ISSN (on-line): 2238-3182
ISSN (Impressa): 0103-880X
CAPES/Qualis: B2
Corticosteroides para os pacientes com atresia biliar submetidos a Hepatoportoenterostomia de Kasai
Corticosteroids for patients with biliary atresia undergoing Kasai Hepatoportoenterostomy
Thaís Costa Nascentes Queiroz; Marcus Vinícius Gonçalves Moreira; Adriana Teixeira Rodrigues; Maria do Carmo Barros de Melo; Eleonora Druve Tavares Fagundes; Alexandre Rodrigues Ferreira
Hospital das Clínicas, Faculty of Medicine, Federal University of Minas Gerais, UFMG, Belo Horizonte, Minas Gerais
Endereço para correspondênciaThaís Costa Nascentes Queiroz, MD
Hospital das Clínicas, Federal University of Minas Gerais, HC-UFMG
Avenida Alfredo Balena, 110, 6th floor
Belo Horizonte, Minas Gerais, Zip Code: 30130-100
Email: thaisqueiroz@gmail.com
Conflicts of interests All authors declare that they have no conflicts of interest
Authors' contributions All authors equally contributed to this article. MVGM and TCNQ wrote the text. TCNQ, ATR, MCBM, EDTF and ARF conceptualized the study, made general supervision and revised the manuscript. TCNQ submitted the final version of the manuscript, which was approved by all authors
Resumo
Introdução: Atresia de Vias Biliares (AVB) é a causa mais comum de cirrose com doença hepática terminal na infância e a principal indicação de transplante hepático pediátrico no mundo. O tratamento atualmente disponível é a hepatoportoenterostomia (HPE) de Kasai, que é uma cirurgia paliativa e apresenta resultados variáveis. Frente a isso, torna-se necessário a busca por terapias adjuvantes na tentativa de melhorar seus resultados. Entre elas está o uso de corticoides, que devido as suas supostas propriedades anti-inflamatórias, imunomoduladoras e coleréticas, são usados para melhorar a drenagem biliar e a sobrevida com fígado nativo. O objetivo deste estudo é realizar revisão integrativa da literatura sobre a eficácia do uso de corticoide como terapia adjuvante no pós-operatório de HPE de Kasai em pacientes com AVB. Metodologia: Pesquisa realizada em todas as bases de dados disponíveis no Portal Capes por artigos em inglês publicados nos últimos 20 anos (até dezembro de 2020). Resultados: Foram selecionados 15 artigos, sendo 2 RCTs. A maioria dos estudos bem desenhados e conduzidos ainda não conseguiu demonstrar evidências que apoiem o uso de corticoides no pós-operatório da HPE de Kasai em relação à melhora da icterícia e sobrevida com fígado nativo. Além disso, alguns estudos verificaram efeitos adversos importantes que precisam ser levados em consideração antes de prescrevê-los. Conclusão: Não existem evidências, até o momento, para o uso do corticoide no pós-operatório da HPE de Kasai, uma vez que não é comprovado benefício de melhora na sobrevida com fígado nativo ou na drenagem biliar. Além disso, efeitos adversos graves e interferência no crescimento são relatados.
Palavras-chave: Atresia Biliar. Quimioterapia Adjuvante. Corticosteroides.
INTRODUÇÃO
A atresia de via biliar (AVB) é uma afecção rara, congênita e exclusiva da infância. Ela é o resultado de um processo inflamatório que obstrui a luz dos ductos biliares intra e extra-hepáticos levando a cirrose terminal nas crianças afetadas.1
Os recém-nascidos e lactentes com a doença apresentam icterícia (hiperbilirrubinemia direta), fezes hipocólicas / acólicas e colúria. A presença de hepatomegalia, failure thrive, prurido e coagulopatia depende do nível de progressão da doença.1,2 O tratamento atualmente disponível para AVB é o manejo cirúrgico com a hepatoportoenterostomia (HPE) de Kasai. Tal procedimento consiste na ressecção dos ductos biliares extra-hepáticos obstruídos e uma alça do intestino é levada até o fígado na tentativa de restabelecer o fluxo biliar (anastomose jejunal em Y-de-Roux para o porta hepatis).1,3 Se a HPE não for realizada em tempo hábil, ocorre a progressão da fibrose, com insuficiência hepática e óbito em um ano de vida em 50% a 80% das crianças e até os três anos em 90% a 100% dos pacientes. Para os pacientes que não foram submetidos à cirurgia ou para aqueles em que a mesma fracassou, o transplante hepático torna-se a única alternativa.4 Mesmo quando a portoenterostomia for bem-sucedida, a maioria evolui com cirrose hepática e apenas 20% sobrevivem até os 20 anos sem o transplante.5 Frente a isso torna-se necessário a busca por opções terapêuticas paralelas ao procedimento cirúrgico na tentativa de melhorar o desfecho desses pacientes.
