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CAPES/Qualis: B2
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A psicologia humanista de Carl Rogers na educação médica: Espaços e desafios
Carl Rogers' humanistic psychology in medical education: Spaces and challenges
Maria Gabriela Parenti Bicalho; Milena Baião dos Santos Lucino; Luíza Teixeira Silva; Ana Carolina Oliveira Diniz
Universidade Federal de Juiz de Fora Campus Governador Valadares (UFJF-GV), Instituto de Ciências da Vida (ICV), Departamento de Medicina, Governador Valadares - MG, Brasil
Endereço para correspondênciaMaria Gabriela Parenti Bicalho
E-mail: maria.gabriela@ufjf.edu.br
Recebido em: 27/08/2020
Aprovado em: 07/04/2021
Instituição: Universidade Federal de Juiz de Fora Campus Governador Valadares (UFJF-GV), Instituto de Ciências da Vida (ICV), Departamento de Medicina, Governador Valadares - MG, Brasil
Resumo
A problematização dos lugares, papéis e sentidos da Psicologia nos cursos de Medicina é necessária para que as unidades curriculares ligadas a esse campo de conhecimento aportem à formação dos graduandos o desenvolvimento de saberes, habilidades e competências necessários para a o exercício da prática médica humanizada. Este trabalho discute a adoção da Psicologia Humanista de Carl Rogers como fundamento teórico de disciplinas ou módulos ligados à Psicologia na formação médica. Apresenta as bases dessa vertente e relaciona-as à discussão das metodologias de ensino e da relação professor-aluno no ensino médico. Conclui que a teoria analisada pode constituir orientação para a prática docente e as escolhas curriculares e metodológicas da formação médica, apesar dos limites de sua aplicação de forma generalizada nos cursos de graduação. Indica as atividades voltadas para a capacidade dos estudantes de identificar, expressar e refletir sobre seus próprios sentimentos em relação a diferentes situações vivenciadas durante a graduação em Medicina são as mais coerentes com a proposta da psicologia humanista de Carl Rogers.
Palavras-chave: Psicologia Médica; Educação Médica; Psicoterapia Centrada na Pessoa.
INTRODUÇÃO
As Diretrizes Curriculares Nacionais para o curso de graduação em Medicina - DCN 2014 - situam as Ciências Humanas e Sociais como eixo transversal na formação profissional com perfil generalista1. Propõem, também, que aspectos socioculturais, humanísticos e biológicos sejam considerados de forma interdisciplinar e multiprofissional ao longo do curso2. Tais diretrizes refletem um movimento de questionamento de referências anteriores sobre a formação médica e contribuem para a consolidação de um novo paradigma, que alia a ciência e a técnica ao cuidado humanizado3,4. Nesse contexto, as contribuições de campos do conhecimento como Sociologia, Antropologia e Psicologia são revalorizadas, o que traduz "a necessidade da prática clínica humanizada associada à abordagem do paciente em seus aspectos biopsicossociais para, de fato, efetivar o proposto nas DCN".3
A demanda pela formação de médicos capazes de compreender os aspectos psicossociais dos processos de saúde e doença e de relacionar-se com pacientes, famílias e comunidades de maneira humanizada e empática abre à Psicologia espaços de participação na formação médica. Espera-se a interação entre esse campo de conhecimento e as demandas formativas dos graduandos em Medicina, a fim de prepará-los para a prática profissional 3,5,6,7.
Os cursos de graduação em Medicina buscam estratégias para atender as demandas postuladas pelas DCN 2014, entre as quais reformas curriculares voltadas para abordagens mais centradas no paciente e no aluno. Entretanto, embora a importância e a atualidade dos temas humanísticos no campo da saúde sejam teoricamente reconhecidas, há grande dificuldade de integrá-los à formação médica, o que faz com que sejam, na realidade dos cursos de graduação, considerados desinteressantes e pouco importantes3,8
Estudos avaliam que as disciplinas ligadas às Ciências Humanas não têm sido capazes de estabelecer vínculo satisfatório com as demandas da formação médica, o que as torna pouco atrativas para os discentes e pouco reconhecidas por docentes médicos9,10. Uma revisão sistemática da literatura sobre a retomada da humanização nas escolas de Medicina aponta que "a desarticulação das disciplinas de humanidades com o currículo médico tem sido considerada uma das principais dificuldades para a prática da humanização na medicina."11.
