ISSN (on-line): 2238-3182
ISSN (Impressa): 0103-880X
CAPES/Qualis: B2
Fatores preditivos de varizes esofágicas em pacientes com hipertensão porta
Predictors of esophageal varices in patients with portal hypertensio
Eleonora Druve Tavares Fagundes1; Mariza Leitão Valadares Roquete2; Alexandre Rodrigues Ferreira3; Francisco José Penna4
1. Pediatra do Setor de Gastroenterologia Pediátrica do Hospital das Clínicas da UFMG, Belo Horizonte, MG, Brasil
2. Professora Adjunto do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da UFMG, Belo Horizonte, MG, Brasil
3. Professor Adjunto do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da UFMG, Belo Horizonte, MG, Brasil; Pediatra do Setor de Gastroenterologia Pediátrica do Hospital das Clínicas da UFMG, Belo Horizonte, MG, Brasil
4. Professor Titular do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da UFMG, Belo Horizonte, MG, Brasil. Chefe do Setor de Gastroenterologia Pediátrica da Faculdade de Medicina da UFMG, Belo Horizonte, MG, Brasil
Eleonora Druve Tavares Fagundes
Rua Tenente Anastácio de Moura, 740/801, Bairro: Santa Efigênia
Belo Horizonte - MG, Brasil, CEP: 30240-390
Email: eleonoradruve@uol.com.br
Recebido em: 26/02/2007
Aprovado em: 19/08/2009
Instituição: Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina, UFMG, Belo Horizonte - MG, Brasil.
Resumo
A hemorragia digestiva alta decorrente da ruptura de varizes esofágicas é causa importante de morbimortalidade entre os pacientes com hipertensão porta. A profilaxia primária da hemorragia digestiva requer triagem precoce para a presença de varizes. No entanto, a triagem rotineira de todos os pacientes tem implicações econômicas. Seria desejável identificar, por meio do exame clínico ou por exames complementares menos invasivos, a população com alto risco de apresentar varizes. Selecionado o paciente com risco, a confirmação seria realizada pela endoscopia digestiva alta, uma vez que esse exame apresenta custo significativo e desconforto para o paciente, especialmente para as crianças. Os dados disponíveis na literatura são insuficientes para determinar fatores preditivos não-invasivos que possam identificar e discriminar adequadamente os adultos cirróticos com e sem varizes. Os resultados são discrepantes, com valores preditivos baixos. Enquanto novos estudos são aguardados, a triagem endoscópica é a melhor conduta, estabelecida por consenso, para a detecção de varizes esofágicas em adultos. Em crianças, não existe recomendação formal de triagem endoscópica, sendo necessária a realização de mais estudos nessa faixa etária. O objetivo deste trabalho é apresentar revisão sobre os preditores de varizes esofágicas entre adultos cirróticos e sobre a prevalência de varizes esofágicas e hemorragia digestiva em crianças e adolescentes com hipertensão porta.
Palavras-chave: Varizes Esofágicas e Gástricas; Hipertensão Portal; Hemorragia Gastrointestinal; Endoscopia Gastrointestinal; Cirrose Hepática; Fatores de Risco.
INTRODUÇÃO
A hipertensão porta é uma complicação importante na história natural da cirrose hepática, da trombose de veia porta e de diversas hepatopatias fibrosantes como a fibrose hepática congênita. Resulta na formação de varizes esofágicas (VEs), varizes gástricas e gastropatia da hipertensão porta e, como consequência, na hemorragia digestiva alta (HDA). A pressão normal do sistema porta situa-se entre 5 e 10 mmHg. As complicações aparecem quando a pressão ultrapassa 10 a 12 mmHg.1 A maioria dos dados sobre a história natural das VEs é proveniente de estudos em adultos. Neste artigo, os dados referentes à faixa etária pediátrica serão explicitados.
O sangramento de VEs é a maior causa de morbimortalidade entre os cirróticos. Cerca de metade a dois terços dos adultos com cirrose apresenta VEs. O risco de desenvolver varizes varia de 5 a 20% em dois anos. Com o seguimento em longo prazo, 20 a 50% dos adultos com varizes apresentarão HDA.2,3 Apesar dos avanços no diagnóstico e tratamento, a mortalidade advinda de um episódio agudo de HDA é bastante elevada, aproximadamente 25 a 35%.4,5,6 Após o primeiro episódio de sangramento, o risco de recorrência chega a 70%.4,5 Portanto, a prevenção do primeiro episódio de HDA ocasionada pela ruptura das VEs pode reduzir a mortalidade, a morbidade e os custos do sistema de saúde.
