RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 31 DOI: https://dx.doi.org/10.5935/2238-3182.v31supl.10.06

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Relato de Caso

A síndrome da exclusão social: a materialização da violação dos direitos humanos da infância à idade adulta

The social exclusion syndrome: the materialization of human rights violations from childhood to adulthood

Antônio Benedito Lombardi1; Joel Alves Lamounier2; Isabela de Alencar e Lombardi Godard3

1. Antônio Benedito Lombardi, Médico Pediatra e Psiquiatra Infantil. Doutor em Ciências da Saúde. Professor Adjunto (aposentado) da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG, Faculdade de Medicina, Departamento de Pediatria. Belo Horizonte, MG - Brasil. https://orcid.org/0000-0002-5730-1651
2. Joel Alves Lamounier, Professor Titular do Departamento de Pediatria da Universidade Federal de São João del Rei (UFSJ). Professor Titular (aposentado) do Departamento de Pediatria Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). https://orcid.org/0000-0002-0581-3217
3. Isabela de Alencar e Lombardi Godard, Médica, Cirurgiã do Pronto Atendimento do Hospital Life Center. Pós-graduanda em Cirurgia Plástica da Santa Casa de Misericórdia. Belo Horizonte, MG - Brasil. https://orcid.org/0000-0002-2978-4158

Endereço para correspondência

Nome: Isabela de Alencar Lombardi Godard
Endereço: Rua Piauí, 933/501. Bairro Funcionários
Belo Horizonte. Minas Gerais. CEP: 30150-320
E-mail: isabela.lombardi@hotmail.com

Resumo

Em 1998 foi publicado um artigo original que associava experiências adversas na infância tais como negligência, abuso físico, emocional, sexual, violência doméstica etc. com comportamentos de risco que surgem mais tarde na vida, por exemplo, abuso de cigarro, de álcool, de drogas etc. Nesse estudo verificou-se também que adversidades na infância estavam associadas com doenças detectadas no adulto, entre elas doenças cardiovasculares, hepatite viral, câncer de fígado, asma, doença pulmonar obstrutiva crônica, doenças autoimunes, problemas de saúde bucal e depressão etc. Estas experiências adversas ficaram conhecidas como ACEs (sigla em inglês). Estudos posteriores têm mostrado que as doenças acima poderiam ser explicadas pelos efeitos do estresse tóxico, uma resposta complexa do corpo, que surge quando uma criança é exposta às ACEs. Outros estudos, contudo, têm mostrado que ACEs não encontradas no estudo original capazes de causarem estresse tóxico podem também desencadear comportamentos de risco e doenças na vida adulta. São elas: pobreza, vitimização por colegas e rejeição, discriminação, exposição à violência na comunidade e racismo. Como estas ACEs foram achados frequentes em um estudo clínico sobre a exclusão social foi realizada uma releitura deste estudo. O objetivo deste artigo, portanto, é dar maior visibilidade a este quadro clínico, melhorando a compreensão, a sensibilização, contribuindo para a elaboração de intervenções e prevenções individuais e coletivas.

Palavras-chave: Exclusão social. Pobreza. Violência. Experiências adversas na infância. Estresse tóxico. Direitos humanos. Direitos da criança.

 

INTRODUÇÃO

O estudo original sobre experiências adversas na infância1 conhecida como ACEs (sigla em inglês) mostrou que vários comportamentos de risco para a saúde (fumar, abusar de álcool ou drogas, etc.), assim como doenças cardiovasculares, hepatite viral, câncer de fígado, asma, doença pulmonar obstrutiva crônica, doenças autoimunes, problemas de saúde bucal e depressão encontradas na idade adulta estavam associados às ACEs, entre elas, abuso físico, sexual e emocional, negligência física e emocional e disfunção familiar como a prisão de familiar, doença mental, abuso de substâncias, violência doméstica, separação dos pais ou divórcio. Tem sido mostrado que a ponte entre as ACEs e as doenças na idade adulta é o estresse tóxico 2,3,4 produzido pelas ACEs.