A teoria da Psicologia Humanista de Carl Rogers é uma das vertentes teóricas da Psicologia, adotada por psicólogos, educadores e outros profissionais envolvidos no atendimento a sujeitos ou grupos que buscam auxílio para o desenvolvimento de diferentes esferas de suas vidas. É também, no contexto da diversidade de abordagens psicológicas, alvo de críticas e propostas de reorientação. Defende-se, neste trabalho, a pertinência dessa corrente para uma inserção significativa da Psicologia na formação médica. Para alcançar esse objetivo, são apresentados a seguir elementos teóricos dessa teoria e reflexões sobre suas possibilidades de atendimento às demandas e necessidades da educação médica.
DESENVOLVIMENTO
A Psicologia Humanista de Carl Rogers e a relação profissional-paciente.
A Psicologia Humanista configurou-se na década de 1950, como "terceira via", em oposição a duas vertentes da Psicologia predominantes na primeira metade do século XX: a psicanálise e o comportamentalismo12. Esse movimento foi empreendido por diferentes representantes, que tinham em comum a defesa de concepções acerca do ser humano diferentes das então vigentes.13
O psicólogo estadunidense Carl Rogers (1902-1987) foi um dos principais representantes dessa corrente, com notável influência sobre o desenvolvimento da Psicologia14. A forma de psicoterapia proposta por Rogers, atualmente denominada Abordagem Centrada na Pessoa, é considerada uma revolução da compreensão da relação terapêutica 13,15,16, por postular uma visão abrangente do ser humano que enfatiza a vivência das emoções".14. Os postulados dessa abordagem são apresentados a seguir.
O livro Tornar-se Pessoa, publicado nos Estados Unidos em 1961, foi lançado no Brasil em 1976 e é considerado a obra de referência da terceira fase de Carl Rogers, a chamada fase experiencial17. Nela, o autor apresenta aprendizagens que considera fundamentais para a construção de sua teoria. Relata-as na primeira pessoa do singular, enfatizando tratar-se de conclusões resultantes da reflexão sobre sua trajetória profissional. A primeira aprendizagem é a necessidade de congruência entre as ações e os sentimentos do terapeuta: "Nas minhas relações com as pessoas descobri que não ajuda, a longo prazo, agir como se eu fosse alguma coisa que não sou"18. Outra capacidade necessária é a de ouvir a si mesmo. "Descobri que sou mais eficaz quando posso ouvir a mim mesmo aceitando-me, e posso ser eu mesmo"18. Rogers estabelece uma relação entre aceitação e mudança na prática terapêutica: "não podemos mudar, não podemos nos afastar do que somos enquanto não aceitarmos profundamente o que somos. Então a mudança parece operar-se quase sem ser percebida"18.
Tal paradoxo entre aceitação e mudança fundamenta a capacidade de compreensão, outra aprendizagem fundamental na Psicologia Humanista de Carl Rogers: "Atribuo enorme valor ao fato de poder me permitir compreender uma outra pessoa. (....). Raramente permitimos a nós mesmos compreender precisamente o que significa para essa pessoa o que ela está dizendo." 18 A compreensão conduz à abertura de canais de comunicação que possibilitem ao outro a comunicação de sentimentos: "(...). Posso, com minha atitude, criar uma segurança na relação, o que torna mais possível a comunicação" 18.
