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CAPES/Qualis: B2
Perfil de adultos infectados pelo vírus da imunodeficiência humana (HIV) em ambulatório de referência em doenças sexualmente transmissíveis no norte de Minas Gerais
Profile of adults infected by the human immunodeficiency virus (HIV) in sexually transmissible diseases reference ambulatory, in the north of Minas Gerais
João Felício Rodrigues Neto1; Leonardo Santos Lima2; Lucas Ferreira Rocha2; Juliano Santos Lima2; Kênia Rabelo Santana2; Marise Fagundes Silveira3
1. Doutor, Professor Titular do Departamento de Clínica Médica da Universidade Estadual de Montes Claros - MG, Brasil
2. Estudante de Medicina da Universidade Estadual de Montes Claros - MG, Brasil
3. Professora de Bioestatística do Departamento de Ciências Exatas da Universidade Estadual de Montes Claros - MG, Brasil
Avenida: Cula Mangabeira, 1.562 Bairro: Santo Expedito
CEP: 39401-002 Montes Claros - MG, Brasil
Email: joao.felicio@unimontes.br
Recebido em: 19/05/2009
Aprovado em: 18/11/2009
Instituição: Universidade Estadual de Montes Claros - MG, Brasil
Resumo
INTRODUÇÃO: o perfil epidemiológico de pacientes infectados pelo vírus da imunodeficiência humana sofreu diferentes mudanças, notando-se aumento da transmissão pelo contato heterossexual e aumento da prevalência da infecção entre mulheres.
OBJETIVOS: analisar o perfil epidemiológico desse grupo de pacientes atendidos no norte de Minas.
MÉTODOS: a partir de estudo transversal descritivo foi analisado o perfil desses pacientes pela aplicação de questionário padronizado que abordava variáveis sociodemográficas e variáveis relacionadas à infecção pelo vírus.
RESULTADOS a relação homem/mulher foi de 1:1; a maioria dos pacientes se declarou heterossexual; pouco mais da metade dos pacientes não tinha união estável; prevaleceram as classes econômicas mais baixas e houve predomínio dos baixos graus de escolaridade.
CONCLUSÃO a epidemia de AIDS nessa região evolui com características semelhantes à epidemia no Brasil, de modo geral, apresentando aumento de incidência entre mulheres e heterossexuais.
Palavras-chave: Perfil de Saúde; HIV; Síndrome de Imunodeficiência Adquirida; Região Norte de Minas Gerais; Brasil.
INTRODUÇÃO
Desenvolvimentos consistentes foram vistos nos anos recentes em esforços globais dirigidos à epidemia da síndrome da imunodeficiência adquirida (AIDS), incluindo o acesso aumentado a programas eficazes de tratamento e de prevenção. Continua a crescer, entretanto, o número de pessoas que vivem com o vírus da imunodeficiência humana (HIV) e o número de mortes devido a essa infecção.1 No início, a AIDS acometia sobretudo os homossexuais e bissexuais masculinos, as pessoas que necessitavam de transfusão sanguínea, como os hemofílicos, e, subsequentemente, os usuários de drogas injetáveis.2 Com a evolução do surto, ocorreu significativa mudança no perfil de sua transmissão.3 Houve acentuado aumento do contágio pelo contato heterossexual, o que tem sido chamado de heterossexualização. Outro fenômeno que acompanhou a progressão temporal da AIDS foi o aumento da prevalência entre as mulheres. Para vários estudos a diminuição da razão entre os sexos em todas as regiões do país mostra a notória expansão da epidemia entre as mulheres.2-6 Dados recentes revelam que a razão de sexo continua caindo e hoje é de 1,5 caso em homens para um caso em mulher, sendo que no início era de mais de 15 casos em homens para um caso entre as mulheres.3O aumento da transmissão por contato heterossexual implica o crescimento substancial de casos em mulheres, o qual tem sido ressaltado como uma das mais importantes características do atual quadro da doença no Brasil.7 Alterou-se também o perfil econômico das pessoas acometidas. Estudos que tomaram o grau de escolaridade como indicador do nível socioeconômico dos indivíduos confirmam que a síndrome teve seu início em estratos sociais economicamente mais privilegiados, com