Outros estudos, contudo, têm mostrado que ACEs não encontradas no estudo1 da mesma forma capazes de causarem estresse tóxico podem também desencadear comportamentos de risco e doenças na vida adulta. São elas: pobreza5,6, vitimização por colegas e rejeição5,7, discriminação6,7, exposição à violência na comunidade5,7 e racismo8. Como estas ACEs foram muito frequentes no estudo clínico que descreveu a Síndrome da Exclusão Social9, o qual descreve os impactos da exclusão social sobre a saúde e desenvolvimento, um dos autores revisitou esse estudo desenvolvido em um aglomerado de vilas e favelas. Trata-se de um quadro que está em flagrante desacordo com os princípios da Declaração Universal dos Direitos Humanos10 e com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)11.

O objetivo deste artigo, portanto, é dar maior visibilidade a este quadro, melhorando a compreensão, a sensibilização, contribuindo para a elaboração de intervenções e prevenções individuais e coletivas. Desta forma, relatamos um caso para exemplificar a situação.

 

METODOLOGIA

Trata-se de uma revisão de conceitos e fundamentações importantes sobre o tema com a apresentação de um caso de síndrome de exclusão social9, com aprovação no COEP da UFMG, com obtenção de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

 

FUNDAMENTAÇÕES TEÓRICAS

O estudo sobre as Experiências Adversas na Infância1

Esse estudo1 inspirador analisou a associação das experiências adversas na infância-ACEs com os prejuízos na saúde e no desenvolvimento na idade adulta. ACEs são eventos traumáticos ou estressantes experimentados antes dos 18 anos de idade incluindo abuso físico, sexual e emocional, disfunção no lar ligada à prisão de um familiar, doença mental, abuso de droga, violência no lar, separação ou divórcio.

Neste estudo sete categorias de experiências adversas foram estudadas: abuso psicológico, físico, sexual; violência contra a mãe; membros da família usuários de drogas, doentes mentais, suicidas, aprisionados. O número de categorias de experiências adversas na infância foi então comparado com as avaliações de comportamento de risco, estado de saúde e doença1.

Mais de 50% dos que responderam o questionário relataram pelo menos uma, e 25% relataram duas ou mais categorias de exposições na infância. Foi detectado uma relação proporcional entre o número de categorias de exposição na infância e cada um dos comportamentos de risco para a saúde na idade adulta, assim como as doenças que foram estudadas. Pessoas expostas na infância, a quatro ou mais categorias de eventos adversos, comparadas com aquelas que não tinham experimentado nenhuma exposição, mostraram 4 a 12 vezes mais risco para o alcoolismo, abuso de drogas, depressão, tentativa de suicídio; 2 a 4 vezes aumento de tabagismo, autoavaliação de saúde ruim, 50 ou mais parceiros sexuais, doença sexualmente transmissível; e 1,4 a 1,6 vezes aumento em inatividade física e obesidade severa1.

O número de categorias de exposições adversas na infância mostrou uma associação com a presença de doenças na fase adulta incluindo doença cardíaca isquêmica, câncer, doença pulmonar crônica, fraturas ósseas, e doenças no fígado. Os autores encontraram uma forte associação entre a dimensão da exposição ao abuso ou disfunção familiar durante a infância e fatores de risco múltiplos para várias das principais causas de morte em adultos1. A pirâmide das experiências adversas apresentada no trabalho de Felitti et al.1 mostra os antecedentes deste desfecho.

Os autores1 propuseram uma estrutura conceitual explicativa para os achados baseada em mecanismos comportamentais compensatórios, porém, conforme destacado por Austin12, um conjunto de outras linhas de pesquisas têm explorado mecanismos biológicos subjacentes prejudiciais para a saúde. Esses estudos se referem aos efeitos do estresse que será apresentado a seguir.

