RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 32 DOI: https://dx.doi.org/10.5935/2238-3182.v32supl.01.05

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Resumo

Impactos da pandemia da Covid-19 no transplante de córnea

Impacts of the COVID-19 pandemic on cornea transplantation

Júlia Ribeiro Vaz de Faria1; Pedro Gabriel Salomão Libânio2; Bárbara Caldeira Pires3; Isadora Brito Coelho4; Leticia Arriel Crepaldi4

1. Faculdade Ciências Médicas de Minas Gerais. Belo Horizonte - MG, Brasil
2. Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte - MG, Brasil
3. Centro Universitário de Belo Horizonte. Belo Horizonte - MG, Brasil
4. Instituto de Olhos Ciências Médicas. Belo Horizonte - MG, Brasil

Endereço para correspondência

Júlia Ribeiro Vaz de Faria
E-mail: juliaribeirovaz@gmail.com

Instituição: Instituto de Olhos Ciências Médicas. Belo Horizonte - MG, Brasil

Resumo

INTRODUÇÃO: A pandemia causada pelo vírus SARS-COV-2 modificou perspectivas na área da oftalmologia devido à redução do pool de doadores de córnea. No início de 2020, a Eye Bank Association of America e a Global Alliance of Eye Bank Associations se posicionaram a favor da restrição do uso de tecido corneano de pacientes infectados ou com exposição ao vírus nos 28 dias anteriores. Essa restrição foi debatida devido a possibilidade da presença do vírus na conjuntiva e infecção do receptor. Assim, o presente estudo tem como objetivo sintetizar as principais repercussões da pandemia da COVID-19 no transplante de córnea.
METODOLOGIA: Busca nas bases de dados EMBASE, PUBMED com os descritores: "corneal transplantation", "eye banks", "COVID-19" AND "pandemic".
RESULTADOS: Foram incluídos estudos em português e em inglês, dos últimos 18 meses, que avaliassem a temática em questão. Foram excluídos editoriais, artigos de revisão e artigos originais. Portanto, 8 artigos foram incluídos na revisão.
DISCUSSÃO: O transplante de córnea durante a pandemia sofreu modificações mundiais. O número de doadores reduziu e diversos bancos adotaram medidas de proteção adicionais às equipes de trabalho. No Brasil, o aumento do número de restrições à captação, com o intuito de proteger tanto a equipe de captação como o receptor do tecido levou a uma disponibilidade significativamente menor do banco de córneas.
CONCLUSÃO: Estudos ainda são fundamentais para determinar o risco de transmissão de SARS-CoV-2 por transplante de córnea e orientar as recomendações baseadas em evidências para a seleção de doadores de forma segura. 

Palavras-chave: transplante de córnea, COVID-19, pandemia.

 

INTRODUÇÃO

A propagação global do coronavírus (SARS-COV-2), descoberto em dezembro de 2019, alterou radicalmente uma infinidade de práticas médicas. No contexto da oftalmologia, um dos principais desafios foi a perspectiva de redução do pool de doadores de córnea diante da ascensão da taxa de propagação da doença1.

No primeiro semestre de 2020, a Eye Bank Association of America e a Global Alliance of Eye Bank Associations se posicionaram a favor da restrição do uso de tecido corneano de pacientes infectados pelo SARS-COV-2 ou com histórico de exposição ao vírus nos 28 dias anteriores2. No Brasil, segundo diretriz do Sistema Único de Saúde, pessoas com diagnóstico de COVID-19 com menos de 28 dias da regressão completa dos sintomas não podem ser doadores de órgãos e tecidos3.

Os critérios de exclusão de doadores formulados pelos bancos de olhos se baseiam na transmissibilidade viral, prevalência da doença e efeitos no receptor. Neste contexto, a exclusão de córneas afetadas pelo SARS-COV-2 do pool de doadores se baseou na transmissibilidade relativamente alta e na possibilidade da presença do vírus na conjuntiva e infecção do receptor1.

Paralelamente ao estabelecimento das restrições às doações de córnea, houve rápido aumento global da prevalência e da mortalidade pela COVID-19, acentuando o déficit de tecidos corneanos disponíveis para transplante. Além disso, a menor circulação de pessoas, um dos pilares no controle da disseminação do vírus, representou redução do número de mortes por causas externas, com consequente redução do número de traumatismos cranioencefálicos3.

Enquanto líder em doação e realização de transplantes de córnea, o Brasil foi um dos países mais afetados pelo contexto pandêmico. Segundo a Central de Transplantes de São Paulo, no primeiro semestre de 2021, foi registrada queda de 13% do número de transplantes de córnea no estado, passando de 1.240 no mesmo período do ano passado para 1.0743.

O presente estudo tem como objetivo sintetizar as principais repercussões da pandemia da COVID-19 no transplante de córnea, além de apontar as perspectivas para os próximos anos.

