ISSN (on-line): 2238-3182
ISSN (Impressa): 0103-880X
CAPES/Qualis: B2
Editorial
Ennio Leão
Este número apresenta, propositadamente, vários artigos relacionados à nutrição. Alguns leitores hão de estranhar que, numa época de cada vez mais sofisticadas tecnologias, uma revista de divulgação, sobretudo clínica, aborde com mais relevância o aspecto nutricional.
Há, porém, várias razões para isto: vivemos, atualmente, um tempo em que a mídia, em todas as suas formas, inunda a população, a toda hora, com informações sobre alimentos, dietas e medicamentos. É importante, pois, que o médico tenha, ao lado do conhecimento da própria Medicina, conhecimentos sobre aspectos nutricionais para responder aos questionamentos que lhe são feitos.
Já dizia um antropólogo inglês que as recomendações nutricionais estão sempre mudando: "o que faz bem hoje pode fazer mal amanhã; o que faz mal hoje pode ser benéfico amanhã". E isto não está de todo errado, pois, à proporção que avançam os conhecimentos, muitas verdades viram inverdades, e vice-versa. Já disse alguém que "a Medicina é a ciência das verdades transitórias", o que poderia também se aplicar, até certo ponto, à Nutrologia.
Os conhecimentos sobre nutrição e doenças nutricionais têm evoluído muito nos últimos anos. Há algum tempo, doença nutricional era aquela que levava a um dos conhecidos quadros como beribéri, escorbuto, raquitismo ou outra carência específica de micronutrientes. Além destas, outras foram descritas, particularmente as que apresentavam deficiências de macronutrientes (proteínas e energia), hoje conhecidas como kwashiorkor e marasmo, assim como sua associação, o kwashiorkor-marasmático. Estas últimas macrodeficiências já foram conhecidas por várias denominações: desnutrição proteica, desnutrição energético-proteica, distrofia policarencial hidropigênica, distrofia do lactente e outras. As doenças por macrodeficiência comumente apresentam microdeficiências associadas.
É conveniente lembrar que essas antigas doenças carenciais causadas por micronutrientes, embora mais raras hoje em dia, ainda existem e muitas vezes a simples verificação da dieta pode levantar a suspeita, sem necessidade de exames sofisticados.
Reconhece-se a "fome oculta", que se manifesta quando o indivíduo tem alimentação quantitativamente suficiente, mas qualitativamente insuficiente. Um caso comum é o da adolescente feminina, aparentemente bem nutrida, mas portadora de anemia ferropriva, situação não rara, mesmo em classes abastadas. Boa anamnese - investigando também os hábitos alimentares do consulente - e exame físico mais acurado são esclarecedores de muitas doenças, inclusive as carenciais.
Recentemente toma posição a doença nutricional de excesso - o sobrepeso e a obesidade - com suas possíveis e sérias repercussões metabólicas e que vem sendo considerada verdadeiro problema de saúde pública mundial. É bom que se diga que a obesidade se deve, em parte, ao "progresso" que se tem procurado, à "felicidade" do ócio, ao far niente, à inatividade física, à cada vez maior pachorra (palavra cujo radical pach traz a ideia de gordura),
Convém lembrar que o excesso de peso, muitas vezes considerado saudável, pode ocultar deficiências de micronutrientes.
Surge o conceito de alimento funcional, isto é, o alimento cuja ingestão não se limitaria apenas à prevenção da carência, mas que em determinadas quantidades exerceria outra ou outras funções no organismo além da apenas nutricional. Decorrente disso e de novas pesquisas, muitas quantidades nutricionais recomendadas (quantidades diárias recomendadas ou RDA) que evitariam a doença carencial seriam insuficientes para promover essas outras funções. Veja-se, por exemplo, o caso do ácido fólico, cujas doses recomendadas se referiam à prevenção da anemia megaloblástica, mas que hoje se sabe da sua influência na prevenção dos defeitos do tubo neural na infância e também da hiper-homocisteinemia, possível precursora de distúrbios tromboembólicos.
A vitamina D, antes ligada apenas ao metabolismo fosfocálcico, com a descoberta de receptores da vitamina em muitos outros setores orgânicos, passa a ter funções em muitas outras atividades metabólicas, inclusive sua deficiência podendo ter participação na origem de várias outras doenças, exigindo doses superiores às atualmente recomendadas. Novas recomendações deverão ser publicadas ainda este ano pelos órgãos oficiais. Entretanto, é preciso cautela nessas mudanças, pois o risco do aumento de doses pode ter repercussões só muito tardiamente.
É conveniente lembrar que vários medicamentos podem levar à carência de algum nutriente. Como exemplos, lembra-se que o trimetoprim pode depletar o ácido fólico, assim como a isoniazida o faz com a vitamina B6.
Atualmente reconhecem-se, semelhantemente às doenças infecciosas, as doenças nutricionais de curta e de longa incubação, isto é, aquelas que surgem com relativamente pouco tempo de carência e as que se manifestam após longo tempo, até mesmo anos, de fornecimento insuficiente do nutriente.1 Vejam-se a vitamina D e o cálcio, por exemplo. Suas deficiências, em curto prazo, levariam à osteomalácia no adulto e, na criança, ao raquitismo e à osteomalácia. Em longo prazo contribuiriam para a instalação da osteoporose. Do mesmo modo, a curta carência de ácido fólico levaria à anemia megaloblástica e a longa, à hiperhomocisteinemia.
Estamos, há muito, cuidando principalmente do meio e do fim da viagem. É importante, sem dúvida, que isso seja feito. Mas, para que essa viagem terrestre seja mais bem aproveitada e apresente menos problemas no seu desenrolar, estudos vêm ressaltando que grande parte das doenças crônico-degenerativas do adulto tem suas origens na gestação, no feto e nos primeiros anos de vida.2,3 Com o título "Origens Desenvolvimentistas da Saúde e da Doença" e com a sigla inglesa DOHaD4, vários trabalhos vêm demonstrando a importância do fator nutricional ao lado de fatores ambientais e genéticos naquelas faixas etárias, para a manutenção de melhor padrão de saúde, principalmente se se levar em conta a previsão de que as crianças que nascem atualmente deverão ter sobrevida de cem anos.
Não poderia deixar de ser citada uma nova e futurosa área do conhecimento, fruto da interação entre Nutrologia e Genética, representada pelas nutrigenômica e nutrigenética. A primeira procura explicar como os componentes bioativos dos nutrientes agiriam no funcionamento dos genes e a segunda como esses componentes bioativos comunicam-se com o material genético e como essa variação genética poderia afetar a saúde e doenças potenciais do indivíduo.
Voltando ao que foi dito no princípio do editorial, em meio a tantas informações e publicações que surgem a todo momento, é preciso que o profissional selecione bem suas leituras e fique atento para não sofrer nova doença, que Souza5 descreve com clareza: a SADI ou "Síndrome de aquisição desenfreada de informações".
Ennio Leão
Editor associado
REFERÊNCIAS
1. Heaney RP. Nutrients, endpoints, and the problem of proof. J Nutr. 2008;138:1591-5.
2. Christian P, Stewart CP. Maternal micronutrient deiciency, fetal development, and the risk of chronic disease J Nutr. 2010;140:437-45.
3. Harding JE. The nutritional basis of the fetal origins of adult disease. Int J Epidemiol. 2001;30:15-23.
4. Silveira P, Portella AK, Goldani MZ, Barbieri MA. Developmental origins of health and disease (DOHaD). J Pediatr (Rio J). 2007;83(6):494-504.
5. Souza RR. Quando ignorar é preciso. Diversa UFMG. 2008 nov;7(16):32-3.
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