Os estudos sobre o Estresse Tóxico2,3,4

As respostas fisiológicas ao estresse são bem definidas. As mais extensamente estudadas envolvem a ativação do eixo hipotálamo-pituitária-adrenocortical e do sistema simpático-adrenomedular, que resulta em níveis aumentados de hormônios do estresse, como o hormônio liberador de corticotropina (HLC), cortisol, norepinefrina e adrenalina. Essas alterações ocorrem com uma rede de outros mediadores, que inclui citocinas inflamatórias elevadas e a resposta do sistema nervoso parassimpático, que contrabalança a ativação simpática e as respostas inflamatórias. Aumentos transitórios desses hormônios do estresse são protetores e até essenciais para a sobrevivência, mas níveis excessivamente altos e exposições prolongadas podem ser bastante prejudiciais ou francamente tóxicos, e a desregulação desta rede de mediadores fisiológicos pode levar a um efeito de "desgaste" crônico em órgãos de vários sistemas incluindo o cérebro2,3,4. Neste sentido foi proposto uma classificação que compreende três tipos distintos de respostas ao estresse em crianças pequenas: positiva, tolerável e tóxica.

A forma mais perigosa de resposta ao estresse, o estresse tóxico, pode resultar da ativação forte, frequente ou prolongada dos sistemas de resposta do corpo ao estresse na ausência, por exemplo, de um relacionamento protetor e de apoio de um adulto. Entre os fatores de risco no estudo1 das ACEs estão incluídos, por exemplo, abuso ou negligência infantil, uso abusivo de substâncias pelos pais e depressão materna que são capazes de induzir uma resposta tóxica. A característica essencial desse fenômeno é a postulada disfunção dos circuitos cerebrais e de outros órgãos e sistemas metabólicos durante os períodos sensíveis de desenvolvimento. Tal disfunção pode resultar em alterações anatômicas e/ou desregulações fisiológicas que são os precursores de deficiências posteriores na aprendizagem e no comportamento, bem como as raízes de doenças físicas e mentais crônicas relacionadas ao estresse2,3,4.

Há evidências crescentes de estudos em animais e humanos de que níveis persistentemente elevados de hormônios do estresse podem afetar o desenvolvimento da arquitetura do cérebro. Por exemplo, foi demonstrado que a exposição a experiências estressantes altera o tamanho e a arquitetura neuronal da amígdala, hipocampo e córtex pré-frontal, além de levar a diferenças funcionais no aprendizado, memória e aspectos do funcionamento executivo2,3,4.

As manifestações biológicas de estresse tóxico podem incluir alterações na função imunológica e aumentos mensuráveis em marcadores inflamatórios, que são conhecidos por estarem associados a quadros clínicos tão diversos como doenças cardiovasculares, hepatite viral, câncer de fígado, asma, doença pulmonar obstrutiva crônica, doenças autoimunes, problemas de saúde bucal e depressão. Assim, o estresse tóxico na primeira infância, não é apenas um fator predisponente para comportamento de risco para a saúde, mas também pode ser uma fonte direta de lesão biológica ou de transtorno com consequências para toda a vida, independentemente de quaisquer circunstâncias que possam ocorrer mais tarde2,3,4.

Os estudos acima mostram que a ponte que liga as ACEs aos comportamentos de risco para a saúde e às doenças na idade adulta é o estresse tóxico produzido pelas ACEs.

Nos últimos anos, contudo, muitos trabalhos têm documentado que outras ACEs não detectadas no estudo original de Felitti1 podem também desencadear comportamentos de risco e doenças mais tarde na vida. São elas: pobreza5,6, vitimização por colegas e rejeição5,7, discriminação6,7, violência na comunidade5,7, racismo8. Como estas ACEs foram achados muito frequentes no estudo que descreveu a Síndrome da Exclusão Social9 realizado em um aglomerado de vilas e favelas um dos autores deste artigo decidiu revisitar este estudo resumido a seguir.

O estudo da Síndrome da Exclusão Social9

Este estudo iniciou-se nos atendimentos no ambulatório de psiquiatria infantil, realizados por Lombardi13 onde destacavam-se as dificuldades escolares e apontava para a necessidade de maior aproximação da assistência pediátrica com a comunidade e o ambiente escolar. Neste contexto, entretanto, foi observado que a problemática que a população local enfrentava era mais complexa e que as dificuldades escolares eram apenas um dos sintomas.