Para a predição do primeiro episódio de HDA, diferentes critérios foram elaborados com base nos dados clínicos e laboratoriais (escore de Child-Pugh, testes de coagulação), achados endoscópicos (tamanho, cor, estigmas e localização de varizes) ou a combinação deles.2 Há evidências de que a gravidade da disfunção hepática, o tamanho das varizes, sinais vermelhos nas VEs e a pressão porta superior a 12 mmHg são os fatores mais importantes na ocorrência do primeiro episódio de HDA.7 Aplicando o modelo de análise de regressão logística, os fatores mais importantes em relação ao risco de sangramento entre os adultos cirróticos são o tamanho das VEs e manchas vermelhas superpostas às varizes.2
A alta mortalidade decorrente do primeiro episódio de HDA tem estimulado a realização de estudos sobre a profilaxia primária, recomendada em pacientes adultos de alto risco que ainda não sangraram, ou seja, com VEs de médio e grande calibre, para prevenir o primeiro episódio de hemorragia digestiva. As intervenções farmacológicas e endoscópicas têm sido utilizadas na profilaxia primária. O objetivo da prevenção farmacológica é reduzir a pressão no sistema porta, tanto pela diminuição da resistência quanto do fluxo esplâncnico; a redução da pressão porta levaria à diminuição do risco de sangramento. O objetivo da terapia endoscópica é reduzir ou eliminar as varizes e, com isso, o risco de HDA. No entanto, como não há alteração na pressão porta, é possível o sangramento em outros sítios não acessíveis à endoscopia digestiva alta (EDA).
Um estudo de metanálise de nove trabalhos randomizados5 envolvendo 996 pacientes adultos demonstrou que os beta-bloqueadores reduzem significativamente a taxa de ocorrência do primeiro episódio de HDA quando comparado ao grupo placebo. O declínio da taxa de mortalidade, no entanto, não apresentou significado estatístico (OR=0,75; IC=0,57-1,06).
Estudos recentes têm demonstrado que a ligadura endoscópica é efetiva na profilaxia primária e reduz a mortalidade em crianças e adultos cirróticos com varizes de grosso calibre.8,9
Com esses resultados, tem-se recomendado, então, estender-se a profilaxia primária a um número mais alto de cirróticos, como aqueles com risco moderado de HDA.10
Todas essas condutas tornaram necessária a triagem endoscópica de VEs nos pacientes com cirrose, a despeito do tipo de profilaxia a ser adotada.
Em 1996, a Associação Americana para o Estudo de Doenças Hepáticas definiu os critérios para a triagem endoscópica de VEs.7 A EDA era recomendada para todos os adultos com cirrose Child-Pugh B ou C e para aqueles Child-Pugh A com sinais de hipertensão porta, incluindo plaquetopenia (< 140.000/mm3), diâmetro de veia porta maior que 13 mm ou evidência ultrassonográfica de colaterais portossistêmicas. Tais recomendações foram baseadas na alta prevalência de varizes em pacientes Child-Pugh B e C e em dados preliminares, mostrando que alguns fatores selecionados poderiam predizer a existência de varizes em pacientes Child-Pugh A. O Consenso em Hipertensão Porta - Baveno III - estendeu a recomendação da triagem a todos os adultos cirróticos na época do diagnóstico.11 Nos pacientes em que as varizes não foram visibilizadas, a EDA deveria ser repetida em intervalos de dois a três anos. Nos pacientes com varizes esofágicas de pequeno calibre, a EDA seria repetida a cada um ou dois anos.11 Os pacientes com varizes de médio e grande calibre e sem história anterior de hemorragia digestiva devem receber profilaxia com beta-bloqueador não-seletivo. A ligadura endoscópica profilática poderá ser utilizada nos pacientes que apresentem contraindicações ou efeitos colaterais ao uso da terapia farmacológica.10
A recomendação da triagem universal para adultos cirróticos foi consenso de experts, mas não houve estudo prospectivo acerca do impacto dos custos e da efetividade dessa conduta.
De fato, a prevalência de VEs tem ampla variação, indo de 24 a 80% nas diferentes séries em adultos com cirrose.9,12,13 As VEs de grosso calibre são identificadas em apenas 15 a 25% dos cirróticos submetidos de forma indiscriminada à EDA.