progressiva disseminação para os estratos menos favorecidos.4,8 No Brasil, vários estudos vêm descrevendo esse processo de pauperização que a epidemia vem experimentando, tanto no nível populacional como no individual.6-9 O surto da AIDS constitui fenômeno global, dinâmico e instável, traduzindo-se por verdadeiro mosaico de subepidemias regionais. Resultante das profundas desigualdades da sociedade brasileira, a propagação da infecção pelo HIV e da AIDS revela múltiplas dimensões que vem sofrendo transformações significativas em seu perfil epidemiológico.7 Nesse panorama atual da doença, no qual predomina a transmissão heterossexual, a AIDS vai deixando de ser uma doença de segmentos populacionais sob particular risco e vai se disseminando, pari passu, à população geral, embora com dinâmicas distintas nos diferentes segmentos populacionais.2
Segundo Gabriel et al.10, o início da AIDS foi nas grandes metrópoles, com nítida tendência à interiorização. Esse fato torna relevante o conhecimento das características epidemiológicas dos indivíduos com HIV e AIDS de regiões do interior, pois tem importância prática na elaboração de estratégias de enfrentamento da expansão da síndrome, voltadas para suas peculiaridades locais, além de fornecer dados que possibilitem extrapolar os resultados para outras regiões com características sociodemográfica e culturalmente semelhantes. Montes Claros é uma cidade do interior de Minas Gerais, situada ao norte, que apresenta a sexta maior população do estado, com 352.384 habitantes, conforme último censo demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística11, e que se enquadra no contexto geral de expansão da doença. O objetivo do presente artigo é analisar o perfil sociodemográfico, econômico e cultural dos pacientes com HIV/AIDS tratados no Centro de Referência em DST/AIDS do norte de Minas Gerais, localizado em Montes Claros.
METODOLOGIA
Foi realizado um estudo transversal, pesquisandose o perfil epidemiológico dos pacientes que vivem com HIV/AIDS, atendidos no Centro de Referência em Tratamento de DST/AIDS do norte de Minas Gerais/Brasil, localizado na Policlínica do Hospital Universitário Clemente de Faria/HUCF – Policlínica Dr. Hermes de Paula, na cidade de Montes Claros, Minas Gerais. Esse é o principal serviço público em atendimento a soropositivo do norte de Minas e apresentava 397 cadastrados no sistema de agendamento, número que incluía indivíduos soropositivos e em definição diagnóstica, para o período de março a junho de 2006. Não houve seleção de pacientes, pois foram entrevistados apenas os agendados e que compareceram à consulta nesse período, com idade a partir de 18 anos e com diagnóstico firmado de infecção pelo vírus HIV, sendo oferecido o termo de consentimento aos que acordaram em participar da pesquisa. Com isso, foram incluídos no estudo 200 pacientes adultos acompanhados nesse centro de referência, infectados pelo vírus HIV e portadores da AIDS. Foram excluídos da amostra os que não preenchiam os critérios de inclusão (diagnóstico firmado e idade). Um questionário padronizado foi aplicado aos 200 pacientes por estudantes de Medicina previamente treinados, no referido período. As variáveis avaliadas foram: gênero, cor, opção sexual, religião, tipo de ocupação, estado conjugal, quantidade de pessoas que viviam com o entrevistado, renda, tipo de residência, nível socioeconômico (segundo o critério Brasil), grau de escolaridade e o modo de infecção pelo HIV. Os dados foram compilados e estruturados em um banco de dados utilizando-se o programa estatístico Statístical Pocckage for the Social Sciences (SPSS) for Windows, versão 15.0. Em seguida, foram submetidos à estatística descritiva. O projeto, conduzido de acordo com a Resolução 196/96 da Comissão Nacional de Saúde, foi submetido à aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade Estadual de Montes Claros, tendo sido aprovado em 06 maio de 2005, sob o processo número 193/05.
