ISSN (on-line): 2238-3182
ISSN (Impressa): 0103-880X
CAPES/Qualis: B2
Esporotricose pulmonar em paciente imunocompetente: relato de caso
Pulmonary sporotrichosis in immunocompetent patient: case report
Isabela Dias Lauar1; Victor Adalberto Machado Nascimento1; José Eduardo Palacio Soares1; Marcelle Amaral de Matos1; Kathleen Emerick Paiva Faria1; Luiz Paulo Arreguy Nogueira2; Guilherme Cardoso Parreiras2
1. Universidade José do Rosário Vellano - UNIFENAS. Belo Horizonte, MG - Brasil
2. Hospital Júlia Kubitschek. Belo Horizonte, MG - Brasil
Victor Adalberto Machado Nascimento
E-mail: victoradmnasci@gmail.com
Recebido em: 03/05/2021
Aprovado em: 21/08/2021
Data de Publicação: 22/11/2021
Conflito de Interesse: Não há
Editor Associado Responsável: Alexandre Moura
Resumo
A forma extracutânea pulmonar da esporotricose, uma infecção causada por espécies geneticamente distintas de um fungo dimórfico do gênero Sporothrix, é rara, com poucos casos relatados na literatura. Trata-se de um caso de uma mulher de 55 anos, residente da região do Barreiro de Belo Horizonte/Minas Gerais, que buscou o serviço de infectologia de um hospital público de Belo Horizonte com história de emagrecimento, dispneia aos pequenos esforços, tosse crônica e calafrios vespertinos de três anos de evolução. Foi tratada para pneumonia bacteriana, em cinco ocasiões, sem melhora clínica. Apresentou tomografia computadorizada de tórax com cavitação residual e lesões escavadas pulmonares. A paciente foi internada com quadro de dispneia aos pequenos esforços, tosse e expectoração purulenta, sendo sua cultura de escarro positiva para Sporothrix spp. Foi instituído o tratamento padrão ouro para esporotricose pulmonar, inicialmente, com itraconazol, 200 mg, duas vezes ao dia, entretanto, após 10 meses, a melhora clínica e radiológica não foi satisfatória e optou-se pela internação a administração de anfotericina B complexo lipídico endovenosa 4 mg/kg/dia. Em menos de 1 mês a paciente apresentou piora do quadro e evoluiu a óbito, apesar de ter recebido 2g de dose acumulada de anfotericina
Palavras-chave: Infecções Pulmonares Fúngicas; Esporotricose; Infecções fúngicas.
INTRODUÇÃO
Esporotricose é uma infecção granulomatosa causada por espécies geneticamente distintas do fungo dimórfico do gênero Sporothrix, a qual pode se apresentar nas formas clínicas subaguda ou crônica e pode afetar animais e humanos1,2,3. Foi primeiramente descrita em 1898 por Benjamin Schenck, no Johns Hopkins Hospital em Baltimore, Estados Unidos4.
A forma extracutânea pulmonar é rara, com poucos casos relatados na literatura5. Alguns fatores de risco estão associados a essa forma da doença, principalmente, o tabagismo e imunossupressão6,7. De maneira geral, os pacientes apresentam uma boa resposta ao tratamento padrão-ouro com itraconazol, 200 mg, duas vezes ao dia, por 12 meses ou anfotericina B complexo lipídico endovenosa, 3 a 5 mg/kg/dia, por uma a duas semanas, seguida de itraconazol oral, 200 mg, por 12 meses.8,9,10,11,12. O presente relato trata de um raro caso de esporotricose pulmonar em uma paciente imunocompetente com falha ao tratamento padrão-ouro.
DESCRIÇÃO DO CASO
Paciente do sexo feminino, 55 anos, do lar, residente da região do Barreiro de Belo Horizonte/Minas Gerais, buscou o serviço de infectologia de um hospital público de Belo Horizonte com história de emagrecimento, dispneia aos pequenos esforços, tosse crônica e calafrios vespertinos com três anos de evolução. Em 2012, a paciente realizou uma tomografia computadorizada (TC) de tórax demonstrando lesão cavitária extensa em lobo superior direito, de paredes espessadas, e duas pequenas cavidades contralaterais associadas a bronquiectasias e espessamento peribrônquico bilateralmente (Figura 1.a). Tal exame foi realizado após achado incidental de cavitações pulmonares em radiografia de tórax realizada para avaliação pré-operatória para perineoplastia. Em 2015, apresentou TC de tórax com pulmões muito acometidos, com grande cavitação residual e lesões escavadas em pulmão esquerdo, principalmente em ápice (Figura 1.b). A investigação inicial desde essa época foi focada apenas para tuberculose com resultados negativos. Adicionalmente, apresentou sorologia para HIV negativa e hemograma com global de leucócitos sem alterações.