Embora a EDA periódica seja recomendada para todos os pacientes cirróticos, Arguedas et al.14 encontraram baixa taxa de adesão à recomendação. Apenas 46% dos pacientes com doença hepática avançada foram submetidos à EDA para pesquisa de varizes. Entre os pacientes submetidos à EDA que receberam profilaxia primária com beta-bloqueadores, apenas 5,8% apresentaram HDA durante tempo médio de seguimento de 20 meses. Por outro lado, 36% dos pacientes que não foram submetidos à triagem sangraram no período de 15 meses após o diagnóstico de cirrose. Os pesquisadores concluíram que a subutilização da triagem de varizes pode contribuir para a morbimortalidade entre os cirróticos.
Uma vez que a profilaxia primária de HDA é efetiva, a triagem endoscópica está bem indicada. No entanto, essa prática em todos os adultos com cirrose tem implicações econômicas, pois somente metade dos pacientes apresenta varizes na primeira EDA. Portanto, é necessário identificar subgrupos de pacientes com alto risco de apresentar varizes e que possam se beneficiar da triagem. O método mais acurado para a detecção de varizes é a EDA. No entanto, esse procedimento é invasivo e, para muitos pacientes, desnecessário. Indicadores não-invasivos que possam predizer a presença de varizes podem restringir a realização do procedimento aos pacientes com alto risco, o que contribuiria para um programa de prevenção de HDA mais racional e com melhor relação custo-benefício.
Esta revisão bibliográfica foi realizada nas bases de dados Index Medicus (Medline) e da Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (LILACS) dos últimos 10 anos, utilizando-se as seguintes palavras-chave: oesophageal varices, portal hypertension, liver cirrhosis, endoscopic screening, gastrointestinal bleeding. Esses descritores foram também pesquisados especificamente na faixa pediátrica.
Fatores preditivos de varizes esofágicas em adultos com cirrose
Com o objetivo de reduzir a sobrecarga de exames, assim como os custos advindos da recomendação da triagem endoscópica universal para todos os cirróticos, vários estudos têm sido conduzidos na tentativa de identificar fatores preditivos de VEs. Esses parâmetros estão relacionados, direta ou indiretamente, à hipertensão porta, como a esplenomegalia e a plaquetopenia.
Em geral, a plaquetopenia e a esplenomegalia têm sido associadas à presença de varizes. Outros fatores prognósticos relatados são o diâmetro da veia porta maior ou igual a 13 mm, o escore de Child-Pugh (Child B e C), a hipoalbuminemia e a baixa atividade de protrombina.15-18 A maioria desses estudos são retrospectivos, embora os resultados dos estudos prospectivos não tenham mostrado resultados diferentes (Tabela 1).
Chalasani et al.19 estudaram 346 pacientes de três centros de transplante hepático nos EUA. Os fatores associados à vigência de varizes de grosso calibre foram esplenomegalia e plaquetopenia (<88.000/mm3), o que permitiu a estratificação de dois grupos de cirróticos de acordo com os riscos alto e baixo. Os pacientes sem esplenomegalia e com contagem de plaquetas acima de 88.000/mm3 apresentavam prevalência de varizes de grosso calibre da ordem de 7%, enquanto nos pacientes com os dois fatores positivos a prevalência foi de 28% (p<0,0001). Realizou-se estudo preliminar sobre custos, comparando-se três estratégias: não realizar triagem endoscópica, realizá-la em todos os pacientes ou realizá-la apenas naqueles com alto risco. Os resultados revelaram diferença favorável à última estratégia.
Outra pesquisa20 concluiu que o modelo utilizando contagem de plaquetas abaixo de 150.000/mm3 e ascite clínica para predizer varizes de grosso calibre apresenta excelente sensibilidade (100%), mas baixa especificidade (51%), o que seria apropriado para um teste de triagem. O valor preditivo positivo foi de 35%, enquanto o valor preditivo negativo, de 100%. Ao aplicar esse modelo, 40% dos exames endoscópicos poderiam ser evitados com segurança. Os autores sugerem que a endoscopia para pesquisa de VEs em cirróticos não é necessária até que ocorra plaquetopenia ou ascite clínica.
Zaman et al.18 identificaram o escore de Child-Pugh e a plaquetopenia como fatores de risco independentes para a existência de varizes de qualquer calibre. Os cirróticos com contagem de plaquetas abaixo de 80.000/mm3 apresentam risco 2,3 vezes mais alto de ter varizes de grosso calibre do que os pacientes com número de plaquetas acima desse valor. Por outro lado, pacientes Child-Pugh B e C têm risco três vezes mais alto de apresentar varizes de grosso calibre que os pacientes Child-Pugh A. Tais fatores permitem identificar um subgrupo de pacientes que certamente iria se beneficiar com a realização da EDA. No entanto, os autores ressaltam que os achados deveriam ser analisados com cautela, uma vez que o estudo foi retrospectivo e incluiu apenas pacientes encaminhados para transplante.