RESULTADOS
Dos 200 pacientes que participaram do estudo, 101 (50,5%) pertenciam ao sexo feminino, observando-se, portanto, equivalência quanto ao gênero entre os entrevistados. Em relação à distribuição etária, a maioria (65%) apresentava entre 30 e 49 anos de idade, tendo 34% entre 30 e 39 anos e 31% entre 40 e 49 anos. A média de idade dos entrevistados foi de 38,46 ± 10,28 anos. Apenas 1% dos pacientes tinha menos de 20 anos de idade e 3% eram idosos. No que se refere à cor, entre os entrevistados a maioria (65,5%) declarou-se parda/mulata. União estável foi informada por 47,5% dos pacientes, sendo que 24% correspondem aos indivíduos casados. No que se refere ao grau de escolaridade, a maioria (52,5%) se enquadrava na categoria "primeiro grau incompleto" e somente 5% se enquadravam nas categorias de "terceiro grau" (2,5% terceiro grau completo e 2,5% terceiro grau incompleto). Quanto à classe econômica, 70,5% dos pacientes pertenciam às classes "D" e "E", 23,5% à classe C e apenas 0,5% à classe "A" . A renda familiar mensal de 32,5% dos entrevistados era de até 300 reais e para 35% era de 301 a 600 reais; somente 1% declarou renda superior a 4.800 reais. Entre os pacientes, no momento da entrevista, 57% não trabalhavam: 19,1% por não conseguirem emprego; 15,5% estavam aposentados por motivo de doença; 11,3% afastados por estado de saúde; e 11,1% não referiram causa do desemprego. Quando se avaliaram o gênero e idade, observou-se não haver diferenças significativas quanto a esse mesmo grupo. Entre os que trabalhavam, a maioria atuava no ramo dos serviços. A média de pessoas que vivem com o entrevistado foi de 2,84 ± 2,09 pessoas. O tipo de residência de 75,5% era casa/sobrado e 63% tinham residência própria (Tabela 1)
No que se refere à opção sexual, a maioria dos pacientes se declarou heterossexual. A maior parte relatou ter adquirido a infecção pelo HIV em relações sexuais com parceiro do sexo oposto. Apenas 2% contraíram a infecção através do compartilhamento de seringas durante o uso de drogas injetáveis. A maioria (88%) tinha conhecimento sobre transmissão e prevenção da AIDS. O tempo médio entre o início da suspeita e a confirmação do diagnóstico foi de 3,94 ± 8,84 meses, com tempo máximo de 72 meses. Nesse intervalo de tempo, 60% dos pacientes não tiveram relações sexuais; 3,5% tiveram relações sexuais com uso de preservativos em algumas relações; e 24% tiveram relações sexuais sem usar preservativos em nenhuma delas. A terapia antirretroviral (TARV) estava sendo feita por 156 pacientes (78%). Em relação à autopercepção da saúde, 43,5% a consideravam boa e apenas 7%, ruim. No tocante aos cuidados tomados ou não quanto à saúde, chama a atenção o fato de que a maioria (60,5%) não tinha lazer ou hobby. Muitos (68%) tinham o catolicismo como religião e somente 6,5% não tinham religião (Tabela 2).
