RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 31 e-31404 DOI: https://dx.doi.org/10.5935/2238-3182.20210020

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Relato de Caso

Acidose láctica associada à hipopotassemia grave em paciente sob uso de abacavir, atazanavir, lamivudina, lopinavir/ritonavir e tenofovir: Relato de caso

Lactic acidosis associated with severe hypopotasemia in patients under the use of abacavir, atazanavir, lamivudine, lopinavir / ritonavir and tenofovir: Case report

Júlia Ribeiro Vaz de Faria1; Ênio Roberto Pietra Pedroso2

1. Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil
2. Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais, Departamento de Clínica Médica, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil

Endereço para correspondência

Júlia Ribeiro Vaz de Faria
E-mail: juliaribeirovaz@gmail.com

Recebido em: 26/05/20
Aprovado em: 26/01/2021

Instituição: Universidade Federal de Minas Gerais, Departamento de Clínica Médica, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil

Resumo

Os antirretrovirais (ARV) modificaram a evolução natural da síndrome da imunodeficiência adquirida de um quadro inicialmente com perspectiva fatal para doença de convivência crônica, com sobrevida que pode ser próxima daquela esperada para a pessoa hígida. A administração dos ARV, entretanto, requer vigilância médica, não só do especialista, mas de todos os envolvidos na Atenção Básica, na Unidade de Pronto Atendimento e na Terapia Intensiva, para que seus efeitos adversos sejam reconhecidos e abordados convenientemente, o que significará melhores condições de vida para os portadores do vírus da imunodeficiência humana (VIH). Este relato mostra os riscos de associação de ARV, e alerta para situações limites em que alterações metabólicas graves, como acidemia e hipopotassemia, podem colocar em risco a vida do paciente sob terapia ARV.

Palavras-chave: Acquired Immunodeficiency Syndrome; Acidosis; Anti-retroviral Agents.

 

INTRODUÇÃO:

A Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (SIDA), descrita em 1981, é provocada pelo vírus da imunodeficiência humana (VIH),1,2 que depleta e desorganiza o sistema imunológico, determinando a imunodeficiência.3 A infecção provocada pelo VIH é de patogenicidade precoce, evolução prolongada e desencadeamento progressivo de doença fatal,4 associada a infecções oportunistas, neoplasias, doenças autoimunes e metabólicas.5 Cerca de 34 milhões de pessoas vivem em todo o mundo com o VIH.6 No Brasil, cerca de 600 mil pessoas convivem com o VIH,7 com taxa de prevalência na faixa etária entre 15 e 49 anos de 0,6%; entre profissionais do sexo de 5,0%; entre pessoas que fazem uso de drogas injetáveis (ilícitas) de 5,9% e entre homens que fazem sexo com homens de 10,5%.8,9 Estima-se que cerca de 200 a 250 mil brasileiros desconhecem sua condição de soropositividade para o VIH.10

A terapia antirretroviral (TARV) combinada, altamente potente, introduzida na segunda metade da década de 1990, determinou extraordinária mudança em relação ao prognóstico da infecção pelo VIH, tornando-a doença crônica passível de controle.4 O principal objetivo da TARV é, por intermédio de inibição da replicação viral, retardar a progressão da imunodeficiência e restaurar, o quanto possível, a imunidade, aumentando o tempo e a qualidade de vida das pessoas que vivem com VIH-SIDA.9 Assim, a supressão máxima e contínua da replicação viral é imprescindível para reduzir ou reverter o dano imunológico e sua meta é manter a carga viral indetectável (<50 cópias/mL) após 24 semanas de terapia, o que reduz a seleção de vírus resistentes aos antirretrovirais (ARV).11

A TARV não precisa ser instituída como medida emergencial em paciente com a infecção,1 nem deve ser, em geral, iniciada antes de avaliações clínica e laboratorial para determinar o grau de imunodeficiência existente e o risco de sua progressão.2,3 É essencial para a instituição de TARV que o paciente queira se tratar, que compreenda as mudanças potenciais que o tratamento poderá trazer sobre sua qualidade de vida, que tenha empenho e entenda a necessidade de manter a adesão ao tratamento.4,5

