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CAPES/Qualis: B2
Angioedema hereditário estrógeno-dependente desencadeado pelo uso de anticoncepcional oral
Hereditary estrogen-dependent angioedema triggered by the use of oral contraceptives
Ana Campos Pires1; Beatriz Martins Guerra Pantuza Almeida2; Giovanna Gontijo Alves de Sousa Ohana3; João Pedro Santana Vieira4; Raquel Pitchon dos Reis5
1. Acadêmica da Faculdade Ciências Médicas de Minas Gerais, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. ORCID: 0000-0001-8779-5325
2. Acadêmica da Universidade de Itaúna, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. ORCID: 0000-0002-2437-9022
3. Acadêmica da Universidade de Itaúna, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. ORCID: 0000-0002-5460-7399
4. Acadêmico da Universidade de Itaúna, Minas Gerais, Divinópolis, Minas Gerais, Brasil. ORCID: 000-0001-8673-3501
5. Professora de Medicina da Faculdade de Medicina Ciências Médicas de Minas Gerais e especialista em Pediatria, Alergia e Imunologia, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. ORCID: 0000-0002-6581-2187
Ana Campos Pires
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Resumo
INTRODUÇÃO: Angioedema hereditário (AEH) é uma condição autolimitada, que usualmente se manifesta por episódios súbitos e recorrentes de edema não inflamatório acometendo a pele e/ou mucosas com possível envolvimento de múltiplos órgãos, especialmente o trato gastrointestinal e as vias aéreas superiores. É um distúrbio genético autossômico dominante, ainda subdiagnosticado por profissionais da área de saúde. A doença pode ser dividida em três tipos: 1) AEH com deficiência quantitativa do inibidor de C1(C1-INH), 2) com disfunção de C1-INH e 3) AEH com C1-INH normal. OBJETIVOS: descrever um caso de angioedema hereditário com C1-INH normal estrogênio dependente, associado à mutação do fator XII e repercussões clínicas e psicossociais. MÉTODOS: As informações foram obtidas por análise do prontuário, entrevista com a equipe médica e com a paciente associada a uma revisão narrativa da literatura. DESCRIÇÃO DO CASO: adolescente de 19 anos com angioedema recorrente de lábio superior e inferior por 2 anos. Fazia uso de prednisolona e anti-histamínico durante as crises sem melhora dos sintomas. A propedêutica revelou uma mutação do éxon 9 do fator XII com dosagens do complemento 4 e do inibidor de C1 normais. CONCLUSÕES: O AEH com C1-INH normal, afeta principalmente mulheres e se associa com níveis altos de estrógeno por sua administração exógena ou gravidez. Após suspeita diagnóstica a investigação inclui avaliação de parâmetros bioquímicos e se necessário, análise genética. A educação dos profissionais da área da Saúde, dos pacientes e seus familiares é fundamental para o melhor reconhecimento e manejo da doença.
Palavras-chave: Angioedema Hereditário. Fator XII. Angioedema.
INTRODUÇÃO
O angioedema hereditário (AEH), foi primeiramente descrito por Quincke em 1882,1 enquanto Osler estabeleceu a sua natureza hereditária em 1888.2 É um distúrbio genético caracterizado por episódios recorrentes de edema da derme profunda, tecido subcutâneo ou submucosa com possível envolvimento de múltiplos órgãos, especialmente trato gastrointestinal e vias aéreas superiores. Os pacientes, que não são adequadamente tratados durante as crises agudas, podem evoluir para o óbito em 30% a 50 % dos casos, principalmente por asfixia secundária ao angioedema da laringe.3
As causas desencadeadoras de angioedema hereditário e idiopático incluem as alérgicas, autoimunes, induzidas ou exacerbadas por drogas, como os anti-inflamatórios não esteroides. O AEH representa uma minoria dos casos, no entanto nos últimos anos, novos subgrupos de pacientes têm sido descritos tornando o diagnóstico da doença mais frequente. Apenas 75 anos após a descrição da doença por Quincke, a primeira alteração bioquímica, a deficiência do inibidor de C1 (C1-INH) foi identificada. A importância da via da bradicinina também foi demonstrada (figura 1), assim como a mutação do gene codificador da proteína inibidora de C1, localizada no braço longo do cromossomo 11. O C1 INH é uma proteína reguladora, produzida, sobretudo, nos hepatócitos responsável pela inibição de C1 que tem como principais funções o controle das vias de ativação do sistema calicreína-cinina, do sistema de contato (calicreína e fator XII), da coagulação e fibrinolítico (plasmina e ativador do plasminogênio tecidual). A ausência de inibição dessas cascatas não se associa com alterações significativas na resposta imune, coagulação e fibrinólise. Mas relaciona-se com o aumento da bradicinina, que através do seu receptor beta 2, aumenta a permeabilidade vascular, com vasodilatação, contração do músculo liso não vascular e consequente edema.4
A fisiopatologia do angioedema hereditário, apesar de não completamente conhecida, envolve a deficiência ou disfunção do Inibidor de C1 na via de ativação do complemento, cinina/plasmina e da coagulação. A ausência ou redução da atividade inibitória do inibidor de C1, destacado em azul, ┬ , nessas cascatas resultarão entre outros fenômenos na ativação da bradicinina, vasodilatador potente e um dos principais mediadores da doença.