DISCUSSÃO
Depois de mais de 20 anos de evolução, a epidemia da AIDS continua sendo um grave problema de saúde pública, fazendo milhares de vítimas todos os anos e impondo desafios à comunidade científica mundial, como fenômeno global que representa. Conforme estimativa internacional, chega a 33 milhões o número de infectados pelo vírus HIV, no mundo.1 No Brasil, segundo dados do Ministério da Saúde3, avalia-se que pelo menos 630 mil brasileiros estejam infectados. Mais recentemente, a epidemiologia tem-se voltado para procurar entender os mecanismos mais efetivos de transmissão que ocorrem no mundo, visto que a pandemia global tem sido considerada uma composição de epidemias regionais ou locais, cada uma delas com características próprias.12
Esse surto é considerado um verdadeiro desafio para a sociedade moderna e alguns fatores podem estar relacionados, como a inexistência de vacina eficaz contra o vírus da imunodeficiência humana (HIV), a variedade de formas de transmissão desse agente, seu caráter altamente mutagênico e promoção de degradação imunológica, que contribuem para que a AIDS seja uma das mais importantes epidemias de toda história, em associação a problemas de ordem social e econômica.13
No início da década de 80, a AIDS encontrava-se restrita aos chamados "grupos de risco", compostos basicamente de homossexuais masculinos, usuários de drogas intravenosas e receptores de sangue e seus derivados ou componentes, sendo que deste último grupo os indivíduos mais afetados foram os hemofílicos, por necessitarem de múltiplas e frequentes transfusões.14 Um aspecto essencial é que há muito tempo a AIDS já não está restrita a "grupos de risco" específicos e isto é mais facilmente observado na população feminina. Além disso, todos os indivíduos sexualmente ativos que não praticam sexo seguro estão susceptíveis à infecção pelo HIV.14
Uma parcela cada vez mais expressiva das pacientes notificadas com AIDS tem parceria sexual única no momento do diagnóstico e um número de parceiros sexuais na vida que não difere muito do relatado pela maioria da população.15 Contudo, tem-se notado tendência à redução na incidência de indivíduos infectados no mundo. No ano de 2001, havia 3 milhões de novos casos, com queda para 2,7 milhões no ano de 2007.1 Em nenhum outro momento de sua ampliação a epidemia atingiu de forma tão abrangente o conjunto da malha municipal brasileira como agora, em que a principal via de transmissão se confunde com os hábitos sexuais da população geral, ou seja, dificultando a definição de regiões e segmentos específicos sob risco e reivindicando grande abrangência das intervenções preventivas.2
Hoje, a epidemia mundial da AIDS tem outro perfil e grandes variações têm levado à compreensão de mecanismos mais efetivos de transmissão. São destacados como os mais importantes para essa heterogeneidade fatores ligados ao hospedeiro e ao ambiente, taxas de mudanças de parceiros, tipo de práticas sexuais e compartilhamento de seringas entre os usuários de drogas injetáveis, status socioeconômico, grau de urbanização e migração.12 Sendo assim, a pandemia global tem sido considerada uma composição de epidemias regionais ou locais, cada uma delas com características próprias. Desde o início da década de 90 já se enfatizava aumento da importância da transmissão heterossexual, o que ia de encontro à visão de doença restrita a grupos minoritários da população.16 Publicações mais recentes confirmam essa tendência, em vista do crescimento do número de casos entre homens heterossexuais, junto ao marcante predomínio dessa forma de transmissão na população feminina.7,13,15
Nessa perspectiva, no nosso estudo 84% dos pacientes eram heterossexuais. Observa-se que, apesar de haver mais casos notificados em indivíduos do sexo masculino, o crescimento da epidemia é muito maior entre as mulheres do que entre os homens.15Ao analisar a distribuição dos casos de AIDS por sexo, nota-se que a chamada "feminização" da epidemia no Brasil não é mais mera conjetura17. É fato consumado.15 O decréscimo da razão masculino/feminino de casos e de óbitos e o fato da AIDS figurar entre as principais causas de mortalidade nas mulheres em idade fértil demonstram, inequivocamente, a magnitude com que a AIDS tem atingido nossa população feminina.15 Com o passar dos anos, houve constante queda da razão de sexo, que é a razão dos casos de AIDS entre os sexos masculino e feminino. No início da propagação, em 1985, essa razão foi de 26,5, já em 2005 caiu para 1,4.3 Diante disso, ser mulher implica especificidades que redundam em desvantagens que geram uma situação de especial susceptibilidade em relação ao homem.18 As mulheres são mais vulneráveis