A monitoração de efeitos colaterais depende de cada fármaco, e deve ser feita, em geral, trimestralmente, o que requer vigilância clinica e laboratorial, além da confiança do paciente na sua relação com seu médico.1 É necessária a atenção ainda para a possibilidade da troca de medicamentos, que dependem da intolerância às reações adversas o aumento ou permanência elevada da carga viral, a progressão clínica da doença, a deterioração imunológica aferida por diminuição da contagem de LTCD4+.5,8

Existem quatro grupos principais de medicamentos disponíveis para a TARV, que atuam em fases diferentes da replicação viral, com base na inibição: 1. da transcriptase reversa (TR), como: análogos de nucleosídeos (ITRN) que mimetizam estes precursores do material genético celular, formando sequencias de acido desoxirribonucleico disfuncionais; e não análogos de nucleosídeos (ITRNN), que se ligam à TR, interrompendo sua ação; 2. da protease (IP), que bloqueiam seletivamente a ação desta enzima, impedindo a maturação das poliproteínas virais; 3. de entrada: que dificultam a ligação do VIH com a membrada do LTCD4+, impedindo sua penetração na célula; 4. da integrasse (INSTI), que bloqueia a ação da integrasse, impedindo a fusão dos provírus ao acido nucleico celular (Tabela 1).1

 

 

A TARV deve ser iniciada com dois ITRN + um IP-r (um inibidor de protease como ritonavir) ou dois ITRN + um ITRNN.9 Não parece haver diferença importante no uso de qualquer um dos IPou, nos ITRNN, entre efavirenz e nevirapina.11 Entre os IP, a escolha inicial se da entre atazanavir, fosamprenavir ou lopinavir;12 e observa-se que a falha virológica, com mais mutações de resistência, ocorre com o uso de nevirapina.13 Os ARV podem provocar efeitos adversos variados, entretanto, na maioria das vezes, são bem tolerados (Tabela 1).14

Este relato apresenta alterações metabólicas graves, associadas ao uso de TARV, incompatíveis com a vida, e que requerem atenção médica contínua em Unidade de Pronto Atendimento, Pronto Socorro e Centro de Tratamento Intensivo (CTI), para que pudessem ser convenientemente identificadas, abordadas e tratadas para a manutenção da sobrevivência.

 

RELATO DE CASO

MNA, 51 anos de idade, feminino, leucoderma, natural e procedente de Ibirité (Minas Gerais), foi admitida no Centro de Tratamento Intensivo (CTI) do Hospital das Clínicas (HC) da Universidade Federal de Minas Gerais, devido à febre, inapetência, náuseas, vômitos, dor epigástrica, disúria e diarreia. Na semana anterior, recebeu tratamento para infecção do trato urinário baixo por 5 dias na unidade básica de saúde, com Sulfametoxazol/Trimetropim, sem remissão de sua sintomatologia.

Portadora há 16 anos do VIH, tendo iniciado, 11 anos depois, TARV constituída pro Lamivudina, Tenofovir e Lopinavir/Ritonavir, mantendo, desde então, carga viral (CV) indetectável.

Há sete meses, esteve internada também no HC devido a episódios de bradicardia seguida de síncope, e concomitância de hipopotassemia. Permaneceu internada durante 30 dias, período no qual manteve acidose metabólica de difícil controle, sendo necessária a administração de bicarbonato de sódio (2g, via oral, de 8/8 hroas e dose adicional de 1g de 12/12 horas) e cloreto de potássio (1200mg, via oral, de 8/8 horas), com inúmeras correções adicionais de suas doses. Recebeu alta hospitalar com gasometria venosa em que se observava: pH 7,28, PO2 13,2 mmHg, PCO2 41,7 mmHg, bicarbonato 19mEq/L, excesso de base -7,2, saturimetria de O2 23%, uremia 33mg%, creatininemia 2,48%, potassemia 2,7mEq/L. Foi mantida a administração, via oral, de cloreto de potássio 600mg de 8/8 horas, bicarbonato de sódio 2,5g de 6/6 horas, e Lamivudina 150mg de 12/12 horas, Abacavir 300mg, de 12/12 horas, Atazanavir 300mg de 24/24 horas e Ritonavir 100mg de 24/24 horas. A TARV foi substituída, após alguns meses, por Lamivudina, Tenofovir e Lopinavir/Ritonavir. A avaliação prévia à essa internação mostrava ionograma, função renal e gasometrias normais (Tabela 2).