Terapias adjuvantes na tentativa de melhorar os resultados tem sido propostas, entre elas está o uso de corticoides devido as suas supostas propriedades anti-inflamatórias, imunomoduladoras e coleréticas, visando melhorar a drenagem biliar e a maior sobrevida com fígado nativo.2 Diante da gravidade do quadro de AVB e as possíveis consequências para os pacientes é necessário estabelecer protocolos baseados em evidência científica como forma de melhorar a sobrevida e a qualidade de vida. Desta forma, o objetivo deste estudo foi a realização de uma revisão integrativa sobre a eficácia do uso de corticoide como terapia adjuvante no pós-operatório de HPE de Kasai em pacientes com AVB.
METODOLOGIA
O conteúdo do presente estudo origina-se de pesquisas realizadas em todas as bases de dados disponíveis no Portal Capes (dentre elas MEDLINE, PUBMED, Elsevier, Web of Science) por artigos na língua inglesa publicados nos últimos 20 anos (até dezembro de 2020). Foram incluídos artigos originais, randomizados, observacionais e meta-análises, encontrados sobre o uso de corticoides como terapia adjuvante após hepatoportoenterostomia de Kasai em pacientes com AVB. Os critérios de exclusão foram: não responder à pergunta norteadora, não abordar o tema proposto ou não atender aos requisitos utilizados pelos pesquisadores de acordo com a faixa etária, doença e desfechos - redução da bilirrubina (icterícia) e/ou sobrevida com fígado nativo.
Os termos de busca (descritores) foram selecionados a cada um dos componentes da estratégia PICO. PICO representa um acrônimo para Paciente, Intervenção, Comparação e "Outcomes" (desfecho). Esses quatro componentes foram os elementos fundamentais para construção das perguntas para busca bibliográfica de evidências.
A pergunta PICO: A administração de corticoide traz efeitos benéficos ou prejudiciais à saúde de lactentes com atresia biliar submetidos ao procedimento de HPE (Quadro 1)? No presente estudo, foram considerados desfechos benéficos o aumento da sobrevida com fígado nativo e/ ou redução dos valores de bilirrubina no pós-operatório. Além disso, foram pesquisados seus possíveis efeitos deletérios por meio de uma segunda pergunta norteadora: Quais os efeitos deletérios do uso de corticoide neste grupo de pacientes? Essa pergunta foi incluída na mesma busca.
As palavras-chave na língua inglesa utilizadas foram: infant or pediatr or newborn and biliary atresia or portoenterostom and adjuvant therapy or corticosteroid.
Por se tratar de um tema que exige uma visão de síntese do conhecimento para incorporação na prática clínica por profissionais experientes na área, optou-se pela revisão integrativa da literatura. A revisão integrativa determina o conhecimento atual sobre uma temática específica, já que é conduzida de modo a identificar, analisar e sintetizar resultados a serem utilizados de forma reflexiva e baseada na experiência dos autores.6 Para a elaboração dos resultados foram seguidos os passos metodológicos: elaboração da pergunta norteadora, busca na literatura, coleta de dados, análise crítica dos estudos, discussão dos resultados e apresentação da revisão. A apresentação dos dados foi realizada de forma descritiva.
RESULTADOS
Foram identificados 392 artigos por meio de pesquisa de banco de dados rastreados. Após análise dos títulos, foram selecionados 121 artigos para revisão dos resumos. Excluídos 96 artigos após a revisão dos resumos por serem considerados irrelevantes. Após a leitura completa de 25 artigos, foram selecionados 15 artigos para revisão integrativa, sendo dois estudos randomizados e controlados (RCTs), seis meta-análises, seis coortes observacionais controlado por placebo. Os estudos em que apenas compararam dose alta e baixa de corticoide, sem controle com placebo não foram incluídos. Para análise de efeitos adversos, foi selecionado um estudo usando a casuística de um dos RCTs, utilizando a mesma busca. O Flow Chart do estudo está apresentado na figura 1.
