansenianos. Arq Min Leprol. 1942;(2)4:13-9.

18. Brasil. Departamento Nacional de Saúde Pública. Serviço Nacional de Lepra. Portaria n.o 86 de 18 de setembro de 1944. Dispõe sobre instruções sobre a experimentação terapêutica na lepra em estabelecimentos oficiais. Arq Min Leprol. 1945;5(1):75-8.

19. Souza-Araújo HC. Culturas de bacilos ácido-álcool resistentes isolados de hematófagos infectados em leprosos. Evidências de se tratar do bacilo de Hansen. Mem Inst Oswaldo Cruz. 1944;40(1):9-31.

20. Souza-Araújo HC, Mariano J, Castro GMO. Tentativas de transmissão da lepra ao homem, por meio de triatomídeos infectados em doentes lepromatosos. Mem Inst Oswaldo Cruz. 1944;41(3):495-505.

21. Souza-Araújo HC. O leproso pode ser eleitor?: carta enviada ao Presidente do Tribunal Superior Eleitoral em 20 de julho de 1945. Arq Min Leprol. 1945;5(3):144-6.

22. Minas Gerais. Lei n. 7.088, de 3 de outubro de 1977. Dispõe sobre a criação da FHEMIG. Diário Oficial do Estado de Minas Gerais, Belo Horizonte, out. 1977.