 

 

Os exames complementares sanguíneos realizados após sua admissão no CTI revelaras: hemoglobina 13g%, hematócrito 35,5%, leucócitos globais 14.360/mm3 (neutrófilos 11.200/mm3, bastonetes 720/mm3, linfócitos 1.010/mm3, basófilos 140/mm3, monócitos 570/mm3), plaquetas 59.000/mm3, com os eosinófilos variando desde 80/mm3 até atingir 1.300/mm3 e, ao final da evolução à 80/mm3; proteína C reativa (PCR) 16, uréia 46mg/dL; creatinina 3,0mg/dL, transaminase glutâmico-oxalacética (SGTO) 24UI/L; transaminase glutâmico-pirúvica (SGPT) 20UI/L, desidrogenase-lática (LDH) 1.234UI/mL, amilase 71UI/L, lipase 178UI/L, atividade de protrombina 79%, razão de normatização internacional (RNI) 1,16; tempo de tromboplastina parcial ativada 28seg, creatinofosfoquinase (CPK) 29UI/L, bilirrubina total 0,53mg/dL, bilirrubina direta 0,47mg/dL, bilirrubina indireta 0,06mg/dL, albumina 3,3mg%, cálcio 10,7mg/dL, potássio 4,7mEq/L, sódio 152 mEq/L, cloreto 133mEq/L; gasometria arterial pH 7,09, PO2 94mmHg, PCO2 28,9mmHg, bicarbonato 8,6mEq/L, Excesso de Base -19,9, saturimetria de O2 97%, lactato 1,65 mmol/L. A ultrassonografia abdominal (US) revelou sinais de doença renal parenquimatosa. Foi interrompida a administração da TARV.

A paciente autorizou por escrito e anexado em seu prontuário, o relato de suas alterações clínicas.

 

DISCUSSÃO

Este relato descreve paciente adulta, portadora de SIDA, sob TARV, com CV indetectável há três anos. Há sete meses, procurou serviço de urgência em uso de Lamivudina, Abacavir, Atazanavir e Ritonavir devido a bradicardia, lipotimia, quando foi identificada hipopotassemia e acidemia graves. Essa associação fisiopatológica é capaz de promover alterações da condução atrioventricular do estímulo cardíaco, com escapes ventriculares extrassistólicos; ou, taquicardia ventricular, sustentada ou não; na dependência de outros fatores anatomofuncionais cardiovasculares, como aterosclerose, dislipidemia, diabetes mellitus e miocardites.15 Manteve-se estável, desde então, sob suplementação via oral de potássio e bicarbonato. Essas alterações indicavam, provavelmente, que a troca de sódio por potássio ou hidrogênio, mediada pela aldosterona, no túbulo contorcido distal, ocorria preferencialmente entre sódio e potássio, além de haver perda da capacidade de depurar a creatinina sérica. Sugeria alteração tubular proximal e distal, com progressão para insuficiência renal.16

A medicação ARV foi substituída por Lamivudina, Tenofovir e Lopinavir/Ritonavir, e uma semana antes de procurar atendimento de urgência, surgiu-lhe sintomatologia urinária baixa e digestiva alta, interpretada como decorrente de cistite, e tratada com Sulfametoxazol/Trimetoprim. Não houve melhora da sintomatologia digestiva, o que levou a novo atendimento de urgência quando foi constatada acidemia e hipopotassemia graves, mesmo com a simultaneidade de vômitos, suplementação oral de potássio e bicarbonato de sódio. Não foram observadas alterações simultâneas da: pressão arterial sistêmica, consciência, ou do volume urinário; e estavam normais os valores de: PCR, uremia, transaminasemia, amilasemia, lactatemia, RNI, tempo de tromboplastina parcial ativada, CPK, bilirrubinas, albumina e PO2 arterial. A US abdominal identificou sinais de doença renal parenquimatosa.