Schepis et al.17, por sua vez, identificaram como fatores preditivos de varizes a atividade de protrombina inferior a 70%, a contagem de plaquetas abaixo de 100.000/mm3 e o diâmetro da veia porta maior que 13 mm à ultrassonografia abdominal. Nos pacientes com pelo menos um dos fatores, a prevalência de VEs variou de 20 a 91%. Em 31 pacientes sem nenhum dos fatores preditivos, apenas três apresentavam VEs (9,6%), todas de pequeno calibre, ou seja, com baixo risco de sangramento. Desta forma, os autores não recomendam a realização de EDA no subgrupo de pacientes de baixo risco.
Outro estudo21 analisou os dados de 184 pacientes. Após análise multivariada, a plaquetopenia (<118.000/mm3), ascite e esplenomegalia ao exame ultrassonográfico associaram-se de forma independente a varizes de grosso calibre. A concomitância dos três fatores elevou a prevalência de varizes para 83,3%. Na ausência desses fatores, a prevalência de varizes foi de 12,8%, sendo que nenhum desses pacientes apresentava varizes de grosso calibre. Esses fatores permitem identificar o grupo de pacientes cirróticos, com baixa prevalência de varizes e, principalmente, sem varizes de grosso calibre, nos quais a EDA pode ser evitada.
Embora esses estudos tenham mostrado resultados animadores, há trabalhos discordantes.
Pilette et al.22 identificaram a contagem de plaquetas e a atividade de protrombina como preditivos de varizes. Embora com significância estatística, o valor preditivo negativo (75%) desses achados não é alto o bastante para o uso clínico rotineiro como triagem dos pacientes que devem ou não ser submetidos à EDA. Resultados semelhantes e pouco encorajadores foram encontrados no estudo de Madhotra et al.16
Embora valorizado na maioria dos estudos, a contagem de plaquetas tem poder discriminatório apenas moderado, devido à multicausalidade da plaquetopenia nos cirróticos. Enquanto as varizes são decorrentes da hipertensão porta, a plaquetopenia resulta de vários fatores além do hiperesplenismo, como a diminuição de sua meia-vida, a diminuição na produção de trombopoietina, os fenômenos de autoimunidade ou o efeito mielotóxico do álcool ou vírus.23
Como a plaquetopenia nos cirróticos depende de outros fatores além da hipertensão porta, Giannini et al.24 estudaram a relação contagem de plaquetas/diâmetro esplênico. Essa relação teria a finalidade de discriminar a plaquetopenia secundária ao hiperesplenismo resultante da hipertensão porta, que também é responsável pelo desenvolvimento de VEs. Os autores concluíram que a relação contagem de plaquetas/diâmetro esplênico foi o único parâmetro independente associado às VEs, com sensibilidade de 100%, especificidade de 93%, valor preditivo negativo de 100% e valor preditivo positivo de 96%. Esses achados foram reproduzidos em um segundo grupo de pacientes com cirrose compensada.25 A estratégia de utilizar essa relação na indicação de EDA resultou em melhor relação custo-benefício do que a triagem endoscópica indiscriminada.
Spiegel et al.26 procederam à análise de custos de diversas estratégias de profilaxia primária. Segundo os autores, a utilização da triagem seletiva para os grupos de alto risco não apresenta boa relação custo-benefício, uma vez que ainda não existem indicadores não-invasivos com valor preditivo positivo e negativo adequado na predição de VEs. O uso de preditores clínicos chega a ocasionar quase 17% de falso-negativos. Apenas 49% dos pacientes considerados de alto risco apresentaram, de fato, VEs. Os autores concluíram que a triagem seletiva não é custo-efetiva, uma vez que a estratégia de divisão em subgrupos de risco associa-se à redução insignificante dos custos e perda considerável da eficácia, quando comparada com outras estratégias. Desta forma, até que novos preditores não-invasivos sejam identificados e validados prospectivamente, a triagem seletiva permanece com relação custo-benefício inferior a outras estratégias.26
Concluindo, os dados disponíveis são ainda insuficientes para determinar fatores preditivos que possam identificar e discriminar adequadamente os pacientes cirróticos com e sem varizes.10 Os resultados são ainda discrepantes, com valores preditivos ainda baixos.26,27 Desta forma, o consenso Baveno IV10 concluiu que ainda não existem indicadores com resultados satisfatórios na predição de VEs. Enquanto se aguardam novos estudos, a triagem endoscópica parece ser a melhor conduta para a detecção de VEs.
