RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 32 DOI: https://dx.doi.org/10.5935/2238-3182.v32supl.01.08

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Resumo

O uso da cannabis na oftalmologia: uma revisão integrativa

The ue of Cannabis In ophthalmology: an integrative review

Anna Carlinda Arantes de Almeida Braga1; Bruno Cabaleiro Cortizo Freire2; Fernanda Guimarães Lopes3; Haroldo Gonçalves Dias Junior4; Driely Cristina Silva Ferreira5; Fábio Nishimura Kanadani5,6

1. Centro Universitário de Belo Horizonte. Belo Horizonte - MG, Brasil
2. Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte - MG, Brasil
3. Faculdade Ciências Médicas de Minas Gerais. Belo Horizonte - MG, Brasil
4. Instituto de Olhos Ciências Médicas de Minas Gerais. Belo Horizonte - MG, Brasil
5. Glaucoma Instituto. São Paulo - SP, Brasil
6. Mayo Clinic, Jacksonville - USA

Endereço para correspondência

Anna Carlinda Arantes de Almeida Braga
Email: annacarlinda@gmail.com

Instituição: Instituto de Olhos Ciências Médicas. Belo Horizonte - MG, Brasil

Resumo

INTRODUÇÃO: Os canabinóides são substâncias secretadas das flores da Cannabis sativa (família Cannabaceae) que possuem propriedades terapêuticas, apresentando benefícios no manejo de câncer, dor, êmese, inflamação, obesidade, e doenças neurodegenerativas, além de outras propriedades psicotrópicas. Dentro da Oftalmologia, estudos têm reportado uma redução na pressão intraocular (PIO) após a administração de canabinóides exógenos, podendo ser utilizados no tratamento do glaucoma. No entanto, essas substâncias possuem efeito de duração limitada, estão relacionadas a diversos efeitos adversos e ainda não são legalizadas em todos os países.
OBJETIVO: Elucidar as principais inovações, características, viabilidade e limitações em relação a utilização dos canabinoides como terapêutica para afecções oftalmológicas.
METODOLOGIA: Trata-se de uma revisão narrativa, na qual a busca dos artigos foi realizada nas bases de dados PubMed e Biblioteca Virtual em Saúde, em agosto de 2021.
RESULTADOS: Foram incluídos 8 estudos para a análise qualitativa. A maioria dos artigos abordou o uso de canabinóides como terapia alternativa do glaucoma. A administração de canabinóides está relacionada à diminuição da pressão intraocular, porém seu tempo de ação é de apenas 4 horas, e o seu uso prolongado pode levar a dependência, além de outros efeitos adversos. Estudos em animais concluíram que os canabinóides têm propriedades anti-inflamatórias e neuroprotetoras, sendo possíveis alternativas para o tratamento de retinopatia diabética e de uveítes. Ainda foi levantada a hipótese de que propriedade antiespasmódica do cannabis possa ter um benefício no tratamento de blefarospasmo, após falha no tratamento convencional.
CONCLUSÃO: Diversos estudos têm associado benefícios ao uso exógeno dos canabinóides a afecções oftalmológicas, como Glaucoma, Retinopatia Diabética, Uveítes e Blefaroespasmo. No entanto, a maioria dos ensaios abrangem uma amostra pequena de pacientes, outros ainda estão na fase que envolvem o uso de animais. Assim, apesar de um avanço substancial nos estudos envolvendo os canabinóides, ainda faz-se necessário o desenvolvimento de mais trabalhos de qualidade para trazer resultados mais robustos e acurados acerca dos benefícios dessas substâncias nas afecções oftalmológicas, além de análises acerca dos efeitos a longo prazo.

Palavras-chave: Cannabis, Glaucoma, Oftalmopatias.

 

INTRODUÇÃO

Os canabinóides são substâncias secretadas das flores da Cannabis sativa (família Cannabaceae). Estes são ainda classificados em três categorias, a saber: (a) fitocanabinóides (por exemplo, ?9- tetra-hidrocanabinol (THC), canabidiol (CBD); (b) canabinóides endógenos (por exemplo, anandamida (AE), o 1º endocanabinóide identificado) e (c) canabinóides sintéticos (por exemplo, JWH-133, WIN55,212-2).1,2 O número de membros da família dos canabinóides têm aumentado cada vez mais.