O diagnóstico diferencial dessas alterações metabólicas sistêmicas graves, com risco de provocar a morte, pode ser considerado, tomando como parâmetro para raciocínio, a variação do hiato aniônico, nas seguintes possibilidades: 1. Hiato aniônico aumentado, relacionado com: a) excesso de ácidos, como ocorre na cetoacidose diabética, cetose de jejum, septicemia, insuficiência vascular, hipoglicemia, acidose láctica (hipoxemia grave, choque, insuficiência hepática, anemia grave), intoxicação exógena (álcool, metanol, monóxido de carbono, salicilato), rabdomiólise, exercício anaeróbico, acúmulo de ácido inorgânico (fosfato, sulfato); b) redução na excreção ácida, como observado na insuficiência renal grave, compensação da alcalose respiratória resolvida; ou, 2. Hiato aniônico normal ou diminuído, relacionado com: a) perda de bicarbonato, associada com diarreia, ileostomia, drenagem pancreática ou biliar, derivação urinaria para o intestino, uso de inibidores de anidrase carbônica; b) excesso de ácidos devido a ingestão de ácido clorídrico ou cloreto de amônio, cloreto de arginina, cloridrato de lisina ou ânions orgânicos, rapidamente excretados pela urina; c) redução da excreção ácida, como ocorre na acidose tubular tipos 1, 2 e 4, uso de inibidores da anidrase carbônica, insuficiência renal aguda inicial, uso de inibidor de aldosterona.16,17

A análise de cada uma das nosologias, ao serem aplicadas aos dados clinicolaboratoriais observados neste relato, permite considerar a possibilidade de acidose láctica, intoxicação exógena, insuficiência renal grave, acidose tubular renal tipos 1, 2 e 4; isto é, lesão tubular renal devido a um fator externo;18 em especial, associadas à SIDA e aos ARV sob controle, com CV indetectável há três anos e valores de CD4+ e CD8+ acima de 500/mm3, indicava bom controle clinico e sem nenhuma repercussão direta sob a função de órgãos funcionais principais. Os ARV, neste caso, tornaram-se os fatores principais responsáveis pelas alterações anotadas, incluindo, Abacavir, Atazanavir, Lamivudina, Tenofovir ou Lopinavir/Ritonavir, e sua provável relação com nefropatia tubulointersticial (eosinofílica), e lesão renal definitiva.20 A sobrevivência foi mantida às custas da reposição oral de potássio e bicarbonato, que foram essenciais para a manutenção da hemeostasia. Acresce à essas alterações o desenvolvimento de plaquetopenia, sem manifestações clínicas associadas.21