 

METODOLOGIA

Foi realizada uma busca nas bases de dados EMBASE, PUBMED e MEDLINE. Foram incluídos estudos em português e em inglês, publicados nos últimos 18 meses, que avaliassem o impacto da pandemia da COVID-19 no transplante de córnea, bem como as perspectivas para os próximos anos relacionadas ao transplante desse tecido. Foram incluídos editoriais, artigos de revisão e artigos originais. Trabalhos que não se enquadrassem nos critérios de inclusão, ou que não abordassem diretamente as repercussões do contexto pandêmico nos indicadores quantitativos e/ou qualitativos relativos ao transplante de córnea foram excluídos da seleção. Os termos utilizados para a busca foram: "corneal transplantation", "eye banks", "COVID-19" AND "pandemic". Os descritores utilizados foram combinados com os seguintes strings de busca: ((corneal transplantation) AND (eye banks)) AND ((COVID-19) OR (pandemic))

Adicionalmente, foi realizada uma busca no sistema de dados da Agência Nacional de Transplante de Órgãos (ABTO), com o intuito de achar dados quantitativos acerca do impacto da pandemia da COVID-19 no transplante de córnea.

 

RESULTADOS

Foram identificados 35 artigos científicos na busca das bases de dados eletrônicas. Após a retirada das duplicatas, restaram 23 artigos, os quais foram lidos na íntegra. Desses, 8 foram selecionados com base em sua relevância para a descrição qualitativa e/ou quantitativa do impacto da pandemia da COVID-19 no processo de transplante de córneas.

 


Figura 1. Fluxograma da seleção dos artigos

 

Dos 8 artigos incluídos neste estudo, 6 são estudos descritivos retrospectivos, 1 coorte retrospectivo e 1 editorial.

 

 

Os dados quantitativos relativos ao transplante de córnea no Brasil foram obtidos no Registro Brasileiro de Transplantes da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos.

 

DISCUSSÃO

4.1 Impacto global da pandemia no transplante de córnea

O transplante de córnea durante a pandemia de COVID-19 sofreu modificações mundiais. O número de doadores reduziu globalmente e diversos bancos adotaram medidas de proteção adicionais às equipes de trabalho4,5.

No primeiro trimestre de 2020, foi registrada redução de 50% das atividades relacionadas à captação de córneas e realização de transplantes. A redução foi atribuída às restrições impostas pelos bancos de olhos, diminuição do número de doadores e restrição da realização de cirurgias eletivas2.

Em um estudo realizado na Alemanha, dezoito bancos de olhos reduziram o recrutamento de doadores e dois bancos encerraram as atividades. Em outros bancos, uma triagem diagnóstica com swabs conjuntivais ou nasofaríngeos e o uso de máscaras FFP2 e protetores faciais, foram implementados. Considerando que os testes diagnósticos não detectam 100% dos pacientes infectados pelo vírus e que há discussões sobre a coleta da córnea ser considerada um procedimento de produção de aerossol, houve grande queda no número de procedimentos. Assim, foi observada uma redução média no número de tecidos de doadores obtidos de 17%4.

Outro estudo, realizado na Europa, mostrou um grande declínio no transplante de córnea em todo o continente. Isso porque o número de doares se mostrou reduzido, principalmente pela grande lista de contra-indicações para doação durante a pandemia. Assim, o grande número de contaminações simultâneas pelo vírus SARS-COV-2 limitou a população passível de doação do tecido, prejudicando o banco de olhos continental6,7.

Já na Índia a assistência médica foi afetada significativamente devido a interrupção da cadeia de suprimentos e uma cessação completa de todas as cirurgias eletivas, incluindo cirurgias da córnea. Essa medida foi implementada para proteger a equipe do banco de olhos e o paciente da transmissão inadvertida de COVID-19, entretanto ocasionou um acúmulo de pacientes em espera cirúrgica, além de desestimular as doações. Diante da escassez de tecidos e da necessidade de se realizar cirurgias de emergência em alguns pacientes, cirurgiões da córnea e banqueiros de olhos na Índia se reuniram para buscar soluções para esses problemas. Assim, como em todo o mundo, esforços estão sendo feitos para definir o novo 'normal' na doação de olhos e transplante de córnea8.

4.2 Impacto da pandemia no número de transplantes de córnea no Brasil

Em semelhança com diversos outros países, o número de transplantes de córnea no país foi impactado de forma importante. O aumento do número de restrições à captação, com o intuito de proteger tanto a equipe de captação como o receptor do tecido, os quais frequentemente são idosos, levou a uma disponibilidade significativamente menor deste tecido9.

De acordo com os dados da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos, é nítida a redução significativa do número de transplantes corneanos realizados durante 2020 em relação aos anos anteriores, como demonstra a Figura 2. Já em 2021, foram realizados 5.599 procedimentos no primeiro semestre, possivelmente indicando o início do trajeto até a normalização do número de transplantes de córnea. É importante citar que, em junho de 2021, a lista de espera para um transplante de córnea se encontrava com 17.511 pacientes9.