RCTs
O primeiro ensaio clínico randomizado, duplo cego e controlado por placebo foi publicado por Davenport et al.7 (corticoide x placebo), em 2007, com intenção de avaliar a eficácia do uso de corticoide em pacientes com AVB pós HPE de Kasai. O grupo que fez uso de corticoide recebeu prednisolona oral na dose de 2mg/kg/dia (D7-21) e na dose de 1mg/kg/dia (D22-28) de pós-operatório. O estudo teve uma amostra de 71 lactentes divididos entre corticoide (34) e placebo (37). Não houve diferença com significância estatística nos valores de bilirrubina em um, seis e 12 meses após a HPE entre os grupos que usaram ou não o corticoide. A necessidade de transplante hepático após a HPE também não foi diferente entre os grupos, com seis meses (p=0,99) e 12 meses após a HPE (p=0,47). Os pesquisadores observaram que o corticoide apresentava melhores efeitos quando o paciente realizava a HPE mais cedo (com menos de 70 dias de vida). Esses pacientes apresentaram valores de bilirrubina menores em um mês após o procedimento (p=0,01) e com uma proporção maior de pacientes com nível normal de bilirrubinas com 12 meses, mas sem diferença com significância estatística (54% x 37%, p=0,22).7
Em 2013, após seis anos, esse mesmo grupo de pesquisadores publicaram uma complementação do estudo anterior.8 Selecionaram 153 lactentes no período de 2000 a 2011 que realizaram HPE de Kasai antes de 70 dias de vida e esses pacientes foram divididos em 3 grupos: Primeiro grupo: corticoide em dose baixa; n=18); Segundo grupo: corticoide em dose alta; n=44; Terceiro grupo: grupo sem corticoide; n=91. Os resultados foram avaliados pela bioquímica hepática, resolução da icterícia e sobrevida com fígado nativo. Os três grupos eram semelhantes em relação a idade e à fibrose hepática (classificado pelo APRi - aspartate-aminotransferase index) no pré-operatório. No primeiro mês após a HPE houve redução dos níveis de bilirrubina (3,4 x 5,3mg/dL; p=0,0015), AST (118 x 155IU/L; p=0,0015) e do APRi (0,49 x 0,82; p=0,005) quando comparados os grupos de corticoide em dose alta x sem corticoide. Houve uma resposta satisfatória com o uso do corticoide em relação a resolução da icterícia [1º grupo: 12/18 (67%) x 2º grupo: 29/44 (66%) x 3º grupo: 47/91 (52%); porém os dados só foram estatisticamente significativos quando comparados grupo corticoides (41/62) x sem corticoide (47/91); p=0.037]. Não houve diferença na sobrevida em 4 anos com o fígado nativo (46%x50%x57%) quando comparado o grupo de dose baixa x dose alta x sem corticoide. Enfim, o uso da medicação resultou em melhora laboratorial no pós-operatório imediato, em especial no grupo com altas doses de corticoide, porém não alterou a sobrevida com fígado nativo.8
START,2 publicado por Bezerra et al.,2 em 2014, é o estudo mais robusto sobre o uso de corticoide após a HPE nos pacientes com AVB. Trata-se de estudo norte americano multicêntrico, randomizado e duplo-cego. Dividiu igualmente 140 pacientes em dois grupos (corticoide x placebo). O grupo intervenção recebeu metilprednisolona 4mg/Kg/dia por duas semanas, iniciado 72 horas após a cirurgia, seguido de prednisolona 2mg/Kg/dia por duas semanas e, posteriormente, com redução gradual durante nove semanas. Não houve diferença estatística em relação à drenagem biliar no sexto mês de pós-operatório (BT <1,5 mg/dL) entre os grupos (58,6% corticoides x 48,6% placebo, p= 0,43). A sobrevida em 2 anos com o fígado nativo foi a mesma entre os dois grupos (58,7% no grupo que usou corticoides x 59,4% no grupo de placebo; p= 0,99).