Esses compostos possuem propriedades terapêuticas, apresentando benefícios no manejo de câncer, dor, êmese, inflamação, obesidade, e doenças neurodegenerativas, além de outras propriedades psicotrópicas.3 Acredita-se que esses compostos também apresentam benefícios na fisiologia ocular, e estudos têm reportado uma redução na pressão intraocular (PIO) após a administração de canabinóides exógenos. A PIO é o único fator de risco modificável na prevenção à progressão do dano glaucomatoso, e sua elevação pode provocar alterações no fluxo sanguíneo ocular, levando à hipóxia e isquemia da retina e do nervo óptico.4

Com o avanço da legalização da cannabis ao redor do mundo, muitos pacientes têm reivindicado essa opção terapêutica para tratamento do glaucoma e, por isso, é importante que os profissionais de saúde estejam aptos para educá-los a respeito da eficácia e da segurança dessa terapia alternativa.3

Há muitas controvérsias a respeito do benefício do uso medicinal de canabinóides. Isso porque, apesar do seu potencial benefício, apresenta duração limitada, efeitos adversos, além de caráter proibitivo na legislação brasileira.5 O presente trabalho tem como objetivo elucidar as principais inovações, características, viabilidade e limitações em relação à utilização dos canabinoides como terapêutica para afecções oftalmológicas.

 

METODOLOGIA

Trata-se de uma revisão narrativa, na qual a busca dos artigos foi realizada nas bases de dados PubMed e Biblioteca Virtual em Saúde, em agosto de 2021. Para isso, utilizou-se os Descritores em Ciências da Saúde em inglês: Cannabis, Medical Marijuana, Marijuana Use, Ophthalmology, Eye Diseases e Eye Manifestations. Os descritores utilizados foram combinados com os seguintes strings de busca: (((Cannabis) OR (Medical Marijuana)) OR (Marijuana Use)) AND (((Ophthalmology) OR (Eye Diseases)) OR (Eye Manifestations)). A pesquisa incluiu estudos dos últimos 10 anos em humanos e com resumo disponível na íntegra. Ao final da pesquisa, foi realizada uma nova busca na bibliografia dos estudos incluídos para identificar novos estudos relevantes para essa revisão. Não houve restrição de idiomas. Trabalhos que não se enquadram nos critérios de inclusão, que não abordaram as doenças oculares no resumo e que explicaram apenas os efeitos visuais a longo prazo do usuário do Cannabis foram excluídos da seleção.

 

RESULTADOS

Foram identificados 80 artigos científicos na busca das bases de dados eletrônicas. Após a retirada das duplicatas, foi realizada uma triagem pelo título e resumo de 72 trabalhos. Desses, 9 pesquisas foram selecionadas para leitura na íntegra, sendo que 8 foram escolhidas para a análise qualitativa (Figura 1).

 


Figura 1. Fluxograma da seleção dos artigos.

 

Todos os estudos incluídos na análise são revisões na língua inglesa. As características desses trabalhos estão listadas na Tabela 1.

 

 

A maioria dos artigos selecionados abordou sobre o uso do produto químico do Cannabis como terapia alternativa do glaucoma, principal causa de perda irreversível da visão no mundo em decorrência do aumento da pressão intraocular (PIO), sendo esse, o alvo dos atuais tratamentos.6,7 Existem outros componentes que implicam no avanço dessa doença, como a neurodegeneração e a perda de gânglios retinais que não possuem terapias que as possam controlar.7

 

DISCUSSÃO

Mecanismo de Ação

O fitocanabioide THC tem como mecanismo de ação a diminuição da PIO, enquanto o CBD apresenta papel contraditório na literatura.6 Em animais, o THC mostrou-se promissor, visto que alcançou uma redução moderada da morte das células ganglionares da retina. Observa-se uma necessidade de mais estudos desses produtos químicos do Cannabis já que os tratamentos convencionais só agem na diminuição da PIO.8

O cannabis realiza todas as suas atividades usando um sistema composto por receptores canabinóides, endocanabinóides (ligantes) que ativam esses receptores e um ácido graxo enzimático amido-hidrolase que metaboliza endocanabinóides. Existem alvos específicos para a ligação de endocanabinóides no organismo que são referidos como receptores canabinóides. Estes são receptores acoplados a proteínas (GPCR) pertencentes à classe "A" e denominados canabinóides receptor tipo 1 (CB1) e receptor canabinóide tipo 2 (CB2 ).1