É possível observar o encadeamento dessas quatro aprendizagens fundamentais: a primeira e a segunda remetem ao profissional, que deve agir de acordo com seus sentimentos e ouvir a si mesmo: ser o que é. A terceira e a quarta aprendizagens são a extensão das anteriores na relação com o paciente: compreender a outra pessoa e criar canais de comunicação: permitir ao outro ser o que é. Na psicologia humanista de Carl Rogers, conclui-se, são as atitudes do terapeuta de aceitação e abertura ao outro que criam as condições necessárias para que o paciente realize mudanças em sua vida.
Por isso, nessa perspectiva, a relação intersubjetiva terapeuta-cliente é mais importante que o conteúdo verbal dela oriundo, pois é capaz de criar sentidos para as experiências do paciente. O psicoterapeuta "...utiliza-se de seus sentimentos como movimentos dirigidos ao cliente, ocorrendo um diálogo íntimo e intersubjetivo entre ambos"17. Desse ponto de vista, explicar a origem dos problemas e indicar caminhos são métodos infrutíferos, pois é pela experiência de uma relação que a pessoa encontrará em si mesma a capacidade de crescimento e mudança. O estabelecimento dessa relação de ajuda cria o clima psicológico adequado para o desenvolvimento da tendência ao crescimento, ou orientação positiva, ideia basilar da Psicologia Humanista de Carl Rogers 16,18,19, 20.
Para que isso ocorra, são necessárias as seguintes atitudes do terapeuta: 1) genuinidade: consciência e expressão coerente dos próprios sentimentos, imprescindível para que a relação tenha realidade: "É somente ao apresentar a realidade genuína que está em mim que a outra pessoa pode procurar pela realidade em si com êxito". 2) aceitação: "...consideração afetuosa" pela pessoa, reconhecendo sua "autovalia incondicional". Ela poderá, a partir da segurança de ser aceita, avançar em sentido de sua positividade. 3) compreensão dos pensamentos e sentimentos do outro. 4) respeito pela liberdade do sujeito de se conhecer e utilizar seus próprios recursos, pois não há, por parte do terapeuta, "qualquer tipo de avaliação moral ou diagnóstica" 18.
Na obra Um jeito de ser, lançada nos EUA em 1980 e três anos depois no Brasil, o autor retoma as características básicas dessa relação, apresentando-as como três aspectos: autenticidade, sinceridade ou congruência do terapeuta; aceitação incondicional, interessada na expressão verdadeira dos sentimentos do cliente; e compreensão empática, por meio da qual "... o terapeuta capta com precisão os sentimentos e significados pessoais que o cliente está vivendo e comunica essa compreensão ao cliente."21. Rogers reafirma sua compreensão sobre as condições para a mudança, afirmando que se as pessoas são aceitas e consideradas, tendem a desenvolver atitude de consideração em relação a si próprias. Os avanços do paciente são, portanto, a recíproca da atitude do terapeuta. O papel do profissional envolvido nessa relação seria "oferecer uma caixa de ressonância na qual a própria pessoa possa se ouvir e, assim, enxergar um caminho"16. A relação de aceitação e confiança fornecida pelo terapeuta permite à pessoa atendida experienciar seus próprios sentimentos e os dos outros, sem sentir-se ameaçada por fazer isso. Assim, para Rogers, a efetividade da Abordagem Centrada na Pessoa está ligada à compreensão empática e à valorização das vivências da pessoa, pelo terapeuta.22
Os fundamentos teóricos apresentados demonstram (e, a nosso ver, por isso destacam-se de outras vertentes teóricas da Psicologia) a centralidade da relação estabelecida entre o terapeuta e o paciente. Rogers indaga sobre a capacidade do profissional de abrir-se a esse encontro, escutar e compreender o outro, e, ao mesmo tempo, ouvir e aceitar a si mesmo. Ao enfatizar que o caminho na solução das dificuldades encontra-se na qualidade da relação estabelecida, e não no desvendamento e na explicação dos problemas do cliente, Rogers destina aos profissionais um lugar diferente. Ao adotar a primeira pessoa do singular, forma incomum na escrita acadêmica, reforça a ideia de que a pessoa do terapeuta - sua capacidade de vivenciar e expressar sentimentos, de envolver-se, compreender e aceitar o outro - é elemento primordial.