START,2 não demonstrou benefício com o uso de corticoide para restabelecer a drenagem biliar em seis meses ou na sobrevida com fígado nativo em 24 meses após a HPE. Além disso, foi descrito associação do seu uso com eventos adversos precoces graves (37,2% [IC95% 26,9%; 50,0%] no grupo corticoide x 19,0% [IC95% 11,5%; 30,4 %] no grupo placebo; p = 0,008). Entre os efeitos adversos graves estão complicação da anastomose cirúrgica e perfuração intestinal nos primeiros 30 dias de pós-operatório.2
Posteriormente, Alonso et al.9 investigaram o impacto do uso de corticoide no crescimento dos participantes do estudo START.2 Foram obtidos comprimento, peso e perímetro cefálico na consulta inicial e em todas as consultas de acompanhamento até 24 meses de idade dos 140 pacientes. Os pacientes que fizeram uso de corticoide apresentaram escores z de comprimento e perímetro cefálico significativamente menores durante os primeiros três meses pós HPE, e peso significativamente menor até 12 meses. A evolução de crescimento nos grupos que fizeram uso de corticoides ou placebo diferiram significativamente para comprimento (p<0,0001), peso (p=0,009) e perímetro cefálico (p<0,0001) com o maior impacto observado para aqueles com HPE bem-sucedida, ou seja, que restabeleceram o fluxo biliar. Não foi encontrada diferença com significância na evolução de comprimento ou peso por grupo de tratamento para pacientes com HPE mal-sucedida. Nesses casos a evolução do comprimento e do peso foram menores que o esperado para a idade, mas não foi significativamente agravado pelo uso do corticoide. Os resultados deste estudo sugerem que os lactentes, submetidos à HPE bem-sucedida e que também usaram corticoide, apresentaram dificuldade na recuperação da velocidade de crescimento. Enfim, sem um benefício comprovado do corticoide para melhorar a drenagem biliar e a sobrevida com fígado nativo dos pacientes, é difícil justificar o uso da medicação devido ao risco de comprometer ainda mais o crescimento durante o primeiro ano após o procedimento cirúrgico.9
ESTUDOS OBSERVACIONAIS
Em 2003, Meyers et al.10 compararam 28 pacientes com AVB, metade recebeu corticoide em altas doses e a outra metade recebeu terapia padrão. O grupo de altas doses recebeu metilprednisolona (redução gradual de 10, 8, 6, 5, 4, 3, 2 mg /Kg/dia), seguido por 8 a 12 semanas de prednisona (2 mg/kg/dia). Este grupo ainda recebeu ácido ursodesoxicólico indefinidamente e antibióticos intravenosos por 8 a 12 semanas, seguidos de profilaxia antibiótica oral. O grupo de terapia padrão não recebeu corticoide, ocasionalmente ácido ursodesoxicólico e antibióticos intravenosos perioperatórios seguidos de profilaxia antibiótica oral. Os grupos não foram randomizados, e sim, de acordo com a preferência individual do cirurgião. Os resultados mostraram níveis menores de bilirrubina (BT<1 mg/dL dentro de 3-4 meses de pós HPE) em 79% no grupo corticoide doses altas x 21% no grupo terapia padrão (p<0,001) e menor necessidade de transplante hepático ou óbito no primeiro ano da HPE (21%x85%, p<0,001).10 No entanto, este estudo contou com amostra pequena e uso de outras medicações, o que dificultam a interpretação.
Em 2006, Escobar et al.11 verificaram, em um estudo retrospectivo com 43 lactentes em que 21 receberam corticoide e 22 não (controle), que a medicação reduz os níveis séricos de bilirrubina (BT<2 mg/dL no sexto mês de HPE) nos pacientes pós HPE (76%x37%, p=0,01), porém não houve benefícios estatísticos significantes em relação a necessidade de transplante.
Em 2007, Vejchapipat et al.12 estudaram 53 lactentes com AVB e compararam o percentual dos pacientes que tiveram fluxo biliar no sexto mês pós HPE (BT<2 mg/dL) entre aqueles que receberam prednisolona 4mg/Kg/dia por 3-4 dias consecutivos e depois em dias alternados por 1 a 3 meses e aqueles que não receberam a medicação. Pacientes com fluxo biliar no grupo corticoide 20/33 (60,6%) x 10/20 (50%) no grupo controle, p=0,57.
