RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 31 e-31302 DOI: https://dx.doi.org/10.5935/2238-3182.20210018

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Educação Médica

A construção de competências nas etapas iniciais da formação médica: Um relato de experiência

The building of skills in the initial stages of medical training: An experience report

Roberto Pires Porto1; Ingrid dos Santos Ferreira2; Shana Hastenpflug Wottrich3; Sandro Alex Evaldt4

1. Discente do curso de Medicina - Universidade Federal do Pampa - Unipampa, Faculdade de Medicina. Uruguaiana, RS - Brasil
2. Discente do curso de Medicina - Universidade Federal do Pampa - Unipampa, Faculdade de Medicina. Uruguaiana, RS - Brasil
3. Docente do curso de Medicina - Universidade Federal do Pampa - Unipampa, Faculdade de Medicina. Uruguaiana, RS - Brasil
4. Docente do curso de Medicina - Universidade Federal do Pampa - Unipampa, Faculdade de Medicina. Uruguaiana, RS - Brasil

Endereço para correspondência

Roberto Pires Porto
E-mail: robertoporto.aluno@unipampa.edu.br

Recebido em: 26/10/2020
Aprovado em: 15/02/2021

Instituição: Universidade Federal do Pampa - Unipampa, Faculdade de Medicina. Uruguaiana, RS - Brasil

Resumo

INTRODUÇÃO: A graduação em Medicina tem passado por diversas mudanças curriculares, com transferência gradativa do ensino tradicional para metodologias ativas, as quais preconizam a aprendizagem significativa e a participação ativa dos discentes. Orientado pelas Diretrizes Curriculares Nacionais vigentes, o curso de graduação em Medicina da Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA), contempla essa nova perspectiva formativa. Apresenta como foco as construções de competências médicas, desenvolvidas desde etapas iniciais do curso, com ênfase no vínculo entre teoria e prática.
MÉTODO: O presente estudo aborda um relato de experiência e tem por objetivo refletir acerca da implementação da disciplina "Introdução à Psicologia e Habilidades Médicas" (IPHM).
RESULTADOS: Por meio das atividades do referido componente curricular, é ofertado desde o primeiro semestre o contato dos discentes com a entrevista médica, com ênfase na construção da anamnese e na compreensão dos aspectos relacionais e comunicacionais englobados. Ainda que outras instituições desenvolvam a construção de aspectos relacionados à anamnese médica em fases iniciais, o curso de Medicina da Unipampa apresenta inovações na forma como conduz esse trabalho, com emprego de metodologias ativas associadas às situações clínicas simuladas (Role-play), com foco tanto na redação, como nas relações interpessoais e qualidade da comunicação na relação médico-paciente.
CONCLUSÕES: Por meio da abordagem dos desafios e potencialidades do processo de implementação do referido componente curricular, cumpre reconhecer a adequação e a pertinência da experiência, no sentido de estabelecer um espaço de construção de competências profissionais para a entrevista médica, em momento inicial da formação acadêmica.

Palavras-chave: Educação Médica; Métodos de Estudo de Matéria Médica; Anamnese; Relações Médico-Paciente; Comunicação em Saúde; Competência Profissional; Inovação. Currículo.

 

INTRODUÇÃO

Hodiernamente, a educação médica tradicional, direcionada pelo modelo flexneriano com currículos hospitalocêntricos, focados em disciplinas, na doença e cura, tem transferido espaço às novas estruturas curriculares formacionais. 1,2,3,4 Percorrem-se novos caminhos para o processo formativo, com maior autonomia ofertada aos discentes.5 Esta nova perspectiva formativa vem ao encontro das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs), as quais preconizam que o graduado em Medicina deverá ter: "formação geral, humanista, crítica, reflexiva e ética".6

Os cursos de graduação em Medicina têm experimentado, gradativamente, propiciar espaço para novas metodologias de ensino-aprendizagem, em busca constante da participação ativa e centrada no discente.2,5,7 Em prol de imergir os estudantes na nova perspectiva formativa, busca-se conceder espaço para a produção do pensamento crítico e reflexivo, o qual culmine na compreensão do processo saúde-doença em níveis individual e coletivo, bem como dos determinantes sociais, culturais, comportamentais, psicológicos, ecológicos, éticos e legais.6

Tendo em vista contemplar a nova perspectiva construtiva, o curso de graduação em Medicina da Universidade Federal do Pampa (Unipampa) apresenta mudanças em sua estrutura curricular, com inovações no campo organizacional e metodológico. A partir destas modificações, almeja-se a construção de competências médicas, por intermédio das aprendizagens ativa e significativa, as quais ultrapassam o domínio dos componentes curriculares e enaltecem a relação teórico-prática.1,4,8 A construção inicial das competências almejadas faz-se com a implementação da disciplina "Introdução à Psicologia e Habilidades Médicas" (IPHM) no primeiro semestre do curso.