à infecção pelo HIV, tanto por razões biológicas - como superfície da mucosa vaginal exposta ao sêmen relativamente extensa e concentração significativamente maior de HIV no sêmen em relação ao líquido vaginal - quanto por razões culturais e sociais.19 Entretanto, nem todas as mulheres são vulneráveis, pois há o que se denomina vulnerabilidade diferencial, visto que a infecção afeta mulheres diferentes, de modo diverso, a depender de outros fatores estruturais. Por exemplo, mulheres pobres são mais vulneráveis que as que não o são, enquanto que mulheres pobres jovens são mais vulneráveis que as mais velhas pertencentes ao mesmo estrato; e mulheres pobres jovens sem alternativas econômicas viáveis além do trabalho com sexo são mais vulneráveis do que aquelas que dispõem de outras opções econômicas.17
De fato, no presente trabalho constatou-se que mais de 50% dos pacientes eram mulheres, sendo a maioria heterossexual. Em um trabalho que analisou a incidência de AIDS no Brasil, verifica-se a tendência atual de mais alto número de mulheres na categoria de transmissão heterossexual, o que se traduz por mais vulnerabilidade feminina em relação a menos capacidade de negociar sexo seguro e à reduzida possibilidade de acesso aos serviços de saúde reprodutiva.20 Esse aumento na proporção de mulheres acometidas pela doença foi verificado também nos resultados encontrados em outros estudos feitos em centros de referência em DST/AIDS de outras regiões do país.5,10,14
O panorama da infecção na mulher brasileira leva a uma triste realidade, a de que vem se infectando dentro do próprio lar, por intermédio de seus parceiros sexuais fixos que, por sua vez, infectaramse através de relações sexuais extraconjugais, bi ou heterossexuais ou da prática de compartilhamento de agulhas e seringas contaminadas durante o uso de droga intravenosa ilícita.14 Essa tendência para a feminização ressalta um outro aspecto importante: o aumento do número de casos entre crianças devido à infecção dos filhos dessas mulheres, durante o processo de gestação-parto-amamentação.14 No presente trabalho, apesar da variável transmissão vertical aos filhos não ter sido questionada às pacientes portadoras do HIV e que são mães, é provável que tal fato esteja ocorrendo, visto a alta percentagem de mulheres contaminadas e a alta prevalência de baixo nível econômico, que comumente está associado a baixo acesso aos serviços de saúde e acompanhamento médico inadequado. Tal questão é de suma importância neste estudo, quando o tempo médio entre o início da suspeita e a confirmação do diagnóstico foi de 4,1 meses, podendo-se considerar atraso diagnóstico como risco de exposição a indivíduos não infectados.
Apesar do aumento no número de casos infectados em indivíduos na terceira idade, percebeu-se em nosso estudo que apenas 3% dos pacientes infectados tinham mais de 60 anos, sendo, portanto, inferior aos dados do boletim epidemiológico.3 No Brasil, é alarmante a tendência atual de pauperização da epidemia, que pode ser constatada pelo aumento no número de casos em áreas periféricas dos centros urbanos e entre os segmentos menos privilegiados da população, justamente entre aqueles que dispõem de menos recursos e, portanto, de reduzidas possibilidades para o seu enfrentamento.18
Segundo Rodrigues Júnior et al.20, a epidemia de AIDS no Brasil mostra o aumento da proporção de casos entre os indivíduos analfabetos e com poucos anos de estudo. Essa evidência de que o número de casos aumentou nos estratos de pouca escolaridade remete à condição de pior cobertura dos sistemas de vigilância e de assistência médica entre os menos favorecidos economicamente, sob a hipótese de que a escolaridade é uma variável proxis importante de estratificação social.20 Para Parker e colaboradores, parece razoável considerar a existência de tendência ao acometimento de indivíduos com baixo grau de instrução, o que, por sua vez, seria indicativo da propagação da doença em direção aos segmentos menos beneficiados da sociedade.17 No Brasil, 47% dos episódios de AIDS são entre pessoas analfabetas ou que possuem apenas o primeiro grau; e 10% dos casos notificados possuem nível superior.12
A epidemia de AIDS vem apresentando taxas de incidência substancialmente mais elevadas nas regiões periféricas (e mais pobres) entre os trabalhadores menos qualificados e/ou pessoas com baixo grau de escolarização.21 No nosso estudo, a maioria dos entrevistados pertencia a classes econômicas mais baixas - C, D e E -, destacando-se que somente 5,5% pertenciam às classes mais altas - A e B -, o que comprova a tendência à pauperização, mostrada também na baixa renda mensal média da maioria dos entrevistados.