Em 2008, Chung et al.13 analisaram restrospectivamente 30 pacientes pós HPE. Grupo tratamento, 13 lactentes, recebeu prednisolona 4mg/Kg/dia por 2 semanas, seguido de 2mg/Kg/dia por 2 semanas e 1mg/Kg/dia por mais 2 semanas. Grupo controle 17 lactentes que não receberam o medicamento. Fluxo biliar, definido como BT<1,2 mg/dL no sexto mês da HPE, foi alcançado 53,9%x47,0%, p=0,71 pacientes, grupo corticoide x grupo sem a medicação. Verificaram redução estatisticamente significativa no nível de bilirrubina pós-operatória em 3 (p=0.03) e 6 (p=0.02) meses no grupo de corticoide. Entretanto sem diferença estatística na necessidade de transplante hepático p= 0,60.
No mesmo ano, Peterson et al.14 avaliaram 49 pacientes pós HPE, sendo 20 pacientes tratados após o Kasai com metilprednisolona (10 mg/kg nos dias 1 a 5 e 1 mg/kg nos dias 6 a 28) e 29 controles. Não verificaram diferença na sobrevida com fígado nativo em 6 meses e 2 anos entre os grupos.
A Tabela 1 resume os resultados dos principais estudos analisando a eficácia do corticoide na sobrevida do fígado nativo e na redução dos níveis de bilirrubina no pós-operatório da HPE de Kasai.
META-ANÁLISES
Existem seis meta-análises disponíveis avaliando uso do corticoide no pós-operatório da HPE em relação a redução da bilirrubina ou sobrevida com fígado nativo (Tabela 2).
Em 2011. Sarkhy et al.15 avaliaram o papel dos corticoides após a HPE de Kasai em pacientes com AVB. Encontraram 16 estudos, porém apenas cinco preencheram os critérios de inclusão, sendo 4 observacionais (n=160) e 1 ensaio clínico randomizado (n=73). Não houve diferença com significância estatística com o uso do corticoide para normalização dos níveis de bilirrubinas em seis meses ou no atraso da necessidade de transplante hepático. Porém, a maioria dos estudos era observacional.
Em 2014, Zhang et al.16 avaliaram se o uso de corticoide afeta a taxa de resolução da icterícia (desfecho primário) e sobrevida após a HPE de Kasai (desfecho secundário). Foram incluídos dez estudos na revisão sistemática e oito na meta-análise, somando mais de 1000 pacientes com AVB. Os protocolos de tratamento com corticoide foram heterogêneos entre os estudos, variaram na escolha do corticoide, na dose e na duração do tratamento. Os resultados da taxa de resolução da icterícia não favoreceram o grupo com corticoide em relação ao sem corticoide (OR 1,95; [IC95% 0,91; 4,11], p=0,087). A sobrevida com fígado nativo variou de 30 a 56% no grupo de corticoides e de 31 a 48% no grupo controle. Os dados de sobrevida não eram adequados para meta-análise.16 Os autores concluíram que os resultados demonstraram insucesso com o uso de corticoides como terapia adjuvante a HPE de Kasai.
Em 2015, Chen et al.17 compararam a drenagem biliar pós HPE em pacientes que fizeram uso de corticoide como terapia adjuvante (n=228) com os que não fizeram (n=259). Incluíram dois RCTs e cinco estudos observacionais que foram publicados entre 1968 e 2014. Não houve diferença com significância estatística entre os dois grupos em relação a taxa de redução da icterícia (p=0,08). Porém, ao analisar apenas os estudos com dose moderada-alta (prednisolona 4- 5mg/Kg/dia), verificou-se redução da bilirrubina no sexto mês de pós-operatório (OR: 1,59, [IC95% 1,03; 2,45], p=0,04) com efeito mais pronunciado dentre os operados com menos de 70 dias de vida (OR: 1,86, [IC95% 1,08; 3,22], p=0,03). Os autores concluíram que altas doses de corticoide reduzem a icterícia especialmente nos operados com menos de 70 dias de vida. Embora essa meta-análise pareça favorecer a terapia com corticoide, é importante ressaltar que o intervalo de confiança ficou muito próximo de um. Além disso, o resultado favorável ocorreu entre os pacientes operados com menos de 70 dias, que já tem melhor prognóstico em relação a drenagem biliar do que pacientes mais velhos.18 Os autores desta meta-análise, ao analisarem apenas o grupo de dose alta de corticoide, excluíram um RCT (Davenport et al.7), o que enfraquece os resultados. Eles também sugerem que ciclos mais longos de corticoide não trouxeram benefícios em relação aos mais curtos, e que, se o corticoide for utilizado, um tempo menor pode evitar complicações relacionadas ao medicamento.17