No intuito de contextualizar o cenário sobre o qual se debruça a proposta deste relato de experiência, cabe salientar que, no estado do Rio Grande do Sul (estado no qual se localiza a instituição em foco neste artigo), há dezenove escolas médicas em funcionamento, conforme dados coletados das plataformas digitais das Instituições de Ensino Superior (IES). A análise dos PPCs permitiu o conhecimento das suas estruturas curriculares, adequações e inovações propostas pelas IES. Verificou-se que, dentre as instituições presentes no estado, cinco mantém currículos organizados de forma linear-disciplinar, ao passo que quatorze apresentam reestruturação curricular, como preconizado pelas DCNs, por meio de currículos modulares, com o uso de metodologias ativas ou híbridos (com metodologia tradicional e ativa). Ainda, entre todas IES, somente a Universidade Federal do Pampa Unipampa e outras três fomentam o desenvolvimento no primeiro semestre dos aspectos relacionados ao ensino-aprendizagem da entrevista clínica e anamnese.

Haja vista a existência de outras IES que desenvolvem a construção de aspectos relacionados à entrevista clínica em fases iniciais, a Unipampa destaca-se pela maneira inovadora como conduz este trabalho. O emprego de metodologias ativas associadas às situações clínicas simuladas, com o acompanhamento síncrono de docentes das áreas da clínica médica e da psicologia, perfaz o modo como se constroem competências na formação médica, com intuito de preparar os discentes para a prática da entrevista médica. 2,5 O aprendizado pauta-se, além da redação da anamnese médica, no estudo das relações interpessoais, bem como na qualidade da comunicação na relação médico-paciente, ambas aplicadas e desenvolvidas de forma teórico-prática, instrumentalizando a construção de competências médicas.1,2,3,4,9

Desta forma, o presente estudo aborda um relato de experiência, apresenta como foco a disciplina de IPHM e tem por objetivo refletir acerca da implementação desta, através da qual o discente experimenta seu primeiro contato com a entrevista médica, tendo por ênfase a construção da anamnese e compreensão dos aspectos psicológicos e contextuais englobados.

 

MÉTODO

O presente estudo aborda um relato de experiência, embasado na construção discursiva e reflexiva de dois docentes e dois discentes que participaram do processo de implementação da disciplina de Introdução à Psicologia e Habilidades Médicas, no curso de medicina da Universidade Federal do Pampa, Uruguaiana - RS. Trata-se de um relato descritivo e reflexivo, com base na experiência da equipe de trabalho que concebeu e operacionalizou as atividades descritas.

 

A CONSTRUÇÃO DE COMPETÊNCIAS NAS ETAPAS INICIAIS

O termo "Competência Profissional" pode ser definido como a virtude de mobilizar, articular e aplicar conhecimentos, habilidades e valores necessários para o desempenho eficiente de atividades requeridas.8,10,11 Este modelo formacional, integrativo e multidimensional, abarca a realização de tarefas e atributos pelo discente, considerando seu contexto inserido.10,12 À luz da formação profissional em saúde, a competência demonstra-se na capacidade de "um ser humano cuidar do outro", acionando conhecimentos, habilidades e valores, em prol da prevenção e promoção da saúde.10

Sabe-se que, atualmente, a maioria dos cursos de Medicina vigentes em nosso país ainda se encontram embasados no modelo de educação médica flexneriano.7 Esse modelo caracteriza-se por um conjunto de disciplinas, distribuídas linearmente, de maneira isolada, sem interações entre si, e ministradas por corpo docente centrado em suas áreas atuantes, propiciando assim a fragmentação do aprendizado e a formação de profissionais tecnicamente habilidosos, com amplo conhecimento fisiopatológico, porém, sem qualificação proporcionada pela formação acadêmica para lidar com a realidade social a qual está inserido.4,7