As principais causas de angioedema estão apresentadas na Figura 2. O AEH é dividido em três tipos: 1) AEH com deficiência quantitativa do C1-INH, 2) AEH com disfunção de C1-INH e 3) AEH com C1-INH normal. Este se subdivide em outras duas categorias: com mutação do gene do Fator XII da coagulação (FXII) e de origem desconhecida,5 (figura 1). O caso apresentado é classificado como AEH com C1-INH normal e mutação do gene do Fator XII da coagulação (FXII), anteriormente classificado como tipo III e se manifestou durante a adolescência, o que é raro, já que a maioria dos casos são descritos em mulheres na vida adulta.
DESCRIÇÃO DO CASO
Uma adolescente, 19 anos, procurou atendimento médico com crises recorrentes de angioedema nos lábios superior e inferior iniciado há 2 anos (figura 2). Não apresentava dor, calor ou rubor locais e afirmava sensação de desconforto. Não referia quadro de urticária concomitante. Anteriormente relatava que o intervalo entre as crises era de 90 dias. No entanto, nos últimos meses houve uma redução da periodicidade, com repetição do quadro a cada 30 dias. (Figura 3)
O tempo médio de duração dos episódios era de três dias e a adolescente expressava sensação de angústia, ansiedade e incapacidade de realizar suas atividades sócio-laborais devido à alteração da estética facial. Referia a presença de dor abdominal concomitante e ocorrência de vômitos durante as crises, porém negava alterações respiratórias e febre.
Durante os episódios foi atendida em Unidades de Pronto Atendimento, onde geralmente eram prescritos anti-histamínicos e prednisolona, sem melhora dos sintomas.
Referia início do uso de anticoncepcional oral composto por drospirenona e etinilestradiol há 4 meses e apresentava história pregressa de rinite alérgica, asma leve e episódios esparsos de urticária aguda. Negava desencadeamento dos sintomas após ingestão de alimentos ou por outros medicamentos.
Ao exame físico apresentava ótimo estado geral, angioedema grave de lábios e dolorimento abdominal difuso à palpação durante as crises. Não foram identificadas alterações respiratórias ou cardiovasculares.
Paciente foi submetida à propedêutica. As dosagens do complemento 4 e inibidor de C1 foram normais. A análise do ÉXON 9 do gene F12, que codifica o fator XII da coagulação, detectou uma variante patogênica de acordo com os bancos de dados. A alteração c.983>A promove a substituição do aminoácido treonina por um aminoácido lisina na posição 328 da proteína. Os estudos funcionais dessa variante mostraram que ela se associa à perda de glicosilação e ao aumento de vazamento microvascular por contato.
Após a confirmação do diagnóstico, foi indicada a inserção do dispositivo intrauterino (DIU) com levonorgestrel como método contraceptivo e suspensão do anticoncepcional oral combinado. Atualmente a paciente está há três anos sem apresentar crises, sem queixas ou manifestação de angioedema.
DISCUSSÃO
A história clínica e o exame físico são componentes importantes para o diagnóstico do AEH. As queixas relatadas, em geral, são de episódios de início súbito e recorrentes de edema envolvendo a derme e por vezes diversos órgãos, não associado à urticária, prurido, dor ou queimação local. As áreas mais comumente afetadas são: face, extremidades, genitália, orofaringe, laringe e o sistema digestório.6 As manifestações na laringe podem provocar dispneia e dificuldade respiratória, já no sistema digestório induzem a dor abdominal e diarreia, sendo muitas vezes confundido equivocadamente com abdome agudo.7
Embora as manifestações clínicas do AEH com C1-INH normal sejam semelhantes às de outros tipos de AEH, o início dos sintomas ocorre geralmente na segunda década de vida.8 Porém, quando presente na infância, os primeiros sintomas aparecem em média aos 4 e 12,5 anos e o curso da doença tende a ser mais benigno.4 Na adolescência, o aumento da atividade da doença foi associado aos ciclos menstruais, ao aumento fisiológico do estrógeno nesse período e à utilização de contraceptivos orais contendo estrogênio, como foi relatado nesse caso. Uma característica marcante do AEH com C1-INH normal é o seu predomínio no sexo feminino e a associação aos níveis elevados de estrogênio, por administração exógena ou gravidez. A história familiar de angioedema auxilia no diagnóstico de AEH, mas pode estar ausente em até um quarto dos casos.8
Apesar da fisiopatologia da doença não estar completamente esclarecida, o AEH com C1-INH normal, em geral, se relaciona com o desencadeamento das crises por altos níveis de estrógeno. Os eventos mais frequentemente envolvidos são o uso de anticoncepcionais orais, terapia de reposição hormonal contendo estrógenos e ocorrência da gravidez.9
O diagnóstico baseia-se em uma anamnese cuidadosa e exame físico completo, associados a dosagem sérica dos parâmetros bioquímicos. Os níveis séricos de C4 podem ser utilizados como teste de triagem, tendo em vista que a deficiência quantitativa e/ou qualitativa de C1-INH conduz à ativação do sistema de complemento, resultando no consumo de C4, mesmo quando os pacientes estão fora do período de crise de angioedema. Além da dosagem dos níveis séricos de C4, deve ser realizada a avaliação quantitativa e funcional de C1-INH.10
AEH com C1-INH normal pode se relacionar a mutações no gene que codifica o FXII em um subgrupo de pacientes (AEH-FXII). No entanto, numa porcentagem significativa dos casos, o defeito genético ainda é desconhecido. Salientamos que não é recomendável usar mais o termo AEH tipo III, pois essa forma de AEH não está associada à deficiência de C1-INH.11
O diagnóstico da paciente descrita foi determinado pelos critérios clínicos do AEH, uma vez que foi apresentado um angioedema subcutâneo não inflamatório, de duração superior a 12 horas, e dor abdominal, de mais de 6h de duração, de origem orgânica indefinida. Os níveis de C1-INH estavam normais, mas foram detectadas mutações no gene que codifica o FXII.