Estudos sobre a prevalência de varizes esofágicas e hemorragia digestiva em crianças e adolescentes
A maioria dos dados sobre a história natural das VEs procede de estudos em adultos. O número de investigações em crianças é escasso, limitado a série de casos. A cirrose é a principal causa de VEs em adultos. Em estudos pediátricos, existe considerável contingente de pacientes com trombose de veia porta, com função hepática preservada.23,28 Nas últimas décadas, houve aumento dos relatos de hipertensão porta intra-hepática nessa faixa etária, em razão da maior sobrevida das crianças com cirrose, principalmente secundária à atresia biliar e à fibrose cística, consequente ao aprimoramento do diagnóstico e do tratamento a esses pacientes. Em pediatria, as duas causas mais frequentes de hipertensão porta são a atresia biliar e a trombose de veia porta, que têm características e evolução distintas.29
Aproximadamente dois terços das crianças com cirrose apresentam varizes30,31. O risco geral de HDA em crianças com cirrose e varizes pode atingir 38% em cinco anos. A possibilidade de sangramento na trombose de veia porta é maior do que na cirrose, chegando a 80%.9,32 Embora a HDA na criança com cirrose possa ser menos frequente, ela é, em geral, mais grave, refratária ao tratamento clínico e com mais morbimortalidade que a trombose de veia porta.32
A mortalidade em crianças com hipertensão porta é mais baixa do que em adultos, chegando a 8%.31-33
A idade da criança por ocasião do primeiro sangramento varia de acordo com a causa da hipertensão porta. A média de idade em que ocorre a HDA nas crianças com atresia biliar é de três anos, para a trombose de veia porta cinco anos e para a fibrose hepática congênita 8,6 anos.32
Alguns autores propuseram que o risco de sangramento em crianças com hipertensão porta, especialmente trombose de veia porta, diminui com o tempo, devido ao desenvolvimento de colaterais,34,35mas outros estudos não confirmaram esses dados.33,36 Lykavieris et al.33, acompanhando 44 pacientes com trombose de veia porta com mais de 12 anos de idade, relataram probabilidade de sangramento de 49% até 16 anos e 76% até a idade de 24 anos. As endoscopias seriadas em 26 do total de 44 crianças mostraram que o tamanho das varizes aumentou em 15 pacientes; em nenhum caso houve diminuição do tamanho das varizes entre as endoscopias. Não foi relatado o intervalo médio entre os exames, mas não houve evidência de regressão das varizes com o aumento da idade.
A trombose de veia porta é identificada em até 40% das crianças com HDA secundária às varizes de esôfago.37 Em torno de 79% das crianças com diagnóstico de trombose de veia porta apresentarão pelo menos um episódio de HDA durante suas vidas.38 Cerca de 90% a 95% desses pacientes apresentam VEs e 35 a 40%, varizes gástricas. A taxa de mortalidade pela hemorragia digestiva secundária ao rompimento das varizes é em torno de 2 a 5%.39
Alvarez et al.38 relataram a experiência com 108 crianças com trombose de veia porta acompanhados de 1958 a 1980; 50 (46,3%) tiveram hemorragia digestiva como primeira manifestação da doença. Pelo menos um episódio de hemorragia digestiva ocorreu em 78 crianças (72%), geralmente entre um e cinco anos, com tendência à recorrência. A EDA mostrou varizes esofágicas em 79 de 81 pacientes estudados. Os autores sugerem que a EDA seja realizada com fins prognósticos.38
Os progressos no tratamento da atresia biliar têm melhorado sobremaneira o prognóstico em médio prazo dos pacientes, resultando em até 90% de sobrevida em 10 anos.31 No entanto, a fibrose hepática progressiva, a hipertensão porta e, eventualmente, a insuficiência hepática são comuns; 70 a 80% dos pacientes vão necessitar de transplante hepático. Cerca de 50 a 60% de todas as indicações de transplante hepático em pediatria são representados pela atresia biliar. Uma complicação importante da hipertensão porta, a hemorragia secundária à ruptura de VEs, permanece como um sério problema e uma complicação potencialmente fatal, ocorrendo em 17 a 55% dos pacientes com atresia biliar.34,40
Stringer et al.31, do King's College Hospital, acompanharam 61 crianças com atresia biliar, após cirurgia de Kasai. Elas foram submetidas à EDA após 2,5 anos ou mais da cirurgia; 41 (67%) exibiam VES e 17 (28%) já haviam apresentado episódio anterior de HDA. A média de idade na ocasião do primeiro episódio de HDA foi de três anos, variando de 0,5 a 9,3 anos. A idade dos pacientes que tinham varizes, com ou sem história anterior de HDA, foi maior que aqueles sem varizes, no entanto, essa diferença não foi significativa. Tanto a icterícia quanto os episódios recorrentes de colangite eram mais frequentes no grupo com história de HDA. A esplenomegalia clínica foi significativamente mais frequente em crianças com história de HDA. No entanto, VEs e HDA ocorreram em crianças sem esplenomegalia clinicamente palpável. Não houve relação entre varizes e a idade à época da cirurgia. Dos 24 pacientes que tinham varizes, mas não tinham história de HDA, nove possuíam varizes de grosso calibre (14,8% dos 61 pacientes), sendo, então, submetidos à escleroterapia primária.