De forma a ultrapassar o referido modelo, as diretrizes curriculares vigentes objetivam instigar os estudantes como agentes ativos no processo de ensino-aprendizagem.6 Atualmente, no Brasil, observa-se crescente movimento na inserção de modelos curriculares integrados, pautados em metodologias ativas e na diminuição de currículos estilo linear-disciplinar.7 A mudança proposta pelos projetos político-pedagógicos empregam metodologias ativas e fundamentam-se nos princípios da aprendizagem significativa e ativa, dentre os quais destacam-se a resolução de problemas, o desenvolvimento de conhecimentos transversais e a complexidade dos conhecimentos, com atividades multidisciplinares.5,7

Segundo Ausubel, a aprendizagem desvenda-se como significativa quando um novo conceito ou ideia adquire significado para o aprendiz, ancorado em aspectos prévios relevantes. Assim, há interação entre o conhecimento novo e o já existente, evidenciando um processo dinâmico de ensino-aprendizagem.13 Neste novo modelo, o discente participa com suas experiências, reais ou simuladas, em busca de condições para solucionar desafios, transformando-o num protagonista no que se refere à construção do conhecimento.7,13

Seguindo a perspectiva de ensino-aprendizagem preconizada pelas DCNs, o curso de Medicina da Unipampa constitui-se por estruturas curriculares flexíveis, as quais sofreram alterações significativas desde sua criação, em 2016, com um novo Projeto Pedagógico finalizado e institucionalizado em 2019. Haja vista o desafiador cenário formativo de profissionais capacitados para cuidar integralmente da saúde dos indivíduos e considerando o contexto inserido, são apontados conhecimentos, competências, habilidades e atitudes a serem desenvolvidos ao longo do percurso de construção profissional. Com base nas competências esperadas definem-se os conteúdos abordados na matriz curricular, com avanço gradual nos níveis de complexidade.10

O embasamento deste novo modelo curricular é descrito por Araújo, destacando-se como principais aspectos: (a) alcançar objetivos baseado em competências adquiridas em situações concretas de trabalho; (b) enfoque em dimensões que compreendam integralidade da saúde; (c) competências definidas com inclusão de valores, conhecimentos e habilidades; (d) mudança estrutural na relação dialógica docente-discente, tornando-a socialmente igualitária, com participação ativa dos discentes no processo de ensino-aprendizagem; (e) disponibilização de espaços multifacetados para o aprendizado; (f) conhecimento construído com enfoque interdisciplinar.10,14 Desta forma, em prol de construir competências nas etapas iniciais da graduação médica, tem-se, como passo inicial, a reformulação ou organização curricular. O uso do termo não deve estar restrito à sua aplicação textual, mas implica na necessidade de mudanças estruturais, funcionais e significativas no processo de ensino-aprendizagem.10

A matriz curricular redesenhada distribui-se semestralmente (Figura 1) com foco na construção interdisciplinar do conhecimento, propiciando aos discentes campo para desenvolver aspectos cognitivos, habilidades e atitudes oportunas para o perfil de profissional médico requerido atualmente.6 A estrutura curricular baseia-se em quatro grandes Eixos Temáticos, com suas respectivas áreas de saber, previstos para serem cursados de forma complementar entre si. A saber: Eixo Temático 1 - Formação Ética, Humana e Social nas Ciências da Saúde; Eixo Temático 2 - Integração Universidade, Sistema de Saúde e Comunidade; Eixo Temático 3 - Processos Biológicos e Estudos Formativos da Prática Médica; Eixo Temático 4 - Pilares Estruturais para o Serviço Médico. Os Eixos conversam-se harmonicamente e de maneira gradativa entre si; apresentam, como ponto de convergência, a formação acadêmica ética, reflexiva, propositiva e emancipatória, comprometida com o desenvolvimento regional e sustentável, permeada pelos princípios do SUS.

 


Figura 1. Estrutura curricular e Eixos Temáticos da Graduação Médica na Unipampa - 1º ao 3º semestre.

