ISSN (on-line): 2238-3182
ISSN (Impressa): 0103-880X
CAPES/Qualis: B2
Inteligência artificial no glaucoma - uma revisão literária
Glaucoma and artificial intelligence - a literature review
Isabela Matos Takahashi1; Bárbara Caldeira Pires2; Laura Silva Reis3; Júlia Maggi Vieira3; Carolina Rodrigues Fernandes4
1. Faculdade Ciências Médicas de Minas Gerais. Belo Horizonte - MG, Brasil
2. Centro Universitário de Belo Horizonte -UNIBH. Belo Horizonte - MG, Brasil
3. Instituto de Olhos Ciências Médicas. Belo Horizonte - MG, Brasil
4. Universidade Federal de Minas Gerais
Isabela Matos Takahashi
Email: Isabela_takahashi@yahoo.com.br
Instituição: Instituto de Olhos Ciências Médicas. Belo Horizonte - MG, Brasil
Resumo
INTRODUÇÃO: O glaucoma é a principal causa de cegueira irreversível no mundo. É uma doença crônica, progressiva e irreversível caracterizada por alterações morfológicas no nervo óptico, as quais são responsáveis pelo dano funcional observado - a perda visual. O diagnóstico precoce é a melhor forma de se controlar e retardar a progressão da doença, mas na maioria dos casos ele não é realizado. Sendo assim, os pacientes são diagnosticados quando o dano funcional já é consideravelmente extenso e demasiadamente prejudicial à qualidade de vida. Considerando-se este cenário, a inteligência artificial surge como uma ferramenta capaz de diagnosticar precocemente os pacientes, bem como atuar na avaliação precisa de sua evolução através da análise automatizada de exames de imagem.
METODOLOGIA: Revisão literária que utilizou artigos disponíveis na íntegra publicados entre 2016 e julho de 2021.
RESULTADOS: Utilizando o descritor: "glaucoma and artificial intelligence", foram encontrados 341 artigos no Pubmed. Já no Lilacs, para o mesmo descritor, foram encontrados 02 artigos. Após análise criteriosa, 11 referências foram selecionadas e utilizadas.
CONCLUSÃO: A Inteligência Artificial tem se mostrado útil e eficaz na detecção precoce do glaucoma a partir da análise anatômica e funcional, com assertividade superior à de médicos. Sua utilidade na detecção do glaucoma pré-perimétrico também é promissora. Dessa forma, essa ferramenta tem se mostrado cada vez mais útil na prática clínica.
Palavras-chave: Glaucoma. Inteligência artificial. Diagnóstico precoce.
INTRODUÇÃO
Glaucoma representa a principal causa de cegueira irreversível no mundo.1 É uma doença caracterizada por alterações estruturais no nervo óptico e na camada de células ganglionares da retina, pela presença ou não de pressão intraocular (PIO) alterada e pela perda progressiva do campo visual1,2. A neuropatia óptica glaucomatosa é progressiva, crônica e incurável, porém tratável. Caracteriza-se pelo aumento da escavação no disco óptico, pela perda de células na camada de células ganglionares e na camada de fibras nervosas da retina3. Como consequência destas alterações estruturais, ocorre o dano funcional, resultante da perda de campo visual progressiva e irreversível, sendo o padrão observado inicialmente periférico - evoluindo da periferia em direção ao centro. Por este motivo, os pacientes mostram-se assintomáticos durante grande parte do curso da doença, sendo as queixas oftalmológicas observadas em estágios avançados4; o que atrasa o diagnóstico precoce e corrobora para que a maioria dos pacientes seja diagnosticada em estágios avançados1,5 nos quais não é mais possível preservar de forma significativa a visão central - pilar fundamental do tratamento6,7.
A progressão do glaucoma e a consequente perda visual, na maior parte dos casos, pode ser eficientemente controlada pelo diagnóstico e tratamento precoces. Apesar disso, em um grande número de pacientes o diagnóstico não é feito nas fases iniciais pois as alterações observadas são ainda singelas e podem não ser percebidas por médicos pouco experientes5.