Os efeitos adversos devidos ao uso isolado ou combinado de Abacavir, Atazanavir, Lamivudina, Tenofovir e Lopinavir/Ritonavir (Tabela 1) e que refletem as alterações descritas neste relato são: 1. Abacavir: náusea, vômito, diarreia, astenia, mialgia, mal-estar geral, cefaleia, febre, emagrecimento, pancreatite, acidose láctica, lipodistrofia (perda de gorduras nas pernas, braços e face, aumento de gordura abdominal e em órgãos internos, desenvolvimento de mamas e formação de nódulos de gordura na parte de trás do pescoço), alterações nos níveis de lipídeos e glicose no sangue, até reação de hipersensibilidade desde exantema até choque anafilático, e necrólise epidérmica tóxica; 2. Atazanavir: desmaio, cefaleia, disestesia, amnesia, icterícia, dor abdominal, diarreia, náuseas, vômitos, polaciúria, nefrolitíase, erupção, astenia, elevação de bilirrubinas, creatina quinase elevada, transaminases e lipases elevadas e neutropenia; 3. Tenofovir: náuseas, vômitos, diarreia, febre, plaquetopenia; 4. Tenofovir e Lamivudina: hipopotassemia, insuficiência renal, síndrome de Fanconi, tubulopatia proximal, creatinina elevada, necrose tubular aguda, nefrite intersticial, elevação das enzimas hepáticas (AST, ALT, GGT), acidose láctica, náuseas e vômitos; 5. Lamivudina: elevação de CPK, náuseas, vômitos, diarreia, plaquetopenia e acidose láctica; 6. Lopinavir/Ritonavir: diarreia, gastroenterite, colite, aumento de enzimas hepáticas (AST, ALT, GGT), insuficiência renal e acidose láctica.1,22

As doenças tubulointersticiais variam na sua manifestação clinica, desde a insuficiência renal aguda até a disfunção renal crônica, que se apresenta sob a forma de insuficiência renal leve assintomática.16 Associa-se com necrose tubular aguda tóxica e isquêmica, nefrite intersticial alérgica, nefrite intersticial secundária a imunocomplexos relacionados à doença do colágeno vascular, como a Síndrome de Sjogren ou o lúpus eritematoso sistêmico, doenças granulomatosas (sarcoidose, nefrite tubulointersticial associada a uveíte), lesão tubular relacionada a pigmentos (mioglobina, hemoglobina), hipercalcemia com nefrocalcinose, obstrução tubular (ARV, acido úrico na síndrome de lise tumoral),rim do mieloma ou nefropatia por cilindros, nefrite intersticial relacionada à infecção (Legionella, Leptospira) e doenças infiltrativas como o linfoma. O comportamento clínico das alterações aqui relatadas assemelham-se ao que se observa na acidose tubular renal distal que resulta da incapacidade das células intercaladas-alfa dos ductos coletores em excretar ácidos fixos e como consequência ocorrem acidose metabólica hiperclorêmica (cloreto de 133/mm3) e hipopotassêmica, e controle com a administração de bicarbonato de sódio, entretanto, não consegue elevar a potassemia, sendo necessária a suplementação de potássio, sendo necessária a suplementação de potássio, como ocorre na acidose tubular renal proximal, e visto neste relato.21

Pode-se considerar que neste caso houve congruência de varias associações que resultam no desenvolvimento de acidemia e hipopotassemia que pode ser relacionados com acidose tubular renal proximal (tipo II), que se caracteriza pela redução do limiar para a reabsorção do bicarbonato. Observa-se inicialmente, perda de bicarbonato que se situa em nível sérico abaixo do valor de referência.23 Neste nível, há redução do bicarbonato filtrado, e o túbulo renal pode reabsorver toda esta carga filtrada, de modo que o estado de equilíbrio dinâmico atingindo determina novo pH, usualmente ácido. Nesse caso, o pH urinário é, em geral, inferior a 5,3, a acidose não é grave, e não há retenção rígida de ácido, desde que, nesse novo estado de equilíbrio dinâmico, a excreção de ácido pode se equilibrar com a sua produção. A abordagem terapêutica desse estado anatomofuncional requer a administração de grandes quantidades de bicarbonato para corrigir a acidemia, visto que a administração de alcalinos associa-se imediatamente à sua excreção renal e à urina alcalina. Outra característica relacionada com a urina alcalina é a produção de hipopotassemia pela reposição de bicarbonato.21