 

A disciplina de "Introdução à Psicologia e Habilidades Médicas" (IPHM), foco deste estudo, evidencia-se como base no processo construtivo de competências e habilidades médicas. Nela, o discente experimenta seu primeiro contato com técnicas e modalidades de entrevista, aspectos da relação médico-paciente, definição e conceito de sinais e sintomas. Objetiva-se, assim, desenvolver a postura profissional ética e humana, por meio da escuta no contexto clínico, com ênfase na construção da anamnese e na compreensão de seus aspectos psicológicos e contextuais. 2,3,4,15

A IPHM vincula-se aos Eixos Temáticos 1 e 3. O Eixo Temático 1 apresenta como foco a construção de práticas profissionais balizadas pela perspectiva humanista, crítica, reflexiva e ética, garantindo oportunidades de ensino-aprendizagem, desde o início do curso, e apresenta as Ciências Humanas e Sociais como eixo transversal na formação profissional. As competências, construídas ao longo do componente curricular, norteiam-se pelo pressuposto do futuro profissional considerar as dimensões da diversidade biológica, étnico-racial, de gênero, subjetiva, socioeconômica, política, ambiental, cultural, ética e demais aspectos que compõem o espectro da diversidade humana. Quanto ao Eixo Temático 3, este concerne a busca por compreender o processo saúde-doença pela perspectiva biológica, promovendo a integração das dimensões biológica, psicológica, ambiental, cultural, socioeconômica e educacional.

Por meio da disciplina IPHM almeja-se propor a construção de uma postura profissional reflexiva, alicerçada à perspectiva da integralidade e matizada sob a dimensão psicológica, ética e humanística da relação cuidador-cuidado. Tal disciplina é regida por docentes formados em diferentes áreas, sendo uma psicóloga e um médico, que atuam conjuntamente, em sala de aula. Distribui-se em trinta horas teóricas e trinta horas práticas, por meio de estratégias de ensino-aprendizagem que envolvem metodologias ativas. Os elementos teóricos abordados representam fundamentos para formação do futuro profissional médico, em consonância com a oferta de espaço para o desenvolvimento prático das habilidades. A saber, propicia-se: (a) conhecimento de técnicas para a realização de uma entrevista; (b) identificação dos aspectos da relação médico-paciente que envolvam a comunicação verbal e não-verbal; (c) compreensão conceitual e significado clínico dos diferentes sinais e sintomas; (d) identificação da importância e utilidade dos diferentes tópicos composicionais; (e) valorização da escuta qualificada; (f) reconhecimento dos aspectos psicológicos e contextuais envolvidos; (g) redação completa e adequada da anamnese médica.

O termo anamnese significa trazer à mente - do paciente - todos acontecimentos correlacionados com sua doença (aná = trazer de novo; mnesis = memória). Contempla a parte mais valiosa da prática médica, pois possibilita desenvolver e fortalecer a relação médico-paciente, pilar para o trabalho qualificado do profissional médico.16 A qualidade da relação estabelecida determinará o grau de confiança que o paciente depositará em seu médico, a qualidade das informações fornecidas, bem como, a colaboração oferecida em aceitar e seguir ao plano terapêutico firmado.17 Dessa forma, esta evidencia-se como ferramenta básica e indispensável no exercício da Medicina.18 Ademais, a IPHM conta com ferramentas congruentes e pertinentes ao seu desenvolvimento: Role-play e Monitoria Acadêmica.

Ferramentas facilitadoras na construção das competências médicas

Role-play

O role-play configura-se como uma técnica de simulação, por meio da qual os discentes são convidados a atuar em determinado contexto, interpretando papéis específicos.19,20 Assim como em outras estratégias educacionais baseadas em simulação, a Teoria do Aprendizado Experimental (TAE) fundamenta a base teórica para o role-play. Como resultado da aplicação desta técnica tem-se o conhecimento como resultado da compreensão e transformação da experiência, por meio da aprendizagem significativa, ativa e a percepção do realismo.3,19,20,21

A principal meta da aplicação desta técnica é preparar os discentes para a prática da entrevista médica.3,22 Assim, compreende o campo prático do componente curricular de IPHM e visa o ensino das Habilidades Comunicacionais e Relacionais (HbCR). Na simulação, os discentes experimentam a representação de um evento real, com o propósito de praticar, aprender, avaliar, testar e entender sistemas ou ações humanas.3,5,15,19,23 O role-play foi implementado em 2019 na disciplina de IPHM, é realizado ao longo de seis encontros presenciais e desenvolvido por meio de três papéis específicos (Figura 2): o "Paciente Simulado", interpretado por discentes de semestres adiantados; o "Médico Simulado" e o "Observador", realizados pelos discentes cursistas na disciplina de IPHM. Ambas as formas de participação dos discentes vinculados à IPHM são importantes e valiosas, sendo ofertada a interpretação mínima dos papéis de "Médico Simulado" e "Observador" ao menos duas vezes a cada discente.19