Também seguindo as tendências nacionais da epidemia, a maioria dos entrevistados apresentou baixo grau de escolaridade, com somente 5% enquadrados nas categorias de terceiro grau de estudo. Essa diminuição do grau de instrução dos pacientes com AIDS também tem sido largamente citada como indicador da pauperização da doença.15 Um trabalho enfatizou, entretanto, que tendências amplas, como a feminização, anteriormente citada, e a pauperização são inegáveis, mas a utilização, por vezes, demasiado simplista dessas categorias pode mascarar a real complexidade social dos processos de vulnerabilização.17 No princípio, eram acometidos, sobretudo, os indivíduos com alto grau de escolaridade, porém, com a evolução da infecção, houve uma mudança nesse padrão, sendo que atualmente são mais vulneráveis os indivíduos com baixo nível de escolaridade, o que é também a realidade dos pacientes do serviço estudado.
Barbosa et al.12 salientam que pessoas pertencentes à categoria de exposição "homossexual masculina" possuem mais alto nível de escolarização do que aquelas incluídas na categoria "heterossexual" ou de "usuários de drogas injetáveis". Inicialmente a categoria de exposição mais comum era a homossexual e esses indivíduos apresentavam, em média, escolaridade muito mais alta do que a população em geral.14 Observou-se, no presente estudo, que os homossexuais e bissexuais correspondem a somente 16% dos pacientes com HIV/AIDS. Observa-se, portanto, que no surgimento da doença os indivíduos acometidos pertenciam principalmente a estratos sociais privilegiados, porém, com sua evolução temporal, os mais pobres passaram a ser os mais vulneráveis à infecção pelo HIV.
Conforme estudo que dividiu as categorias de ocupação em manuais versus não-manuais, sendo as primeiras relacionadas a níveis educacionais mais baixos e menores rendimentos médios, a epidemia vem afetando, progressivamente, indivíduos em posições desvantajosas em relação ao mercado de trabalho.9 Na presente pesquisa verificou-se que grande parte dos pacientes que trabalhavam se enquadrava na categoria dos serviços que tradicionalmente abrigam pessoas com baixo nível educacional e que têm baixos rendimentos mensais. Evidenciou-se, ainda, que a maioria dos respondentes encontrava-se desempregada no momento da entrevista, sendo o principal motivo atribuído à dificuldade de conseguir emprego, pelo diagnóstico ou pelo estado de saúde.