À pergunta "Como poderei criar uma relação de ajuda"?, o autor responde com outras indagações, as quais consideramos importantes para a discussão do papel da Psicologia na formação médica:
1) "Poderei conseguir ser de uma maneira que possa ser apreendida pela outra pessoa como merecedora de confiança?"18. O objetivo de ser coerente não seria atingido pela execução externa de comportamentos que demonstrem confiança, mas sim pela consciência dos próprios sentimentos.
2) "Poderei ser suficientemente expressivo enquanto pessoa para que o que sou possa ser comunicado sem ambiguidades?". A capacidade de mostrar-se como é, reconhecer e aceitar os próprios sentimentos, fundamenta a capacidade de "estabelecer uma relação de ajuda comigo mesmo"18. O reconhecimento desse objetivo é enriquecedor, ainda que seu alcance seja tarefa difícil e nunca concluída.
3) "Serei capaz de vivenciar atitudes positivas para com o outro - atitudes de calor, de atenção, de afeição, de interesse, de respeito?"18. A formação profissional tradicional, segundo o autor, ao contrário disso, ensina barreiras contra o envolvimento.
4) "Poderei ser suficientemente forte como pessoa para ser independente do outro?" A independência garante a capacidade de compreensão e aceitação do outro, "... porque não tenho o receio de perder a mim mesmo."18.
5) "Estarei suficientemente seguro no interior de mim mesmo para permitir ao outro ser independente?" Isso significa permitir que o outro seja quem é e não alguém que segue conselhos ou imita modelos18.
6) "Poderei permitir-me entrar completamente no mundo dos sentimentos do outro e das suas concepções pessoais e vê-los como ele os vê?" Tal capacidade possibilitaria uma entrada plena no mundo do outro, sem desejo de julgar ou avaliar18.
7) "Uma outra questão é saber se posso aceitar todas as facetas que a outra pessoa me apresenta". Rogers questiona, assim, a capacidade de aceitar o outro plenamente e comunicar-lhe essa atitude18.
As condições para o estabelecimento de relações de ajuda baseiam-se, portanto, no próprio profissional, em suas capacidades, na condição que possui de vivenciar tais relações de forma genuína e segura. Rogers descreve um processo contínuo de amadurecimento do profissional envolvido na vivência de relações de ajuda, no qual ele pode abrir-se a novas aprendizagens e rever posturas e conclusões anteriores.
A psicologia humanista de Rogers pretendia orientar não apenas psicólogos, mas outros profissionais engajados em relações de ajuda, nas áreas de educação, saúde e assistência social. Constituiu-se como importante vertente teórica da Psicologia, e sua influência expandiu-se dos EUA para diversos países, nos campos acadêmicos e profissionais. Atualmente, existem associações voltadas para a divulgação da Abordagem Centrada na Pessoa em diferentes países. No Brasil, as ideias de Rogers difundiram-se a partir da década de 196023 e fortaleceram-se nas décadas de 1970 e 80, com três visitas ao país e publicação de livros com psicólogos brasileiros, como é o caso do livro A Pessoa como Centro, em parceria com a psicóloga Rachel Rosenberg, uma das principais divulgadoras das ideias de Rogers no país23,24. A presença dessa teoria entre psicólogos e educadores, tanto no contexto acadêmico quanto no profissional pode ser verificada também na primeira década do século XXI23.