 


Figura 2. Papeis desempenhados na simulação

 

O papel de "Paciente Simulado" é desempenhado por acadêmicos em níveis avançados da graduação, devido ao seu maior grau de conhecimento e possíveis experiências práticas. Ao fim de cada anamnese o "Paciente Simulado" oferta debriefing com o "Médico Simulado", a fim de refletir sobre percepções e postura acerca da simulação médica. O "Observador" não atua como médico, mas tem a oportunidade de contemplar a interação desde o ponto de vista de um "terceiro". A este "observador" cabe a atribuição de avaliar, cuidadosamente, os aspectos comunicacionais do contexto da entrevista, a fim de oferecer debriefing sobre eles ao estudante que atua como "médico". O acadêmico que atua como "Médico Simulado" tem a oportunidade de treinar suas habilidades, receber parecer e refletir sobre seu desempenho, performance e postura, haja vista o debriefing oferecido pelo "Paciente Simulado" e pelo "Observador".15,19,24

Monitoria acadêmica

A monitoria acadêmica encontra-se vinculada ao processo formativo dos graduandos. Define-se como um serviço de apoio pedagógico, ofertada aos discentes interessados em aperfeiçoar seus conhecimentos, bem como dirimir dificuldades encontradas na disciplina trabalhada previamente em sala de aula.25 Esta, tem respaldo legal, definido pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) Nº 9.394, de 1996, possibilitando aos estudantes do ensino superior desenvolver tarefas de ensino e pesquisa, exercendo a função de monitoria, de acordo com seu rendimento e plano de estudos.26

O projeto de monitoria teve como base a disciplina IPHM e apresentou propósitos compartilhados à esta, tais como a qualificação dos discentes na identificação de manifestações verbais e não verbais, a construção da relação médico-paciente, a apresentação das técnicas e modalidades de entrevista e o desenvolvimento dos conhecimentos necessários para construção de uma anamnese completa. As atividades de monitoria foram desenvolvidas por acadêmico-monitor, que cursou previamente a disciplina supracitada, além de ser aprovado em processo seletivo interno, em consonância com as diretrizes desta Instituição de Ensino Superior e a coordenação do curso de Medicina.

As práticas de monitoria foram efetuadas ao longo de doze horas, divididas em quatro encontros presenciais realizados no campus sede do curso de Medicina. As atividades dividiam-se em dois momentos: (1) momento em grande grupo e (2) momento individualizado. Inicialmente, no Momento 1, as atividades eram desenvolvidas em grande grupo, com temas norteadores de cada encontro, vide Figura 3, envolvendo aspectos previstos na ementa curricular, demanda discente e carências apontadas pelos docentes. No desenlace de cada atividade ofertava-se aos discentes interessados o Momento 2, a correção e discussão individual de suas anamneses, realizadas previamente em sala de aula. A realização dos encontros não manteve padronização diária, averiguando a disponibilidade organizacional dos discentes e do monitor, acordado com antecedência de sete dias e divulgado via mídias digitais.

 


Figura 3. Temas norteadores das atividades de monitoria.

 

DESAFIOS NA IMPLANTAÇÃO DA DISCIPLINA DE IPHM

A organização curricular alicerçada na construção de competências deve considerar, simultaneamente e de forma sistêmica, as dimensões humana, social e biológica, questão que se concretiza, no contexto descrito, por meio dos diálogos estabelecidos em sala de aula entre as perspectivas de diferentes áreas do saber, por meio da presença permanente de ambos os docentes em sala de aula. A presença destes docentes, de forma concomitante, no ambiente de aprendizado evidencia-se como um importante desafio, haja vista as transformações na dinâmica das atividades, bem como o partilhar e repensar o contexto de ensino-aprendizagem, apresentam-se como aspectos dependentes das características individuais do docente.