Neste cenário, o uso da inteligência artificial surge como uma ferramenta auxiliar no diagnóstico precoce do glaucoma através da detecção de alterações glaucomatosas mínimas presentes ainda na fase inicial da doença. Age como um instrumento para avaliação do dano estrutural do nervo óptico, do dano funcional no campo visual e de seu prognóstico5.
METODOLOGIA
O presente artigo trata-se de uma revisão narrativa da literatura. A partir da escolha da temática de demasiada relevância, o estudo foi composto pelas seguintes etapas: seleção das bases de dados de impacto acadêmico-científico importante e seleção dos descritores utilizados para filtrar os dados; elaboração dos critérios de inclusão e de exclusão de artigos para o presente estudo e seleção dos artigos que apresentavam-se de acordo com esses critérios; organização dos itens selecionados e, por fim, apresentação e análise dos dados obtidos.
As bases de dados selecionadas foram Pubmed e Lilacs. O descritor utilizado foi: "glaucoma and artificial intelligence". Em uma primeira avaliação, foram incluídos artigos publicados entre 2016 e 2021, nas línguas portuguesa, inglesa e espanhola. Apenas estudos disponíveis na íntegra e que estivessem diretamente relacionados ao tema foram selecionados. Já pesquisas com data de publicação com períodos superiores a 15 anos, disponibilizadas apenas na forma de resumo, publicados em periódicos de baixo fator de impacto ou com metodologias inconclusivas foram excluídas.
RESULTADOS
Utilizando o descritor: "glaucoma and artificial intelligence", foram encontrados 341 artigos no Pubmed. Já no Lilacs, para o mesmo descritor, foram encontrados 02 artigos. Após análise, foram selecionadas 11 referências, como apresentado na Figura 1.
Os 11 artigos selecionados para a realização do presente estudo estão descritos na Tabela 1:
DISCUSSÃO
O diagnóstico do glaucoma é atualmente realizado através da associação dos achados da tonometria, da retinografia, da paquimetria, da gonioscopia, da campimetria computadorizada e da tomografia de coerência óptica (OCT), sendo a análise do disco óptico e da camada de fibras nervosas da retina o momento crucial desta avaliação8. No curso inicial da doença as alterações encontradas são discretas, motivo pelo qual muitas vezes não são detectadas, e consequentemente, não é feito o diagnóstico. Sendo assim, a conclusão diagnóstica é examinador-dependente, caracterizando, portanto, uma limitação técnica. Somado a isso, não existem ainda métodos de rastreio (screening populacional) para o glaucoma, o que faz com que o diagnóstico ainda nas fases iniciais seja de total responsabilidade do oftalmologista. Além disso, a análise da imagem pode ser dificultada por parâmetros técnicos, tais como: variações no aparelho utilizado, exposição, foco, grau de midríase e presença de doenças não glaucomatosas5. Diante do exposto, evidencia-se a demanda por um sistema automatizado e padronizado capaz de analisar os exames de imagem, correlacionar os achados com dados pré-existentes em bases de dados e, a partir deste processo, determinar se há ou não presença de alterações glaucomatosas, mesmo que mínimas - processo este capaz de ser realizado através das técnicas de IA4,5,9.