Em casos de diagnóstico indefinido, ou para fins de investigação, a análise de SERPING1, o gene codificador do C1-INH, pode ser realizada. No que se refere ao AEH com C1-INH normal, já foram identificadas mutações no gene do FXII em uma parcela dos pacientes. O sequenciamento genético pode também detectar duas mutações missenses diferentes, localizadas no éxon 9 e posteriormente foram identificadas outras mutações.11
A educação e a orientação são ações importantes no tratamento do angioedema hereditário, para melhorar a qualidade de vida do paciente e seus familiares.12 A identificação e eliminação de fatores desencadeantes como estresse e o trauma reduzem o risco de crises. Todos os familiares de primeiro grau dos pacientes devem ser rastreados e os portadores devem receber aconselhamento genético.13
A farmacoterapia é instituída de acordo com a frequência, gravidade e impacto na qualidade de vida e dividida em três modalidades: profilaxia em longo e curto prazo além do tratamento das crises agudas.
Em relação a profilaxia de longo prazo podem ser utilizadas três classes de medicamentos: andrógenos atenuados, agentes antifibrinolíticos e concentrado de C1-INH derivado de plasma (pdC1-INH). O tratamento de escolha é o andrógeno atenuado, que no Brasil tem o Danazol como representante, porém pode ser contraindicado em casos de gravidez, na faixa etária pediátrica já que está associado ao fechamento prematuro da placa epifisária de crescimento. A profilaxia de curto prazo é indicada para pacientes com risco de angioedema de vias aéreas superiores que serão submetidos a cirurgias, e tem como principais agentes os concentrados de pdC1-INH, andrógenos atenuados e plasma fresco congelado. A medicação de escolha nesse caso é o concentrado de pdC1-INH, que pode ser utilizado em crianças e mulheres grávidas.4
Episódios de AEH que não recebem tratamento específico duram geralmente de 48 a 72 horas e não melhoram com anti-histamínicos, corticosteróides ou epinefrina.14 Embora muitas das crises ocorram espontaneamente, foram identificados diversos fatores desencadeadores: trauma, exercício, estresse, infecção, menstruação e consumo de álcool.
O tratamento das crises deve ser realizado de acordo com a gravidade, utilizando três tipos de medicamentos, que agem inibindo a síntese de bradicinina, entre eles podemos citar: concentrado do pdC1-INH e Icatibanto (ambos disponíveis no Brasil e aprovados para uso em pacientes de 12 e 18 anos de idade, respectivamente) e Ecallantide.4 Ao contrário da profilaxia, os antifibrinolíticos e andrógenos não podem ser usados no manejo das crises agudas, por apresentarem demora no início da ação. É importante ressaltar que disfagia e rouquidão são sinais de alarme e podem representar o início do angioedema da laringe. Os corticoides e anti-histamínicos, ao contrário dos casos de angioedema hereditários clássicos, não funcionam para o AEH estrógeno dependente. 9
No caso apresentado ocorreu o controle completo das crises após suspensão da administração exógena do estrogênio e não foi necessária a implementação de profilaxia medicamentosa, fato observado por outros autores.15
CONCLUSÃO
O angioedema hereditário com níveis normais de C1-INH e estrógeno-dependente é raro16, especialmente na adolescência, mas teve um aumento de casos descritos nos últimos anos com aprimoramento do conhecimento e abordagem da doença. O presente relato colabora para alertar os profissionais de saúde para essa doença que ainda é subdiagnosticada e associada à mortalidade e comprometimento da qualidade de vida. A educação das Equipes de Saúde, dos pacientes e seus familiares é fundamental para o melhor reconhecimento, abordagem e manejo da doença.
REFERÊNCIAS
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