Especificamente na área médica, identifica-se a presença de conceitos e ideias-chave da Abordagem Centrada na Pessoa nas discussões teóricas sobre a relação e a comunicação médico-paciente. É relevante, nesse sentido, o conceito de Medicina Centrada na Pessoa. Segundo os autores do livro Medicina Centrada na Pessoa - Transformando o Método Clínico25, essa perspectiva "se junta aos trabalhos de Rogers (1951) sobre aconselhamento centrado no cliente". Trata-se de um conceito construído a partir de referências oriundas de campos diversos, não obstante, é notável a aproximação com a psicologia humanista de Rogers, sobretudo na importância atribuída "à relação entre a pessoa atendida e o médico e, por implicação, à autoconsciência do médico" 25
A abrangência das ideias de Carl Rogers é acompanhada de críticas e propostas de revisão de sua proposta, das quais destacam-se os argumentos relativos a dois aspectos. O primeiro dirige-se à concepção de ser humano, considerada individualista e desconectada das condições objetivas de vida, e, por isso, incapaz de abranger as implicações relativas às dinâmicas das relações de trabalho e classe social14,26. Uma tentativa de superação desses limites revela-se na aproximação entre a psicologia humanista de Rogers e as vertentes existencialistas e fenomenológicas, na busca da compreensão da pessoa em sua ação no mundo14,26. Além disso, no Brasil e na América Latina, os autores e as associações da Abordagem Centrada na Pessoa empreendem uma leitura própria e localizada da teoria rogeriana, com o objetivo de torná-la compatível com a realidade local14, analisando, por exemplo, aproximações possíveis entre as obras de Rogers e Paulo Freire28.
O segundo conjunto de críticas à psicologia humanista de Rogers propõe que a ênfase sobre a importância da relação interpessoal resulta em teorização e fundamentação científica insuficientes, reduzindo a prática da psicoterapia e de outras relações de ajuda à capacidade de empatia por parte dos profissionais.14,29. Tais observações são refutadas por autores como Rosenberg, que indicam na obra rogeriana a fundamentação teórica que dá suporte a sua proposta psicoterápica.29
Apesar da grande difusão das ideias de Carl Rogers nos campos da psicoterapia, da educação e de outras profissões que envolvem a relação entre pessoas, apenas de forma indireta é possível identificá-las nos cursos de Medicina no Brasil. A revisão bibliográfica empreendida neste artigo não localizou publicações que indiquem sua adoção de forma explícita, como orientação específica que fundamente disciplinas ou outros módulos curriculares de cursos médicos. Busca-se, a seguir, refletir sobre possibilidades nessa direção.
Da Abordagem Centrada na Pessoa à Aprendizagem Centrada na Pessoa.
De forma análoga à proposta psicoterápica, a proposta de Carl Rogers para a educação é conhecida como Aprendizagem Centrada na Pessoa21. Ambas comungam da mesma concepção acerca natureza humana, e as condições para a educação significativa são muito parecidas com as da relação psicoterápica, conforme indicado pelo autor no artigo Significant Learning in Therapy and in Education, de 1959 30.
Uma das características mais importantes dessa proposta é a ênfase na relação autêntica entre as pessoas envolvidas nos processos educativos. Essas pessoas são consideradas dignas de confiança, motivo pelo qual o estímulo à autonomia estaria presente nas relações de ensino-aprendizagem. Os pilares da relação de ajuda (aceitação incondicional, compreensão empática e autenticidade) devem ser exercidos também nas relações educativas. 17, 31
A defesa proposta neste artigo da adoção do referencial teórico da psicologia humanista de Carl Rogers no ensino médico fundamenta-se na ideia de que ela promoveria uma mudança efetiva nas relações entre professores e estudantes. Difere, nesse sentido, de propostas de alteração dos métodos de ensino que não questionam as concepções dos professores acerca dos discentes e de si mesmos. A perspectiva aqui analisada estaria baseada na reflexão sobre o papel docente, que seria o de possibilitar a vivência, no contexto educacional, de relações interpessoais baseadas na noção da tendência ao crescimento ou orientação positiva, apresentada no item anterior.