O conceito de inteligência artificial (IA) foi cunhado pela primeira vez em 1956 e referia-se à toda tecnologia utilizada para mimetizar comportamentos e ações humanas.1 A aplicação da IA na oftalmologia se dá através de três de seus subcampos: aprendizado de máquina, aprendizagem profunda e processamento de linguagem natural8.Todas dependem do fornecimento de um acervo significativo de dados (dados clínicos e exames de imagem), mas diferem entre si no que tange a forma como tais informações serão interpretadas e analisadas. Como resultado final, estes subcampos de IA se tornam aptos a realizar o diagnóstico de glaucoma, embora cada um apresente uma acurácia diferente8. Nos primórdios da IA só era possível gerar resultados a partir de um software explicitamente programado5. Ou seja, inicialmente a máquina era sistematizada a partir de um montante de dados e depois se tornava apta a gerar uma relação simples de se-então - se existir no dado analisado o achado X, então o resultado será Y5. No entanto, a aplicação deste tipo de processamento de dados na medicina era limitado, uma vez que os resultados obtidos não superavam aqueles alcançados pela análise feita puramente por médicos. Posteriormente, com o surgimento do aprendizado de máquina, os softwares se tornaram capazes de aprender sem a necessidade de serem explicitamente programados5. Com o progresso contínuo da IA, foi desenvolvido o subcampo conhecido como aprendizagem profunda, caracterizado pela habilidade da máquina em aprender utilizando-se de redes neurais compostas por múltiplas camadas, as quais eram construídas com base em características anatômicas e funcionais das redes neuronais presentes no córtex visual humano5. Este tipo de rede neural arquiteta-se em topologia de camadas: uma de entrada, uma de saída e uma ou múltiplas intermediárias10. Na camada de entrada um neurônio artificial recebe os dados do paciente fornecidos através de exames de imagem, ''responde'' a ele e então inicia o processamento da informação10.Esta é então transmitida às camadas intermediárias, onde outros neurônios recebem dados de múltiplos neurônios da camada de entrada (no caso de uma única camada intermediária) e/ou de neurônios das demais camadas intermediárias, formando um sistema com inúmeras conexões (em sistemas com múltiplas camadas intermediárias). Finalmente, a informação atinge a camada de saída e produz um resultado - como por exemplo a definição diagnóstica ou não de glaucoma, bem como o grau do dano glaucomatoso10.
O diagnóstico do glaucoma baseia-se em achados observados nos exames de imagem, especialmente análise do disco óptico, e, por este motivo, pode ser comprometido caso o examinador não seja adequadamente capacitado, na presença de inadequações técnicas ou quando a lesão é muito singela e é menor do que o limiar observado pelo olho humano. Nesse sentido, a IA surge como uma ferramenta útil para o diagnóstico uma vez que é capaz de realizá-lo com maior grau de sensibilidade e de forma mais assertiva do que médicos oftalmologistas5.A avaliação da qualidade dos algoritmos da IA pode ser feita através das seguintes variáveis: sensibilidade, especificidade, acurácia, precisão, valor preditivo positivo, valor preditivo negativo e área abaixo da curva característica de operação do receptor (AUC), sendo esta última calculada a partir da sensibilidade e especificidade. Consequentemente, o parâmetro AUC pode ser utilizado para classificar uma imagem em uma de duas categorias - tais como a presença ou não de glaucoma5.Tendo como parâmetro de análise de qualidade as variáveis citadas, diversos estudos foram desenvolvidos para avaliar a capacidade de detecção de glaucoma pela IA.
Um primeiro grupo de estudos realizados por Ting et al e Li et al. utilizou a fotografia fundoscópica e considerou como critério diagnóstico uma relação escavação/disco óptico maior ou igual a 0,8 no primeiro e maior ou igual a 0,7 no segundo. O primeiro estudo obteve AUC, sensibilidade e especificidade respectivamente de: 0.942; 0.964 e 0.872. Já no segundo, os valores obtidos foram: 0.986; 0.956; 0.925. Evidencia-se, portanto, que o uso da IA gerou resultados que superam a acurácia de médicos oftalmologistas na detecção do glaucoma. Já no segundo grupo de estudos, os autores utilizaram uma abordagem diferente para o diagnóstico de glaucoma, sendo este determinado pelos achados da fundoscopia associados a outros dados auxiliares. Também obtiveram resultados excepcionais, sendo estes corroborados pelo valor de AUC encontrado: AUC ≥ 0.872 em todos estudos5. Ainda considerando o segundo grupo, Medeiros et al. e Thompson et al. utilizaram como dado auxiliar a tomografia de coerência óptica (OCT)5. Sendo assim, o algoritmo foi adaptado para analisar simultaneamente e correlacionar alterações do disco óptico e déficits campimétricos. Essa associação foi extremamente significativa, uma vez que soluciona os falsos negativos encontrados quando o disco óptico e consequentemente a escavação do paciente são naturalmente maiores. Os resultados obtidos foram imensamente satisfatórios, sendo os valores de AUC obtidos respectivamente: 0,944 e 0,9335.