A ativação do CB1 na retina pode modular a liberação de uma variedade de neurotransmissores e influenciar o circuito retiniano. Panahi et al. descreveram uma redução dos níveis de endocanabinóides nos olhos de pacientes com glaucoma, reforçando o importante papel dos canabinóides na fisiologia ocular. Esses receptores podem ser encontrados no corpo ciliar, nas células da malha trabecular e no canal de Schlemm, e a sua ativação atua facilitando a drenagem uveoescleral e reduzindo a produção do humor aquoso.9,10

A administração tópica de agonistas de CB1 também foi responsável pela redução da PIO em animais e em humanos portadores de glaucoma, e ainda acredita-se que a maconha tenha um efeito neuroprotetor, inibindo a apoptose e diminuindo os radicais livres. 9,10 Entretanto, apenas 60 - 65% dos pacientes apresentaram uma redução da PIO e Sun et al. confirmam que o tempo de ação varia de 3 a 4 horas apenas, o que faria com que o paciente tivesse que consumir seis a oito doses diárias da maconha medicinal. Até o momento, não há estudos que analisem os efeitos a longo prazo desse uso do cannabis.10,11

Vias de administração

O THC está disponível na forma tópica, colírio, oral, intravenosa e inalatória. A administração tópica alcançou resultados satisfatórios nos testes em animais, mas mostrou-se menos eficaz que as outras formas em humanos. Panahi et al. avaliaram um estudo que utilizou a maconha inalada ou o THC oral a cada 4 horas, em que de 9 pacientes, todos apresentaram diminuição da PIO, mas 7 exibiram tolerância a partir da perda do efeito.9 De acordo com o estudo de Aebersold et al. a biodisponibilidade do CBD administrado por via oral é baixa, e por isso altas doses são necessárias para atingir o efeito terapêutico.6

Apesar de ser uma via de administração extremamente eficiente, o fumo ainda encontra barreiras éticas e legais, além de apresentar maior dificuldade no controle da dose. Ige e Liu analisaram estudos que elucidaram o papel do fumo da substância, sendo que ainda existem poucas pesquisas nessa forma de uso e com pequenas populações voluntárias. Eles afirmaram que a PIO pode ser diminuída em até 30%, porém, assim como afirmado por Sun et al., o efeito tem curta duração. 10

Efeitos adversos

Apesar de o uso esporádico de maconha não causar dependência, devido ao curto período de ação dessas substâncias (3-4 horas) na redução da PIO, seriam necessárias 6 a 8 doses por dia. Um estudo populacional demonstrou que o uso diário está associado com altas taxas de dependência, variando entre 25 e 50% das pessoas que fazem uso diário. Além disso, os efeitos terapêuticos podem reduzir progressivamente devido ao desenvolvimento de tolerância em muitos pacientes. A retirada abrupta da cannabis medicinal também pode resultar em uma síndrome de abstinência, caracterizada por irritabilidade, insônia, inapetência, ansiedade, entre outros sintomas físicos e psicológicos, que persistem por aproximadamente 2 semanas após a cessação.11

Outros efeitos adversos são taquicardia, hipotensão, hiperemia conjuntival e diminuição da secreção lacrimal. O aumento nos níveis de dopamina também pode induzir efeitos psicotrópicos, como euforia, disforia, alterações nos sentidos, déficit cognitivo, sonolência, prejuízo na memória e na coordenação.11 O fumo também pode levar ao desenvolvimento de enfisema pulmonar, e possivelmente câncer. Já a administração tópica pode provocar irritação ocular e lesão corneana.10 A administração oral pode causar uma variedade de sintomas gastrointestinais, uma vez que sua baixa biodisponibilidade requer que sejam administradas altas doses de CBD.6

Outras aplicações

Outra doença de destaque na perda de visão é a retinopatia diabética, caracterizada pela hipóxia, aumento da permeabilidade vascular e angiogênese retinal, pela inflamação consequente da liberação de citocinas pró-inflamatórias na hiperglicemia e pelo estresse oxidativo.6,12 A investigação do uso do CBD ainda está na fase em animais, Cairns et al. e Kokona et al. informam um estudo em ratos, em que a diabetes foi induzida pela estreptozotocina e utilizaram o CBD para a retinopatia dos animais. Nos resultados, constatou-se que a substância tem propriedades neuroprotetoras e anti-inflamatórias.7,12