Uma vez que o início dos episódios de HDA em adultos com cirrose associa-se a baixa taxa de sobrevida - 17% em cinco anos -, extrapolou-se que a HDA em crianças com atresia biliar poderia predizer deterioração clínica do fígado e que, com isso, a criança deveria ser encaminhada para o transplante. No entanto, Miga et al.34 demonstraram sobrevida melhor, excedendo 50% em cinco anos em crianças com atresia biliar e história de HDA. Os subgrupos de pacientes com diferentes concentrações de bilirrubinas apresentam diferenças marcantes na sobrevida após o primeiro episódio de HDA.34 As diferentes causas de hipertensão porta em adultos e crianças, com piora da função hepática na cirrose alcoólica em relação à cirrose biliar, o potencial de crescimento das crianças com desenvolvimento de colaterais intra-abdominais, além de outros fatores, podem atuar favorecendo o prognóstico de crianças com cirrose. Esses dados tornam inadequadas as extrapolações dos resultados de experiências em adultos para crianças.
Enquanto entre os adultos a hipertensão porta é causada principalmente pela cirrose, nas crianças parcela considerável dos casos é representada pela trombose de veia porta. A fibrose hepática congênita, causa pré-sinusoidal de hipertensão porta, também é comum nos serviços de hepatologia pediátrica. Além disso, nas crianças com trombose de veia porta, a função hepatocelular está preservada e as complicações cardíacas e pulmonares relacionadas com a cirrose estão ausentes. Por outro lado, a resposta hemodinâmica ao sangramento ou aos fármacos também pode ser diferenciada entre as faixas etárias. A literatura pediátrica ainda é muito escassa nessa área. A profilaxia primária tem sido extensivamente estudada entre os adultos, mas não adequadamente em crianças. O papel dos beta-bloqueadores na profilaxia primária em crianças ainda carece de embasamento.
Embora haja consenso com algumas controvérsias em adultos, em crianças não há recomendação formal para a triagem endoscópica, nem dados de literatura que embasem tal recomendação.29,41 O que tem ocorrido na prática é a assimilação dos dados e recomendações de adultos na condução dos casos pediátricos. A recomendação feita por Molleston41 é de que as crianças com cirrose e hipertensão porta, especialmente com esplenomegalia e plaquetopenia, devem ser monitoradas cuidadosamente por causa do alto risco de sangramento. No entanto, não é explicitado como deve ser feito o acompanhamento. O autor cita fatores preditivos relatados de estudos em adultos, não existindo, porém, estudo nessa área realizado na faixa etária pediátrica.
Se entre os adultos existe a preocupação com a realização de exames desnecessários, na faixa etária pediátrica essa preocupação é ainda mais importante, pelo fato de a EDA ser realizada, em grande parte dos casos, sob anestesia geral. Várias questões importantes têm sido levantadas na prática diária com os pacientes pediátricos. A triagem endoscópica para instituição da profilaxia primária é útil em crianças? Existem fatores preditivos clínicos e laboratoriais que possam dividir as crianças em grupos de risco para VEs e, assim, otimizar a indicação da EDA? A escassez de dados na faixa etária pediátrica torna importante a realização de pesquisas nessa área, incluindo estudos multicêntricos para obtenção de número adequado de pacientes para responder a essas importantes questões.
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