Além de apresentar melhor acurácia do que seres humanos para a detecção do glaucoma, a IA é útil também na interpretação da campimetria computadorizada5, exame que permite avaliar o comprometimento funcional, bem como sua progressão6. O primeiro estudo que avaliou a detecção de déficits campimétricos através da IA foi realizado em 1994, e a taxa de acertos do software foi muito semelhante àquela observada em oftalmologistas experientes (concordância de 74%)11. Atualmente, no entanto, com o aprimoramento dos sistemas de IA, a detecção de glaucoma a partir da análise da campimetria computadorizada é comprovadamente superior se realizada por algoritmos cunhados pela aprendizagem profunda do que por médicos11. Além disso, a IA está sendo estudada para também ser útil na detecção do glaucoma pré perimétrico, quando ainda não há dano funcional, baseando-se na avaliação retrospectiva de campos visuais de pacientes posteriormente diagnosticados com glaucoma, utilizando achados observados no disco óptico e déficits campimétricos10.
CONCLUSÃO
A inteligência artificial vem se mostrando uma ferramenta de grande utilidade na prática clínica oftalmológica. A IA pode ser uma excelente contribuição para o manejo do glaucoma, auxiliando em um diagnóstico mais preciso e uma terapêutica individualizada.
É importante ressaltar, que embora a IA esteja apresentando resultados promissores no manejo do glaucoma, mais estudos são necessários, a fim de obter mais dados sobre o tema e alcançar maiores evidências.
REFERÊNCIAS
1. Li JPO, Liu H, Ting DSJ, Jeon S, Chan RVP, Kim JE, et al. Digital technology, tele-medicine and artificial intelligence in ophthalmology: A global perspective. Prog retin eye res. 2021 May; 82, p:100900.
2. Mariottoni EB, Datta S, Dov D, Jammal AA. Berchuck S, Tavares IM, et al. Artificial intelligence mapping of structure to function in glaucoma. Transl vis sci technol. 2020; 9(2): 19.
3. Girard MJA, Schmetterer L. Artificial intelligence and deep learning in glaucoma: current state and future prospects. Prog Brain Res. 2020; 257: 37-64.
4. Mursch-Edlmayr AS, Ng WS, Diniz-Filho A, Sousa DC, Arnould L, Schlenker MB, et al. Artificial intelligence algorithms to diagnose glaucoma and detect glaucoma progression: translation to clinical practice. Transl Vis Sci Technol. 2020; 9(2):55.
5. Mayro EL, Wang M, Elze T, Pasquale LR. The impact of artificial intelligence in the diagnosis and management of glaucoma. Eye. 2020; 34(1):1-11.
6. Wang M, Shen LQ, Pasquale LR, Boland MV, Wellik SR, Moraes CG, et al. Artificial intelligence classification of central visual field patterns in glaucoma. Ophthalmology. 2020; 127(6):731-738.
7. Wang M, Tichelaar J, Pasquale LR, Shen LQ, Boland M, Wellik SR, et al. Characterization of central visual field loss in end-stage glaucoma by unsupervised artificial intelligence. JAMA ophthalmol. 2020; 138(2):190-198.
8. Prabhakar B, Singh RK, Yadav KS. Artificial intelligence (AI) impacting diagnosis of glaucoma and understanding the regulatory aspects of AI-based software as medical device. Comput Med Imaging Graph. 2021; 87:101818.
9. Wang M, Shen LQ, Pasquale LR, Petrakos P, Formica S, Boland MV, et al. An artificial intelligence approach to detect visual field progression in glaucoma based on spatial pattern analysis. Invest ophthal vis sci. 2019; 60(1):365-375.
10. Zheng C, Johnson TV, Garg A, Boland MV. Artificial intelligence in glaucoma. Curr opin ophthal. 2019;30(2):97-103.
11. Devalla SK, Liang Z, Pham TH, Boote C, Strouthidis NG, Thiery AH, et al. Glaucoma management in the era of artificial intelligence. British Journal of Ophthalmology 2020; 104(3):301-311.
Copyright 2024 Revista Médica de Minas Gerais
This work is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International License