Essas especificidades do cannabis, são estudadas por Aebersold et al. no tratamento da inflamação e dor na córnea.6 Em um estudo em camundongos com as córneas cauterizadas, a CBD tópica teve como efeito a diminuição da hiperalgesia e do infiltrado de neutrófilos. Por se tratar de uma doença que gera um estado inflamatório, a uveíte também foi analisada. Cairns et al. examinaram trabalhos que utilizaram agonistas do receptor canabinóide 2 em animais e apresentaram resultados satisfatórios.12

Nguyen e Wu (2019) foram os únicos autores que abordaram o uso da maconha medicinal na redução dos sintomas do blefaroespasmo. Trata-se de uma patologia progressiva e irreversível que tem como manifestação a contração involuntária das pálpebras e dos músculos superiores da face. Com sua propriedade antiespasmódica, o cannabis é estudado como terapia após a falha das aplicações com toxina botulínica. A literatura disponível ainda é escassa e controversa, em um ensaio com cinco pacientes em uso da combinação de THC e CBD, três notaram uma diminuição dos sintomas. Entretanto, alguns autores reportaram que esse consumo pode levar a efeitos secundários como ptose e tremores leves nas pálpebras. 13

 

CONCLUSÃO

Desse modo, conclui-se que estudos têm associado benefícios ao uso exógeno dos canabinóides a afecções oftalmológicas, como Glaucoma, Retinopatia Diabética, Uveítes e Blefaroespasmo. Alguns benefícios apontados são: redução da PIO, propriedades neuroprotetoras, anti-inflamatórias e antiespasmódica. No entanto, a maioria dos ensaios abrangem uma amostra pequena de pacientes e outros ainda estão na fase que envolvem o uso de animais. Assim, apesar de um avanço substancial nos estudos envolvendo os canabinóides, ainda faz-se necessário o desenvolvimento de mais trabalhos de qualidade para trazer resultados mais robustos e acurados acerca dos benefícios dessas substâncias nas afecções oftalmológicas, além de análises acerca de seus efeitos a longo prazo.

 

REFERÊNCIAS

1. Maurya N, Velmurugan BK. Therapeutic applications of cannabinoids. Chem Biol Interact. 2018 Sep 25;293:77-88. doi: 10.1016/j.cbi.2018.07.018. Epub 2018 Jul 21. PMID: 30040916.

2. Araújo DSM, Miya-Coreixas VS, Pandolfo P, Calaza KC. Cannabinoid receptors and TRPA1 on neuroprotection in a model of retinal ischemia. Exp Eye Res. 2017 Jan;154:116-125. doi: 10.1016/j.exer.2016.11.015. Epub 2016 Nov 19. PMID: 27876485.

3. Montero-Oleas N, Arevalo-Rodriguez I, Nuñez-González S, Viteri-García A, Simancas-Racines D. Therapeutic use of cannabis and cannabinoids: an evidence mapping and appraisal of systematic reviews. BMC Complement Med Ther. 2020 Jan 15;20(1):12. doi: 10.1186/s12906-019-2803-2. PMID: 32020875; PMCID: PMC7076827.

4. Wu A, Khawaja AP, Pasquale LR, Stein JD. A review of systemic medications that may modulate the risk of glaucoma. Eye (Lond). 2020 Jan;34(1):12-28. doi: 10.1038/s41433-019-0603-z. Epub 2019 Oct 8. PMID: 31595027; PMCID: PMC7002596.

5. Dhingra D, Kaur S, Ram J. Illicit drugs: Effects on eye. Indian J Med Res. 2019 Sep;150(3):228-238. doi: 10.4103/ijmr.IJMR_1210_17. PMID: 31719293; PMCID: PMC6886135.

6. Aebersold A, Duff M, Sloan L, Song ZH. Cannabidiol Signaling in the Eye and Its Potential as an Ocular Therapeutic Agent. Cell Physiol Biochem. 2021 May 14;55(S5):1-14. doi: 10.33594/000000371. PMID: 33984199.

7. Kokona D, Georgiou PC, Kounenidakis M, Kiagiadaki F, Thermos K. Endogenous and Synthetic Cannabinoids as Therapeutics in Retinal Disease. Neural Plast. 2016;2016:8373020. doi: 10.1155/2016/8373020. Epub 2016 Jan 6. PMID: 26881135; PMCID: PMC4736800.

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