Estudo sobre a mudança do perfil da epidemia da AIDS no estado de São Paulo, responsável por cerca de 50% do total de notificações do país, chama a atenção para o fato de que o uso de drogas injetáveis, juntamente com a categoria heterossexual, são as situações de risco mais prevalentes entre os homens.15 Para Rodrigues-Júnior et al., em investigação sobre a descrição espaço-temporal da epidemia de AIDS no Brasil, no estado de Minas Gerais mais de 15% dos portadores do vírus da AIDS são usuários de drogas injetáveis.20 No nosso trabalho chama a atenção o fato de que apenas 2% dos pacientes relataram ter se infectado com o uso de drogas injetáveis. Isso pode estar relacionado ao fato de que o Centro de Referência em DST/AIDS do norte de Minas Gerais, onde foi feito este estudo, recebe pacientes de todo o norte mineiro e do sul da Bahia, regiões com elevado número de cidades de pequeno porte, onde predomina a transmissão do HIV pela via heterossexual.6
No que diz respeito ao modo de infecção pelo HIV, houve predomínio da transmissão heterossexual. A prática homossexual foi responsável por 14% das infecções, versus 68,5% dos que se contaminaram por prática heterossexual, ao contrário do que acontecia no início da epidemia, em que predominavam os casos entre os homossexuais. Tal dado, apesar de questionável, reflete a conscientização e a adesão às práticas preventivas adotadas por esses grupos, que sofreram o forte estigma de ter sido a AIDS, doença transmissível e letal, a eles associada.14 Parker et al. apuraram que a propagação da doença nesse segmento populacional, da mesma forma que em outros, continua em seu curso, tendo sido simplesmente rearticulada, de modo que afeta, de preferência, os mais empobrecidos entre os homens que fazem sexo com homens ou, neste grupo, aqueles que estão excluídos do mercado de trabalho, em vez de todos os homens que fazem sexo com homens.17 A alteração quanto à participação proporcional das diversas categorias de exposição reflete, portanto, antes uma extensão da síndrome a outros segmentos da população além dos homens que fazem sexo com homens, do que um decréscimo real da magnitude da AIDS entre estes.21
O modo de infecção menos frequente foi por transfusão sanguínea. Para autores, esse dado permite a compreensão de que a testagem obrigatória em bancos de sangue, em vigor desde 1987 no Brasil, vem contribuindo para diminuir o impacto da disseminação da AIDS.14
A maioria dos entrevistados se enquadrava nas categorias de 30 a 39 e de 40 a 49 anos de idade, sendo que a idade média foi de 38 anos. Martins et al. acreditam que tais achados refletem-se diretamente em fatores econômicos, afetivos e sociais, uma vez que constataram doença de alta morbimortalidade em adultos jovens, ditos em idade de mais produtividade econômica e sexual.14
Os mesmos autores questionaram a baixa percentagem de pacientes que se declararam parda.14 No nosso estudo, a maioria se declarou de cor pardomulata, com percentagens parecidas de brancos e negros, o que está de acordo com o perfil de miscigenação racial do povo brasileiro.14
No que diz respeito ao estado civil, houve predomínio dos solteiros. Esse fato era, de certa forma, esperado, pois nessa categoria se pressupõe mais diversidade de parceiros sexuais.14 Já os viúvos representaram 10% dos entrevistados. É alto esse percentual quando se analisa o fato de que na amostra há predomínio de adultos jovens.14
A maioria dos pacientes entrevistados demonstrou conhecer as formas de transmissão e prevenção da AIDS, o que leva a questionar a linha que vem sido seguida nas campanhas que visam a esclarecer as pessoas sobre tais aspectos da doença, como medida eficaz para se proteger da infecção pelo HIV. As estratégias de prevenção têm-se baseado, ainda, de forma predominante, na abordagem que focaliza o indivíduo e sua capacidade de perceber o risco de infectar-se e, por conseguinte, de prevenir-se. Semelhante percepção resulta das informações que ele/ela possui a respeito dos riscos de transmissão.12 Essa abordagem seria limitada no que diz respeito às noções individuais de se estar ou não diante de uma real exposição à infecção pelo HIV, pois não pondera a capacidade de o indivíduo associar diferentes graus de risco aos seus possíveis atos, fundando-se na concepção de que a saúde é a coisa mais importante para cada um e, portanto, a motivação primeira para estruturar o comportamento.12 Além disso, não considera, ainda, que esse risco é construído a partir da interação entre os parceiros, na qual a proteção é negociada, implícita ou explicitamente, de forma diferente e de acordo com o gênero, a idade, o nível socioeconômico e o grau de intimidade da relação.12
CONCLUSÃO
Os fenômenos atuais da epidemia no Brasil - heterossexualização, feminização e pauperização - confirmaram-se no presente estudo, indicando que no norte de Minas Gerais a propagação evolui com características semelhantes às do restante do país. Porém, com a particularidade de que a infecção pelo compartilhamento de seringas entre usuários de drogas intravenosas parece assumir menos importância epidemiológica.
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