Uma das perguntas formuladas foi: quem eram aquelas crianças que eram reprovadas e deixavam a escola tão precocemente? Verificou-se através de um estudo descritivo e exploratório13 que as crianças ingressavam na primeira série do ensino primário com as seguintes características:

• Histórico de exposição muito precoce a uma diversidade de fatores de risco biopsicossociais agudos e crônicos;

• as crianças estavam multiplamente impactadas na sua saúde (1990),

• a grande maioria das crianças da amostra estava "fracassando" na escola (1993).

Uma extensão deste estudo inicial avaliou estas crianças 18 anos após, em 2008, e o quadro encontrado foi denominado "Síndrome da Exclusão Social"9 sintetizada assim:

"A prática da ideologia excludente no Brasil produz a exclusão social caracterizada pela pobreza, miséria e desigualdade social. Estas adversidades, por si só, são acompanhadas de múltiplos outros fatores de risco os quais afetam o indivíduo em todos os períodos do ciclo de vida causando muitas vezes, de forma cumulativa, impactos biopsicossociais. A saúde física e psíquica, a escolaridade e formação profissional são afetadas, resultando muitas vezes, em inclusão social frágil ou mesmo exclusão definitiva como a morte precoce. Este resultado final, fruto da interação do impacto multissistêmico progressivo sobre o sujeito com os fatores externos adversos perpetuadores, contribui para a persistência do fenômeno impedindo que o sujeito se liberte desse ciclo perverso mantido pela violação dos direitos humanos".

Segundo Bee14 para se compreender quadro complexo como este era necessário examinar, além da subjetividade das díades mãe-criança ou pai-criança, toda a ecologia de desenvolvimento - o padrão de interação na família e as influências da cultura mais ampla sobre aquela família. Neste sentido, Bronfenbrenner15, autor da teoria bioecológica, propõe pensar o sistema ecológico onde se insere a criança como tendo uma série de círculos concêntricos. O círculo mais central, denominado microssistema, inclui todos aqueles ambientes em que a criança vive experiências diretas, como a família, a escola, a creche ou o ambiente em que um adolescente trabalha. A camada seguinte, chamada exossistema, inclui toda uma gama de elementos do sistema que a criança não experiência diretamente, mas que a influenciam, porque afeta um dos microssistemas, sobretudo a família. O trabalho dos pais e o seu local de trabalho são um desses elementos, assim como sua rede de amigos. Por fim, o macrossistema que inclui o ambiente cultural ou subcultural mais amplo em que tanto o micro como o exossistema estão inseridos. A pobreza ou a riqueza da família, o bairro onde ela mora, sua identidade étnica e a cultura mais ampla em que se insere o sistema inteiro são partes desse macrossistema. O complexo de sistemas encaixados, interconectados, é considerado como uma manifestação de padrões globais de ideologia e organização das instituições sociais comuns a determinada cultura ou subcultura. Esses padrões generalizados são referidos como macrossistema. Para Bronfenbrenner15 existe uma outra camada, chamada mesossistema que inclui as inter-relações entre dois ou mais ambientes nos quais a pessoa em desenvolvimento participa ativamente tais como para uma criança, as relações em casa, na escola e com amigos da vizinhança. Por fim deve-se acrescentar o cronossistema que representa o relacionamento desses sistemas com a dimensão do tempo.

Por último, Bandin16 e Garbarino17 acrescentam a influência dos fatores de risco no desenvolvimento humano. Estes podem ser encontrados nas camadas do sistema ecológico. Estes fatores de risco podem predispor os sujeitos às ACEs e ao estresse tóxico. A seguir será apresentado um caso desse estudo.

 

RELATO DE UM CASO DE SÍNDROME DE EXCLUSÃO SOCIAL

Esse estudo aconteceu em três momentos. Em 1990 (1º momento)13, 1993 (2º momento)13 e 2008 (3º momento)9

1º momento:

Em 1990 foram selecionados aleatoriamente 39 crianças entre as 465 que cursavam a 1ª série do ensino fundamental de uma escola localizada em um aglomerado de vilas e favelas. A idade média da amostra examinada era de 8 anos e 3 meses. EBS, registro número 9 da amostra, foi uma das 39 crianças examinadas.