No contexto do ensino médico, essa possibilidade torna-se especialmente interessante pela complexidade dessa formação, que deve prover a aquisição de conteúdos e o desenvolvimento de habilidades e competências de diferentes campos, de forma articulada. Ao se tratar das atividades práticas, como disciplinas teórico-práticas, estágios, projetos de extensão, tem-se a inserção dos discentes em diferentes cenários, quando convivem com realidades distintas, desafiadoras e, por vezes, ameaçadoras, como o sofrimento e a morte. A presença nos cenários de prática de forma contínua desde o início do curso preconizada pelas DCNs2014 demanda dos cursos de Medicina a capacidade de acompanhamento e organização de tais vivências. Essa realidade reforça a necessidade de abordagens formativas fundamentadas na experiência de relações pedagógicas realmente centradas nas pessoas - nos discentes, nos docentes e nas relações humanas que, inevitavelmente, se processam na relação pedagógica. A psicologia humanista oferece, conforme apresentado no item anterior, elementos teóricos e propostas de atuação pertinentes a tais demandas. As DCNs 2014 indicam o Sistema Único de Saúde (SUS) como cenário primordial da formação médica, o que oferece aos estudantes possibilidades de aprendizagem em equipes multiprofissionais, nas quais poderão ter contato a prática dos profissionais de Psicologia. Da mesma forma, as políticas públicas de saúde no contexto do SUS, constituem fontes importantes de aprendizado e reflexão sobre os princípios da psicologia humanista de Rogers, estando algumas delas diretamente voltadas para a humanização da saúde.
A adoção dos pressupostos e orientações da Abordagem Centrada na Pessoa na formação médica comporta, entretanto, dificuldades. Ao ressaltar o papel basilar da relação interpessoal, e considerá-la imprescindível também no ensino, essa teoria deposita sobre os agentes dessa relação - as pessoas nela envolvidas - grande responsabilidade. Aos professores, considerados facilitadores do aprendizado, é feita de demanda de "serem capazes", nos termos de Rogers18, de oferecer as condições necessárias à relação: genuinidade, aceitação, compreensão dos pensamentos e sentimentos do outro e respeito pela liberdade do sujeito de se conhecer e utilizar seus próprios recursos18. Adotar os referenciais da Psicologia Humanista de Carl Rogers na graduação médica implica, portanto, a abertura de espaços nos cursos de Medicina para o exercício, pelos discentes, da observação de si, do conhecimento e aceitação dos próprios sentimentos, do reconhecimento das dificuldades de aceitação do outro, e da abertura à diferença. Trata-se de construir o ambiente da Abordagem Centrada na Pessoa. Assim, de educadores e gestores dos processos educacionais são esperadas as mesmas capacidades demandadas dos profissionais envolvidos na Abordagem Centrada na Pessoa: abertura ao outro, desejo de compartilhar e não de dominar, compreensão e aceitação dos processos vivenciados no contexto relacional. A adoção do referencial teórico aqui discutido demanda que estudantes sejam considerados pessoas inteiras, "não apenas intelectos"21
Não se trata, certamente, de reproduzir o ambiente psicoterapêutico no acadêmico, pois os processos educacionais implicam etapas e situações que não permitem essas vivências. Há, ainda, as restrições próprias do enquadre acadêmico, como a necessidade de avaliar de forma objetiva conteúdos e habilidades, independentemente das emoções e experiências dos estudantes. Caminham nesse sentido, inclusive, as críticas à proposta de Rogers para a educação, que levam alguns autores a considerarem-na irreal e utópica.17
Trata-se de considerar as atitudes necessárias aos docentes como elementos de reflexão, como orientadores da prática docente e inspiração para escolhas curriculares e metodológicas. São encontradas, na literatura brasileira sobre a formação médica, propostas coerentes com esses fundamentos 8,10,11,32,33 sem nomeá-los diretamente e, na literatura sobre a formação de profissionais de saúde, proposta de adoção das ideias de Rogers, de forma explícita31. Não se encontram, entretanto, estudos voltados para a análise da aplicação da teoria de forma sistemática. Tais estudos tem como elemento dificultador a necessidade da realização de experiências educacionais explicitamente e diretamente fundamentadas na psicologia humanista de Carl Rogers, as quais precisam ser assumidas em termos de orientação do Projeto Pedagógico de Curso ou, no mínimo, de um conjunto de disciplinas. Permanece, assim, o interesse pela realização de estudos capazes de avaliar os impactos provenientes dessas práticas.