Relatou tratamento para pneumonia bacteriana, em cinco ocasiões, no início de 2017, sem melhora dos sintomas. A paciente não soube informar os fármacos utilizados nesse tratamento. Realizou vários exames de escarro com pesquisa de bacilos álcool-ácido resistentes (BAAR) negativo em todas as ocasiões. Negou contato com gatos e outros animais, exposição a jardins, hortas, pesticidas agrícolas, tratamento para dermatomicoses prévias, além de uso de qualquer tipo de corticoide ou outros imunossupressores. Afirmou também não ter outras comorbidades e não fazia uso de quaisquer medicações. Negou drogadicção e alcoolismo crônico e informou cessação de hábito tabágico há 5 anos, com carga tabágica de aproximadamente 35 anos-maço. Possuía condições adequadas de moradia em uma região com saneamento básico.
Foi internada em novembro de 2017, com queixa de dispneia aos pequenos esforços, tosse e expectoração purulenta. Inicialmente, foi aventada a possibilidade de infecção secundária em sequela pulmonar, com início do tratamento com piperacilina/tazobactam, 4g/500mg a cada 6 horas, não apresentando melhoras dos sintomas. Foram realizadas coletas de 4 amostras de escarro com pesquisa para tuberculose e fungos. A pesquisa de BAAR foi negativa em todas as amostras, assim como o teste rápido molecular para tuberculose. Em 2 amostras coletadas, a cultura para fungos foi realizada e houve crescimento de Sporothrix spp. Sorologia por imunodifusão radial dupla para histoplasmose e aspergilose também foram realizadas e resultaram negativas. Uma nova TC de tórax foi realizada e apresentou piora da lesão cavitária (Figura 1.c). Uma limitação deste relato é o fato de não ser possível verificar se a transmissão da doença foi zoonótica ou saprofítica, visto que a identificação molecular da espécie não foi obtida.
Após confirmação da esporotricose pulmonar por cultura, foi iniciado o tratamento com itraconazol 200 mg, duas vezes ao dia. A paciente evoluiu com boa tolerância ao tratamento instituído, com ausência de reações adversas ou hepatotoxicidade ao fármaco. A paciente relatou melhora da dispneia, do apetite, da expectoração e do estado geral após início da medicação tendo permanecido em acompanhamento ambulatorial com boa evolução clínica inicialmente. No entanto, após 10 meses de tratamento, a melhora clínica e radiológica não foi satisfatória e optou-se pela hospitalização e prescrição de anfotericina B complexo lipídico endovenosa, 4 mg/kg/dia. Após sete dias, a paciente apresentou piora súbita do padrão respiratório, com hipóteses de tromboembolismo pulmonar, exacerbação infecciosa ou progressão da doença, sendo iniciado antibioticoterapia com cloridrato de cefepima, 2g, a cada 8 horas e anticoagulação terapêutica com enoxaparina. A paciente foi encaminhada para a Unidade de Terapia Intensiva (UTI) e evoluiu a óbito após 11 dias por insuficiência respiratória.
O presente relato de caso foi aprovado pelo comitê de ética da Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (FHEMIG), através do parecer número 2.810.036.
DISCUSSÃO
A esporotricose é uma infecção fúngica subaguda ou crônica que afeta humanos e outros animais, causada por espécies geneticamente distintas do fungo dimórfico Sporothrix spp., entre elas: S. brasiliensis, S. schenckii, S. globosa, S. mexicana e S. luriei1,2, 3, 13. O fungo é encontrado em vegetação em decomposição, espinhos de rosa e solo rico em húmus, em todo o mundo, sendo a Ásia e as Américas as regiões com maior prevalência da doença1,2, 5, 13. No Brasil, atualmente há um surto em progressão associado ao S. brasiliensis, relacionado a exposição a gatos contaminados1.
A infecção geralmente é adquirida por inoculação cutânea traumática (arranhões de gatos infectados) e por contato com solo, plantas e matéria orgânica contaminada com o fungo5,8. Aparentemente a paciente em questão não apresentava nenhuma dessas exposições. O envolvimento subagudo e crônico da pele e tecidos subcutâneos é a manifestação mais comum de esporotricose em hospedeiros imunocompetentes8. Em pacientes com fatores de risco subjacentes (infecção pelo HIV, alcoolismo, diabetes mellitus, receptores de transplantes de órgãos e uso de medicamentos ou corticosteroides imunossupressores), pode ocorrer a forma disseminada da doença com apresentação visceral, osteoarticular, meníngea e pulmonar6,7. Este não era o caso da paciente relatada.
A forma disseminada da doença acomete cerca de 1% dos casos relatados de esporotricose e a disseminação ocorre via hematogênica, em especial em imunossuprimidos, como os infectados com o HIV5, quadro descartado na paciente em questão. A esporotricose pulmonar é adquirida via inalação de aerossol com conídios do solo e de vegetações1,7, havendo poucos casos relatados dessa condição na literatura10. Desde 1998, o Brasil vem apresentando um aumento do número de casos de esporotricose, a partir de um surto reconhecido inicialmente no estado do Rio de Janeiro que já se espalhou por vários estados, inclusive Minas Gerais14. Em 2016, ocorreu um surto de esporotricose na região do Barreiro em Belo Horizonte1, local no qual a paciente relatada vivia desde sua infância.