Partindo-se do pressuposto de que as crianças examinadas apresentariam simultaneamente alterações físicas, psíquicas e sociais foi utilizado o Esquema Multiaxial de Rutter18 para a sistematização dos achados. Por meio deste esquema, os achados foram alocados em cinco eixos. O eixo I para as Síndromes Psiquiátricas Clínicas, o eixo II para os Transtornos Específicos do Desenvolvimento, o eixo III para os achados relacionados ao quociente intelectual, o eixo IV para as condições médicas e finalmente o eixo V para situações psicossociais anormais associadas.

Primeiramente obteve-se informações sobre a história pregressa e a seguir a criança foi examinada.

Dados da história pregressa: E.B.S., 8 anos e 7 meses (o informante - pai - ficou em dúvida a respeito da data de aniversário), moreno, masculino, cursando a antiga 1ª série, do curso primário. O pai informou que a criança nasceu prematura, permanecendo hospitalizada após o nascimento por cerca de 2 semanas, e relatou que a criança "purga" o ouvido. Há histórico também de falecimento de 2 irmãos da criança. Mãe G5P4A1, a criança não frequentou creche/pré-escola.

Dados da avaliação clínica.

Perfil biopsicossocial utilizando como referência o Esquema Multiaxial18.

Eixo I - (Síndromes psiquiátricas clínicas): transtornos emocionais específicos da infância e adolescência: tristeza; irritabilidade; inibição. Sugestivo de transtorno de conduta não classificado em outro local - gazeta.

Eixo II - (Transtornos específicos do desenvolvimento): transtorno (atraso) misto do desenvolvimento: leitura; aritmética; coordenação motora fina; fala e linguagem.

Eixo III - Quociente intelectual: não avaliado.

Eixo IV - (Condições médicas): pediculose; linfonodos aumentados de tamanho; otite média crônica supurada à esquerda com suspeita de déficit auditivo; suspeita de parasitose intestinal (dor abdominal); conjuntivite; cárie dentária; verruga vulgar; discreta escoliose à esquerda.

Eixo V - (Situações psicossociais anormais associadas): transtornos mentais em outros membros da família: pai com histórico sugestivo de alcoolismo, irritabilidade; mãe com relato de "desmaios" e irritabilidade, história sugestiva de alcoolismo. Relacionamento intrafamiliar discordante: discussão entre os pais. Estímulo social, linguístico ou perceptivo inadequados: pais com baixa escolaridade; uma irmã da criança com histórico de uma repetência escolar. Condições de vida inadequadas: miséria; aglomeração; fossa; luz (emprestada do vizinho); lixo exposto. Estresses ou transtornos na escola ou ambiente de trabalho: criança com baixo rendimento escolar e tem faltado às aulas. Migração ou deslocamento social: família tem mudado frequentemente de endereço. Outro estresse psicossocial intrafamiliar: pai relata ter hipertensão arterial (sem tratamento); pai com dentes em péssimo estado de conservação. Família residia em uma favela.

2ª momento:

Verificação da escolaridade: EBS estava com 11 anos e não estudava mais. A mãe relatou que o filho iria estudar mais tarde se achasse necessário.

3ª momento:

Esse momento aconteceu 18 anos após o primeiro contato com EBS. Dos 39 sujeitos que participaram do estudo de 1990 foram localizados 28 sendo que 26 aceitaram participar das entrevistas. Através da entrevista procurou-se conhecer aspectos da vida dele desde a infância até o momento da entrevista. EBS estava com 26 anos e preso na Penitenciaria Jose Maria Alkimin há aproximadamente 5 anos. Deveria cumprir uma pena de 11 anos.

A entrevista aconteceu em um salão de reuniões acompanhada à distância por um segurança da direção da penitenciaria. EBS estava algemado e assim permaneceu durante todo o tempo. Estava muito ansioso, praticamente não conseguia falar nos primeiros instantes. A seguir, no quadro 1, estão expostos alguns trechos da entrevista, transcritos ipsis litteris.