 


Figura 2. Número de transplantes de córnea realizados nos Brasil nos últimos 19 anos

 

4.3 Aumento do uso de córneas preservadas em glicerina e de outras técnicas de reconstrução ocular

Como citado previamente, a pandemia do COVID-19 impactou de forma significativa o número de córneas disponíveis para transplante, gerando um desbalanço importante entre a oferta e a demanda deste nobre tecido. Este déficit de córneas para transplante se torna ainda mais grave ao considerarmos as condições nas quais ela é necessária não apenas para restaurar a acuidade visual, mas também para manter a integridade ocular, tal como as perfurações corneanas ou melting corneano por ceratites fúngicas8.

Neste contexto, observou-se o aumento do uso de terapias "ponte" o transplante definitivo de córnea. Dentre tais recursos, podemos citar o uso de flaps conjuntivais, de  cola de cianoacrilato e, principalmente, o uso das córneas preservadas em glicerina, método alternativo considerado como o de maior qualidade segundo certos grupos6. Tal método de preservação de córnea possibilita que ela seja utilizada por um tempo maior, entretanto prejudica a transparência do tecido, prejudicando a função visual10.

Em um estudo coorte retrospectivo selecionado para análise, o uso de córneas glicerinadas como terapia "ponte" não apenas se mostrou tão efetivo quanto o uso de córneas frescas para a restauração da integridade do globo ocular, mas também apresentou uma incidência menor de infecções e de rejeição. Entretanto, a incidência de glaucoma pós-transplante foi maior no grupo que recebeu córneas preservadas em glicerina11.

 

CONCLUSÃO

Todo o mundo enfrentou e permanece enfrentando dificuldades no transplante de córnea devido a pandemia de  COVID-19. Estudos ainda são fundamentais para determinar o risco de transmissão de SARS-CoV-2 por transplante de córnea e orientar as recomendações baseadas em evidências para a seleção de doadores de forma segura. No futuro, esperamos ver mudanças nas diretrizes atuais devido a um aumento nas atividades científicas para melhorar nossa compreensão dos riscos envolvidos com a doação de córnea enquanto durar a transmissão do vírus causador da doença. 

 

REFERÊNCIAS

1. Desautels JD, Moshirfar M, Martheswaran T, Shmunes KM, Ronquillo YC. Risks Posed to Corneal Transplant Recipients by COVID-19 Affected Donors. Ophtalmol Ther. 2020; 9(3):371-379. 

2. Ang M, Moriyama M, Colby K, Sutton G, Liang L, Sharma N, et al. Corneal transplantation in the aftermath of the COVID-19 pandemic: an international perspective. Br J Ophthalmo. 2020; 104(11):1477-1481. 

3. Bohem C. SP: Número de transplantes cai 17,5% no primeiro trimestre de 2021. Agencia Brasil [Internet]. 2021; Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2021-04/sp-numero-de-transplantes-cai-175-no-primeiro-trimestre-de-2021

4. Trigaux C, Salla S, Schroeter J, Tourtas T, Thomasen H, Maier P, et al. SARS-CoV-2: Impact on, Risk Assessment and Countermeasures in German Eye Banks. Curr Eye Res. 2021 May;46(5):666-671.

5. Ballouz D, Sawant OB, Hurlbert S, Titus MS, Majmudar PA, et al. I mpact of the COVID-19 Pandemic on Keratoplasty and Corneal Eye Banking. Cornea. 2021 Aug 1;40(8):1018-1023.

6. Thuret G, Courrier E, Poinard S, Gain P, Baud'Huin M, Martinache I, et al. One threat, different answers: the impact of COVID-19 pandemic on cornea donation and donor selection across Europe. Br J Ophthalmol. 2020 Nov 26:bjophthalmol-2020-317938.

7. Aiello F, Besso FG, Pocobelli G, Afflitto GG, Gisoldi RAMC, Nucci C, et al. Corneal transplant during COVID-19 pandemic: the Italian Eye Bank national report. Cell Tissue Bank. 2021 Dec; 22(4):697-702.

8. Roy A, Chaurasia S, Fernandes M, Das S. Impact of nationwide COVID-19 lockdown on keratoplasty and eye banking in India: A survey of cornea surgeons and eye banks. Indian J Ophthalmol. 2021 Mar;69(3):706-708.

9. Registro Brasileiro de Transplantes / Associação Brasileira de Transplantes de Ógãos

10. Roy A, Das S, Chaurasia S, Fernandes M, Murthy S. Corneal transplantation and eye banking practices during COVID-19-related lockdown period in India from a network of tertiary eye care centers. Indian J Ophthalmol. 2020 Nov;68(11):2368-2371.

11. Gupta N, Dhasmana R, Maitreya A, Badahur H. Glycerol-preserved corneal tissue in emergency corneal transplantation: An alternative for fresh corneal tissue in COVID-19 crisis. Indian J Ophthalmol. 2020 Jul;68(7):1412-1416.