A profissão médica exige associar habilidades técnicas inseridas em contextos de percepções afetivo-emocionais.22 A compreensão dos aspectos relacionados às comunicações não verbal e verbal veicula-se no respeito à pessoa, constituindo aspectos fundamentalmente constitutivos do futuro profissional. Ao longo da construção gradativa do perfil almejado ofertam-se situações experienciais ao discente, atreladas à integralidade do aprendizado.3,10 A oferta deste ambiente experiencial, com qualidade, depende de um exaustivo planejamento. Neste cenário, salientam-se como grandes desafios: a construção de um banco de casos clínicos e o recrutamento e preparação dos atores. Os casos clínicos utilizados pelos "Pacientes Simulados" no decorrer do role-play, necessitam de uma exaustiva caracterização integral do "Paciente", incluindo além dos aspectos biológicos, também seu contexto psicossocial e cultural, em prol de ofertar ao "Paciente Simulado" uma imersão completa para atuar em seu personagem.

A participação dos estudantes para atuarem como "Pacientes Simulados" se constitui como um "nó crítico" no processo de operacionalização das atividades propostas pelo componente curricular, uma vez que depende da disponibilidade de estudantes de semestres mais avançados do curso para a participação.3 Considerando as demandas de estudo e de dedicação ao curso, a participação voluntária desses estudantes nas atividades tem sido estimulada por meio da inclusão deles em um projeto de ensino registrado institucionalmente, de forma que, ao serem incluídos como atores, acabam por ter validados e reconhecidos, em termos acadêmicos, a participação e o tempo disponibilizado para as atividades de preparação e de simulação propriamente ditas.

 

CONCLUSÃO

Atualmente, a graduação médica denota um momento transicional em sua estrutura formativa, com organização curricular conciliada a novas metodologias desenvolvidas. Afasta-se da visão estritamente tecnocientífica, abarcada pelo modelo flexneriano, e investe na formação de profissionais éticos, críticos, reflexivos e humanistas, os quais possam compreender o processo saúde-doença além da esfera biológica, abarcando o contexto inserido, a níveis individual e coletivo. A nova proposta formativa contempla o estabelecido pelas DCNs vigentes, utilizando a aprendizagem significativa e ativa como pilar fundante no alcance do perfil almejado.6

A instituição de inovadores cenários formativos possibilita a reorientação do olhar aos aspectos do adoecimento, com maior visibilidade aos componentes psicológicos, sociais e culturais do paciente, estimulando a percepção ampla do processo saúde-doença. Esta construção infere experimentar, cada vez mais cedo, o desenvolvimento de competências pertinentes ao exercício da profissão médica. Em prol do alcance desta meta, a Unipampa oferta, na etapa inicial da formação, o componente curricular integrador IPHM, com articulação teórico-prática, por meio de situações simuladas e suplementação extraclasse. Cumpre reconhecer o caráter inovador da proposta desta disciplina, com ênfase na aplicabilidade da relação teórico-prático em etapas iniciais da formação, com propósito de graduar futuros profissionais competentes, com ênfase para a qualificação concernente aos aspectos atitudinais/comportamentais. Instituir novos cenários de prática na formação possibilita reorientar o olhar sobre aspectos subjetivos, inerentes ao processo saúde-doença, com oferta de maior visibilidade às questões socioculturais e psicológicas.9

Averiguar a concretização destas mudanças e a repercussão de inovações formativas aplicadas ao âmbito teórico e prático sobre o perfil do profissional médico somente tornar-se-á possível após a realização de estudos que analisem os impactos de tais mudanças estruturais na graduação médica. No contexto do ensino médico na Unipampa, devido ao caráter recente das atividades do curso, ainda não se dispõe destes estudos. Conquanto, observa-se que este relato contribui com estudos já existentes, no sentido de expor potencialidades e fragilidades do processo de implantação e execução de atividades de ensino relativas à construção de competências profissionais, no cenário da educação médica. Tais elementos poderão subsidiar futuros empreendimentos de construção de propostas de ensino-aprendizagem pautadas na proposta das diretrizes curriculares vigentes.

Vale destacar ainda, que, de acordo com o panorama apresentado na introdução deste trabalho, a inclusão de componentes curriculares, tendo como foco a entrevista médica em si, no início do percurso formativo dos discentes, é pouco explorada no contexto do ensino médico atual, considerando o cenário das escolas médicas no Rio Grande do Sul; o que confirma a relevância da publicização dessa experiência. Por fim, este relato e as reflexões suscitadas por ele permitem constatar que construir um processo de formação, de acordo com o preconizado pelas DCNs, demanda o enfrentamento de desafios de forma compartilhada, reconhecendo o protagonismo de todos os envolvidos no processo educativo.

 

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