A implementação da perspectiva educacional de Rogers na formação médica não depende exclusivamente dos docentes. Implica o estabelecimento de relações nas quais a autonomia seja fomentada mas também assumida pelos discentes. Encontra-se aí um outro campo de dificuldades, ocasionadas pela demanda, pelos próprios estudantes, de práticas educacionais fundamentadas na transmissão de conhecimento e na gestão dos processos centralizada no corpo docente. Essa postura pode ser explicada pelas vivências anteriores dos graduandos no sistema escolar e, também, pela necessidade de equilíbrio entre práticas que promovam reflexão, tomada de decisão e autonomia, e outras centradas no saber e na experiencia dos professores.
Todavia, de forma análoga às reflexões sobre o aspecto inovador da proposta de Carl Rogers para a psicoterapia, defende-se que as condições necessárias ao estabelecimento da Abordagem Centrada na Pessoa, acima explicitadas, podem funcionar como elemento balizador da formação médica, e que isso teria como consequência a facilitação da inserção dos estudantes nos processos de aprendizagem.
A possibilidade de fomentar os princípios da Abordagem Centrada na Pessoa e, consequentemente, da Aprendizagem Centrada na Pessoa, seria, assim, considerada um caminho a ser continuamente construído. Essa proposta pode facilitar a aprendizagem pelos estudantes das habilidades necessárias para as relações com os pacientes. Tal aprendizagem estaria baseada e seria efetivada pela vivência e crescimento pessoal, e não apenas pelo aprendizado teórico. Para isso é necessário considerar as experiências subjetivas na busca do conhecimento e possibilitar o exercício de habilidades sociais e a troca de experiências e crescimento mútuo na formação médica31,32,33.
CONCLUSÃO
Buscou-se neste trabalho apresentar a perspectiva teórica da Psicologia Humanista de Carl Rogers e discuti-la como possibilidade para a formação médica coerente com a formação humanista e empática preconizada pelas Diretrizes Curriculares Nacionais para o curso de Medicina. Empreendeu-se a apresentação de tal perspectiva teórica, explicitando seus fundamentos e as críticas a ela direcionadas, a fim de discutir possibilidades e limites de sua utilização na formação médica.
Conclui-se, a partir da reflexão teórica empreendida, que a teoria analisada pode contribuir para a superação das dificuldades de inserção dos temas humanísticos na formação médica. Considerando a dificuldade de efetivar alterações curriculares fundamentadas em uma teoria psicológica, entende-se que a Abordagem Centrada na Pessoa pode funcionar como orientação ou inspiração da prática docente e das atividades educacionais. Em temos metodológicos, as práticas baseadas na promoção da capacidade dos estudantes de identificar, expressar e refletir sobre seus próprios sentimentos em relação a diferentes situações vivenciadas durante a graduação em Medicina são as mais coerentes com a proposta. Igualmente, é pertinente às propostas de Carl Rogers a proposta de que os profissionais aceitem a si mesmos, e, portanto, também os estudantes sejam aceitos e aceitem-se em seus processos formativos, com as dificuldades e os dilemas no aprendizado da Medicina. Seguindo o caminho indicado, as disciplinas ligadas à Psicologia deverão fomentar oportunidades para o desenvolvimento, pelos graduandos, da capacidade de abrir-se ao outro, ouvir, compreender e aceitar as diferentes formas de pensar e viver. Um espaço a ser ocupado.
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