A acidose tubular proximal isolada pode resultar de mutações de transportadores específicos do túbulo proximal, com o cotransportador de Na+-HCO3-, ou ser causada pela deficiência hereditária da anidrase carbônica.15 Esta última condição assemelha-se aos efeitos dos inibidores da anidrase carbônica, como a acetazolamida. A acidose tubular renal proximal associa-se, com mais frequência, com a disfunção generalizada dos túbulos proximais (Síndrome de Fanconi inclusive pós-transplante renal), em que se observa glicosúria, fosfatúria, aminoacidúria e uricosúria. As suas causas incluem doenças genéticas (glicogenoses, deficiência de glicose-6-fosfatase, cistinose, intolerância hereditária à frutose e doença de Wilson), o mieloma múltiplo, a síndrome de Sjogren, o hiperparatireoidismo primário (acidose com hipofosfatemia), a toxicidade farmacológica com o uso de aminoglicosídeos, cisplatina e ifosfamida.16,17

Considera-se que houve associação de acidose tubular renal tipo II com acidose tubular renal tipo I, que é um distúrbio metabólico, em geral, mais grave, e que pode ser acompanhado de hipercalciúria, nefrocalcinose, cálculos renais e doença óssea. O grau de acidemia é frequentemente mais grave, em geral, o pH urinário é superior a 5,3. Essa observação constitui a base do teste de sobrecarga de cloreto de amônio em que o estímulo ácido provoca redução dos níveis plasmáticos de bicarbonato, de modo que se o pH urinário permanecer acima de 5,3 deve-se suspeitar de alguma anormalidade distal. Esse teste raramente é indicado para diferenciar a acidose proximal da distal. Na acidose tubular renal distal não há produção de amônia e, por conseguinte, verifica-se a incapacidade de excreção adequada efetiva de ácido, resultando em retenção contínua de ácido. Este distúrbio precisa ser tratado, mas geralmente pode ser controlado com pequenas quantidades de bicarbonato ou sais de citrato até atingir a produção diária de ácido na quantidade de 1 a 2 mEq/kg/dia. A acidose tubular renal distal é, frequentemente, acompanhada de hipopotassemia, que pode melhorar com o tratamento. Está associada com várias entidades clínicas, com mutação no gene H+-ATPase distal, de caráter autossômico recessivo, com surdez; ou, no trocador de cloreto com bicarbonato, associada com uma forma autossômica dominante de acidose tubular renal distal; ou com distúrbios autoimunes (lúpus eritematoso sistêmico, síndrome de Sjogren), drepanocitose, doença de Wilson, doença de Fabry, doença renal cística e eliptocitose, amiloidose, doença tubulointersticial do rim (nefropatia de refluxo, obstrução urinária) e fármacos, como a anfotericina B (acidemia e hipopotassemia).16

As alterações relatadas neste caso incluem efeitos adversos graves, capazes de desencadearem a morte devido, pelo menos, a dois fatores muito significativos como hipopotassemia e acidemia, que desorganizam o sistema metabólico e promovem distúrbios graves de homeostasia. É provável que os ARV mais associados com estas alterações devem ter sido: Abacavir (acidose láctica), Tenofovir (acidose láctica, plaquetopenia), Tenofovir e Lamivudina (hipopotassemia, insuficiência renal, sindorme de Fanconi, tubulopatia proximal, necrose tubular aguda, nefrite intersticial, acidose láctica), Lamivudina (plaquetopenia, acidose láctica) e Lopinavir/Ritonavir (insuficiência renal e acidose láctica).24 A acidemia e hipopotassemia já estavam presentes com a administração de Lamivudina, Abacavir, Atazanavir e Ritonavir e se manteve com Lamivudina, Tenofovir e Lopinavir/Ritonavir, de forma semelhante ao que ocorre com o uso de Anfotericina B.25

 

CONCLUSÃO

Este relato descreve a presença de acidemia e hipopotassemia associada ao uso de Lamivudina, Abacavir, Atazanavir, Tenofovir e Lopinavir/Ritonavir, de forma semelhante ao que ocorre com o uso de Anfotericina B, efeito adverso grave e potencialmente fatal e que requer vigilância médica contínua e cuidadosa. Este alerta indica que em todas as circunstancias da atenção à saúde o paciente em uso de ARV requer cuidado especial diante de alterações variadas e aparentemente pouco comuns como acidemia e hipopotassemia.

 

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