RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 31 e-31502 DOI: https://dx.doi.org/10.5935/2238-3182.20210012

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Carta ao Editor

Em tempos de COVID: A Ciência, a Ética e a Medicina são indissolúveis! E nunca é demais repetir

In times of COVID: Science, Ethics and Medicine are indissoluble! And it never hurts to repeat

Miguel Augusto Martins Pereira1,2; José Carlos Carraro-Eduardo2

1. Faculdade de Medicina, Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, Rio de Janeiro, Brasil
2. Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), Rio de Janeiro, Brasil

Endereço para correspondência

José Carlos Carraro-Eduardo
E-mail: carrarouardo@gmail.com

Recebido em: 22/12/2020
Aprovado em: 26/01/2021

Instituição: Faculdade de Medicina, Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, Rio de Janeiro, Brasil

Resumo

A pandemia provocada pelo vírus Sars-CoV-2 não só aproximou o público leigo do meio acadêmico-médico, mas também pressionou médicos, pesquisadores e estadistas por resultados rápidos a fim de contê-la. É nesse ambiente de incerteza e necessidade de produção cientifica rápida, que devemos lembrar que o progresso não é a qualquer custo, deve-se agir com cautela, afinal a Ciência, a Ética e a Medicina são indissolúveis!

Palavras-chave: Ética Médica; Sars-CoV-2; Tomada de Decisões

 

A prática médica com a qual estamos acostumados é respaldada por critérios técnicos, protocolos e diretrizes tanto de associações quanto de sociedades de especialidades. Contudo, infelizmente, em virtude do curto período de reação à COVID-19, não houve tempo hábil para estabelecer condutas e terapêuticas de sólida base cientifica a despeito da doença causada pelo Sars-CoV-2. O ambiente já hostil ainda foi contaminado pelo medo, por especulações e pela calhordice das fake news.

A situação é no mínimo desconfortável dado que estamos em pleno século XXI, mas lembremos de que a Medicina nasce rigidamente atrelada a deveres éticos e ao "logos", haja vista o milenar Tratado e Juramento hipocrático. Desse modo, são nestes momentos de indecisão ou dubiedade, como o atual, que devemos nos apoiar com firmeza em princípios éticos e científicos.

Durante os primeiros meses de pandemia, a mídia transformou a Ciência no grande baluarte da luta contra o novo coronavírus, porém, aparentava não saber que a Ciência, a Ética e a Medicina sempre foram indissolúveis. A prática clínica depende da produção cientifica e ambas só prosperam quando regidas por princípios éticos. Aliás, é dever do médico aprimorar continuamente seus conhecimentos e usar o melhor do progresso científico em beneficio do seu paciente e da sociedade, ou seja, a atualização médica é um principio ético fundamental, possível apenas por meio de uma Ciência de qualidade.

O público leigo assistiu por muito tempo ao progresso da profissão médica, passivo e encantado, como quem assiste a um espetáculo de teatro. As cortinas se abrem e são desveladas vacinas, remédios e as mais milagrosas curas. O ar de encanto com notas de mistério esvaeceu, mas ainda há quem deseje não sabedoria, mas um espetáculo para se encantar e um mistério para se entorpecer. Em geral, esses são os mais impacientes com os lentos passos da Ciência. A pandemia da COVID-19, com a sua cobertura midiática diária - como já discutido - diminuiu essa distância entre a população geral e o meio acadêmico-médico. Os bastidores da produção cientifica, antes um mistério, invisíveis aos olhos da plateia, foi visitado. Assim, aqueles que gozam dos ganhos da ciência puderam apreciar a dignidade e o valor dos métodos pelos quais são conquistados.

A pandemia não só aproximou o público do meio acadêmico, mas também pressionou médicos, pesquisadores e estadistas por resultados rápidos. Essa necessidade de produção cientifica rápida diante de uma doença pouco conhecida, deve sempre "acender um alerta ético" e individualmente, moral. De fato, em um passado não muito longínquo, um ambiente semelhante instigou um trabalho bastante controverso, um verdadeiro "prato cheio" para as aulas de Ética médica e Ética em pesquisa, com sucessões de erros por parte de pesquisadores, profissionais da saúde e até órgãos governamentais, sendo utilizado com frequência como exemplo de má prática clinica, ciência antiética e de péssima qualidade.

No ano de 1932 até 1972 o U.S. Public Health Service (PHS), isto é, o próprio sistema de Saúde Pública dos Estados Unidos da América, realizou um estudo clinico não terapêutico, conhecido como o estudo de Tuskegee, manchando a história de uma comunidade rural pobre, de maioria negra, em Macon County no Alabama. O estudo explorou a vulnerabilidade dessa população negra da região com o objetivo pífio de sistematizar a evolução da sífilis livre de tratamento, afinal, anos antes, em 1929, já havia sido publicado um trabalho norueguês, "The Oslo Study", relatando mais de 2000 casos de sífilis não tratado. Logo os objetivos da pesquisa se tornaram ainda mais questionáveis, dando a interpretação de que seria um genocídio baseado em princípios eugenistas, travestido de Ciência.1

A ausência de um registro metodológico anterior ao inicio do ensaio, omissão do diagnóstico e do prognóstico aos pacientes, e naturalmente a ausência de um consentimento esclarecido são uma pequena fração do demérito desse experimento criminoso. Até 1950, não havia terapêutica bem estabelecida para a sífilis, embora o estudo tenha continuado após esse período, acumulando assim mais "irregularidades", agora, ao não confrontar os objetivos do projeto com os novos conhecimentos sobre a doença.

O relato do caso Tuskegee pode, à primeira vista, parecer um exagero ou uma realidade surreal se comparada a pandemia de COVID-19. Entretanto, o caso é um eterno lembrete ao médico de sua responsabilidade sobre o bem-estar de seu paciente, a saúde pública e a educação sanitária; ao pesquisador, do fato do conhecimento cientifico não justificar o descumprimento de padrões éticos; e a ambos, do dever de proteger a vulnerabilidade dos sujeitos de uma pesquisa clinica. Nunca deve-se atentar contra a dignidade humana e deve-se sempre agir perante as forças que insultem esses e outros princípios éticos. Afinal, a Ciência, a Ética e a Medicina são indissolúveis! E nunca é demais repetir.

 

Referências:

1. ROCKWELL D, YOBS A, MOORE M. The Tuskegee Study of Untreated Syphilis: The 30th Year of Observation. Arch Intern Med. 1964;114(6):792-798. doi:10.1001/archinte.1964.03860120104011