Em 2017, Zhang et al.19 estudaram o efeito dos corticoides na redução da icterícia e na taxa de sobrevida com o fígado nativo em seis meses, um e dois anos. Selecionaram oito estudos de coorte e dois RCTs (n=998). Verificaram que a terapia adjuvante com corticoide pós HPE melhorou os níveis de bilirrubina em seis meses (RR agrupado: 1,32, [IC95%: 0,995; 1,76], I2 = 72,6%) e 1 ano (RR agrupado: 1,35, [IC95%: 1,12; 1,61], I2 = 0,0%), mas não em 2 anos. Além disso, a terapia com corticoide adjuvante não melhorou a taxa de sobrevida com fígado nativo.19
Cochrane,20 em 2018, realizou a meta-análise de ensaios clínicos randomizados que avaliaram o uso de corticoide em lactentes pós HPE de Kasai. Para os efeitos colaterais também foram considerados estudos observacionais e caso-controle. Foram selecionados 21 estudos, entre eles 19 para análise dos efeitos adversos e apenas dois ensaios clínicos randomizados,2,7 cegos, controlados por placebo para análise quantitativa. Esses dois estudos randomizaram um total de 213 lactentes (73 em Davenport et al.7 e 140 em Bezerra et al.2). Essa meta-análise não identificou diferença com significância entre os lactentes com AVB tratados com corticoide quando comparados ao placebo. Para os resultados de mortalidade, eventos adversos ou transplante de fígado, o estudo sugere que os resultados foram iguais entre os dois grupos. Esses autores concluem que a evidência atual não apoia uso de corticoide para redução da icterícia em seis meses de HPE. Os autores concluem que não existem evidências suficientes para apoiar o uso de corticoide no manejo pós-operatório de lactentes com AVB.
Em 2018, Qiu et al.,21 analisaram 8 estudos, sendo 2 RCts (n=530). Dividiram os pacientes em dois grupos. Primeiro grupo recebeu corticoide associado a ácido ursodesoxicólico n=312 lactentes e o segundo grupo formado por 218 pacientes que receberam placebo. O grupo intervenção obteve valores significativamente mais baixos de bilirrubina após a HPE em relação ao controle (OR= 2,41; [IC95% 1,44; 4,04]; p=0,0008). Essa meta-análise não inclui os dois principais RCTs disponíveis Davenport et al.7 e Bezerra et al.2 E os estudos que entraram como RCTs - um disponível apenas em chinês e o outro Davenport et al.8 já comentado neste artigo.
Como limitação deste trabalho, é importante citar que existem poucos estudos com boa qualidade de evidência publicados na literatura. Apesar de ser uma dúvida frequente na prática clínica de cirurgiões e gastroenterologistas pediátricos, os dados identificados não apoiam o uso rotineiro de corticoide no pós-operatório da cirurgia de Kasai. A revisão integrativa é útil em especial para a elaboração de protocolos clínicos em hospitais universitários que são referência para o acompanhamento destes pacientes. Na opinião crítica dos autores, o tema é importante para alertar aos pediatras que além do diagnóstico e tratamento precoce da AVB, os cuidados pós-operatórios são essenciais.
CONCLUSÃO
Embora a terapia adjuvante ao procedimento cirúrgico seja utilizada para tentar melhorar os resultados da HPE, os benefícios ainda não são comprovados pela literatura científica atual. Devido a seus possíveis efeitos colerético, imunomodulador e anti-inflamatório, o corticoide é uma das drogas mais prescritas, em regimes variados, desde a década de 50, apesar dos estudos não conseguirem comprovar a melhora na drenagem biliar ou sobrevida com fígado nativo. O corticoide não é uma droga isenta de efeitos colaterais e complicações pós-operatórias graves, já foram descritas como deiscência de suturas, hemorragias, perfuração intestinal, infecção fúngica e peritonite.22 Além disso, em um dos maiores estudos e com melhor desenho, foi observado dificuldade de recuperação do crescimento nos pacientes que utilizaram corticoide e inclusive crescimento mais lento do perímetro cefálico nos primeiros seis meses de pós HPE.9
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