O acometimento pulmonar se relaciona a alguns fatores de risco como sexo masculino, doença pulmonar subjacente, alcoolismo, diabetes mellitus e imunossupressão6,7. Entre 1998 e 2015, foram registradas no Brasil 682 (87,2% do total) hospitalizações pela doença em 302 municípios (5,4% dos municípios do Brasil). Em 612 (89,7%), a esporotricose foi o diagnóstico primário, sendo 220 (35,9%) casos pela forma pulmonar14.
As infecções pulmonares podem ocorrer isoladamente como ocorre na esporotricose pulmonar primária ou no contexto de envolvimento de múltiplos órgãos, definida como esporotricose multifocal ou disseminada. A infecção pulmonar primária frequentemente exibe padrão cavitário, já a infecção multifocal se apresenta como uma doença não cavitária10. A esporotricose pulmonar também é classificada em tipo crônico e agudo. O tipo crônico é o mais comum, sendo geralmente assintomático em 98% das pessoas acometidas e apresenta-se com zonas cavitárias limitadas, como apresentado no caso, indistinguíveis da tuberculose, em que os casos sintomáticos se manifestam com pouca tosse, expectoração e pneumonia12.
O diagnóstico da esporotricose se faz por culturas de lesões exsudativas, fragmento de tecido, escarro e sangue, por exemplo, e são o padrão ouro para a definição da doença6,8,12,15. A cultura é muito sensível e o crescimento visível do Sporothrix spp. pode ser visto dentro de 1 semana. Nenhuma sorologia validada ou reação em cadeia da polimerase (PCR) é atualmente acessível para o diagnóstico9,12. O diagnóstico diferencial se faz com tuberculose pulmonar e outras infecções fúngicas crônicas7, como a histoplasmose12. A paciente realizou nove pesquisas de BAAR, teste molecular rápido para tuberculose, sorologia por imunodifusão radial dupla para histoplasmose e aspergilose, todas negativas.
O tratamento de escolha é itraconazol, e deve ser utilizado por 12 meses na dosagem de 200 mg, duas vezes ao dia, dependendo da gravidade da doença e se há recaída ou há envolvimento de tecido diferente da pele ou linfa, sendo a sua eficácia limitada na esporotricose pulmonar7,8,10,13. Em casos graves a anfotericina B complexo lipídico (3 a 5 mg/kg/dia) é recomendada como terapia inicial por 1 a 2 semanas, endovenosa, mas depende fortemente da gravidade da doença e da condição clínica do paciente, sendo seguida de terapia de consolidação com itraconazol oral por 12 meses7,8,10,13. Pacientes com alterações cavitárias podem se beneficiar de cirurgia de ressecção adicionalmente à terapia médica6,7.
A paciente relatada apenas apresentava história epidemiológica por viver em uma região na qual ocorreu um surto recente de esporotricose, entretanto, não apresentava história de exposição compatível com a suspeita diagnóstica da doença e não se enquadrava em grupos clássicos de risco para a sua manifestação pulmonar. Isso contribuiu para o atraso no diagnóstico da doença e, consequentemente, para a extensa destruição do parênquima pulmonar, apresentando, desta forma, um órgão terminal, o que provavelmente inviabilizou a recuperação da paciente.
CONCLUSÃO
Embora a forma extracutânea pulmonar da esporotricose seja rara, ela é um possível diagnóstico diferencial diante de um quadro de tosse, expectoração e pneumonia, associados a uma história de exposição favorável. Deve-se ressaltar que, mesmo em pacientes imunocompetentes e sem essa história de exposição típica, caso não apresentem uma boa resposta ao tratamento para os sintomas apresentados, essa doença deve ser aventada, pois, no contexto atual do surto de esporotricose no país, é muito importante que as equipes médicas estejam atentas a essa possibilidade diagnóstica, inclusive para formas extracutâneas da doença, para que se consiga realizar o seu reconhecimento e início do tratamento de forma precoce, contribuindo, desta forma, para o sucesso terapêutico dos pacientes.
COPYRIGHT
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CONTRIBUIÇÃO DOS AUTORES:
Todos os autores participaram de maneira significativa na concepção do estudo, na análise e interpretação dos dados, na elaboração, revisão e tradução do manuscrito.
Adicionalmente, o autor José Eduardo Palacio Soares também foi o responsável por responder os revisores e atualizar o manuscrito, quando solicitado.Por fim, a autora Isabela Dias Lauar foi responsável pela orientação e aprovação final do manuscrito.
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