 

 

DISCUSSÃO

Trata-se de um caso emblemático. EBS desde a gravidez foi exposto a uma multiplicidade de ACEs1,5,6,7,8 ligadas ao tempo e ao espaço do sistema ecológico onde vivia. Pode-se citar a pobreza extrema, o alcoolismo materno e paterno, a violência familiar, as doenças físicas dos pais, os sintomas de doenças psíquicas dos pais, a negligência física e emocional sofrida por EBS na família e na escola, a alta vulnerabilidade do local de residência conhecido na época do estudo como área de violência, com consumo e tráfico de drogas e, por último, o relato de um confronto violento com a polícia, a hospitalização devido aos inúmeros ferimentos e, por fim, a prisão. As referências teóricas da ocasião contribuíram para explicar os sintomas físicos, psíquicos e sociais apresentados por EBS.

É preciso, contudo, ir mais além. Sabe-se que as ACEs relacionadas acima são capazes também de produzirem doenças porque desencadeiam estresse tóxico e comportamentos de risco. Por sua vez, os meios pelos quais o estresse tóxico produz as doenças estão ligados ao que este estresse grave provoca estruturalmente e funcionalmente no corpo do sujeito como mostrado por Shonkoff et al.2 e McEwen et al.3. Como foi visto níveis persistentemente elevados de hormônios do estresse podem afetar o desenvolvimento da arquitetura do cérebro, porque podem alterar o tamanho e a arquitetura neuronal da amígdala, hipocampo e córtex pré-frontal, além de levar a diferenças funcionais no aprendizado, memória e aspectos do funcionamento executivo2,3,4.

As manifestações do estresse tóxico podem incluir alterações na função metabólica e imunológica e aumentos mensuráveis em marcadores inflamatórios, que são conhecidos por estarem associados a quadros clínicos tão diversos como doenças cardiovasculares, hepatite viral, câncer de fígado, asma, doença pulmonar obstrutiva crônica, doenças autoimunes, problemas de saúde bucal e depressão além de aumento na frequência da adoção de comportamentos de risco para a saúde2,3,4.

Assim, os achados do caso, de acordo com as fundamentações teóricas citadas conduzem a formulação de algumas hipóteses para contextos de exclusão social. São elas:

• muitos fatores de risco e ACEs ocorrem, ao mesmo tempo, em muitas ou em todas as camadas do complexo sistema ecológico humano;

• existe uma maior prevalência de ACEs nessa população;

• os indivíduos apresentam uma frequência maior de comportamentos de risco para a saúde;

• existe uma prevalência maior de doenças associadas às ACEs e ao estresse tóxico;

• marcadores biológicos associados às ACEs são detectados com maior frequência desde a infância;

• muitas doenças afetando adultos têm raízes profundas na infância;

• a mortalidade é mais precoce e mais prevalente nesta população;

• as intervenções devem ser multidimensionais.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Antes de finalizar é importante destacar que ACEs podem atingir qualquer classe social, entretanto, no ambiente de exclusão social os dados sugerem impactos de dimensões preocupantes para a saúde pública.

Deve-se chamar a atenção, portanto, para a responsabilidade dos pediatras por se tratar de doenças graves que afetam o adulto, mas que, se iniciam na infância, portanto, demandando ações preventivas e intervenções precoces.

Ao nível da atenção primária, intervenções voltadas para o enfrentamento das ACEs e do estresse tóxico devem ser consolidadas juntamente com as práticas preventivas de imunização, de incentivo ao aleitamento materno, de orientação alimentar, de acompanhamento do crescimento e desenvolvimento e de prevenção de acidentes.

As universidades, as sociedades médicas especialmente as de pediatria, têm um papel de liderança, não apenas contribuindo na formação dos médicos e pediatras em relação à temática das ACEs e do estresse tóxico, mas também de catalisar movimentos e iniciativas. É importante a divulgação do tema para a sociedade como um todo. As consequências podem ser graves, com implicações para a saúde, bem-estar, desenvolvimento físico e mental das crianças e adolescentes. As repercussões em períodos posteriores do ciclo de vida, inclusive a morte precoce, podem surgir e todos devem agir precocemente e contribuir para que o ciclo da violência e do processo de exclusão não se perpetue.

 

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