RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 32 DOI: https://dx.doi.org/10.5935/2238-3182.v32supl.01.09

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Resumo

O uso da inteligência artificial para diagnóstico da retinopatia diabética: uma revisão narrativa

The use of artificial intelligence for diagnosis of diabetic retinopathy: a narrative review

Bernardo Fontoura Castro Carvalho1; Laura Fontoura Castro Carvalho2; Isabela Matos Takahashi2; Pedro Gabriel Salomão Libânio3; Gabriela Gontijo Vieira4; Raquel Nezio de Carvalho4

1. Centro Oftalmológico de Minas Gerais. Belo Horizonte - MG, Brasil
2. Faculdade Ciências Médicas de Minas Gerais. Belo Horizonte - MG, Brasil
3. Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte - MG, Brasil
4. Instituto de Olhos Ciências Médicas de Minas Gerais. Belo Horizonte - MG, Brasil

Endereço para correspondência

Laura Fontoura Castro Carvalho
Email: laurafontourac@gmail.com

Instituição: Instituto de Olhos Ciências Médicas. Belo Horizonte - MG, Brasil

Resumo

INTRODUÇÃO: Inteligência Artificial pode ser definida como a simulação da inteligência humana por máquinas, possibilitando que programas realizem atividades para as quais julga-se necessário o uso de inteligência. Na medicina, embora a pesquisa acerca da utilidade dessas ferramentas tenha se espalhado para diversas especialidades, é notável o interesse em demonstrar a capacidade diagnóstica destes recursos na oftalmologia, principalmente no contexto da retinopatia diabética.
OBJETIVO: Discutir sobre a aplicabilidade da Inteligência Artificial como ferramenta diagnóstica da retinopatia diabética, citando os principais estudos acerca de sua acurácia e suas limitações.
METODOLOGIA: Revisão narrativa que utilizou artigos disponíveis na íntegra publicados desde julho de 2016 até julho de 2021 além de capítulos de livros com a temática Inteligência Artificial.
RESULTADOS: Foram incluídos 13 estudos para a análise quantitativa e/ou qualitativa, destes, 5 são meta-análises que abordam a acurácia diagnóstica da Inteligência Artificial para o diagnóstico da retinopatia diabética. Foram incluídos 3 capítulos de livros que abordam o aspecto técnico da Inteligência Artificial.
CONCLUSÃO: Recursos de Inteligência Artificial possuem uma boa acurácia para o diagnóstico da retinopatia diabética por meio da análise de retinografias. Entretanto, alguns obstáculos ainda se impõem até que seu uso seja disseminado.

Palavras-chave: Inteligência artificial; retinopatia diabética; diagnóstico precoce

 

INTRODUÇÃO

O termo inteligência artificial (IA), criado em 1956 por John McCarthy1, significa realizar uma tarefa simulando a inteligência humana, utilizando um software ou uma máquina. Assim como o aprendizado dos seres humanos, os sistemas de IA precisam ser expostos a um banco de dados para que eles possam identificar as principais características de uma determinada doença. Esse aprendizado pode, ainda, ser composto por complexas equações matemáticas para que se possa identificar diferentes relações não lineares, por meio de um fluxo de informações conhecido como "redes neurais". Essa forma de treinamento permite a IA julgar e avaliar possibilidades de resultados diferentes, se aproximando ao raciocínio médico ideal2.

A aplicação dessa tecnologia para a realização de triagem e diagnóstico na oftalmologia está focada principalmente em doenças com alta incidência, como retinopatia diabética (RD), degeneração macular relacionada à idade (DMRI), glaucoma, retinopatia da prematuridade, catarata e oclusão venosa retiniana3.

A RD é a complicação vascular mais específica, tanto no Diabetes Mellitus (DM) tipo I quanto no tipo 24. Sabe-se que quase todos os pacientes com DM1 irão apresentar alguma forma de retinopatia após 15 anos de doença e, destes, a maioria apresentará a forma proliferativa da doença5.

O diagnóstico precoce da RD é a melhor forma para se controlar e retardar a perda de acuidade visual característica da doença. Apesar disso, sua realização nem sempre é possível, uma vez que depende de um examinador altamente qualificado, equipamento especializado, aporte financeiro adequado e severo controle de qualidade6. Considerando-se este cenário, a IA surge como uma possível ferramenta auxiliar no diagnóstico precoce, uma vez que seu uso torna a detecção da RD examinador-independente.

Dessa forma, este estudo visa discutir o que se sabe até o momento sobre o uso da IA na oftalmologia, a fim de resumir e facilitar o acesso à informação referente a essa nova forma de triagem dos pacientes que apresentam RD.

 

METODOLOGIA

Trata-se de uma revisão narrativa, na qual a busca de artigos foi realizada na base de dados PubMed, utilizando as palavras-chave "Artificial Intelligence" AND "diabetic retinopathy", em julho de 2021. Como critérios de inclusão, adotou-se artigos disponíveis na íntegra, em humanos, publicados nos últimos 5 anos e no idioma inglês. Os critérios de exclusão, por sua vez, consistiram em: qualquer publicação anterior a 2016, artigos que estejam no critério de inclusão, mas que não atendam aos objetivos do projeto e, por fim, artigos que não sejam redigidos em língua inglesa. Com a finalidade de explicar os detalhes técnicos do funcionamento dos diferentes tipos de IA, foram utilizados capítulos de livros que abordam o tema.

 

RESULTADOS

Foram identificados 388 artigos científicos na base de dados eletrônica. Por meio da leitura dos resumos, foram excluídos os estudos que não abordavam diretamente a performance ou as limitações da inteligência artificial para o diagnóstico da RD. Para a análise da performance da IA no diagnóstico da RD, 5 das 6 meta análises encontradas pela estratégia de busca foram lidas na íntegra e incluídas no artigo. Para as demais seções do artigo, foi realizada uma busca utilizando palavras chave no título objetivando-se encontrar as publicações de maior relevância, totalizando 13 estudos.

 

DISCUSSÃO

Tipos de IA e aplicabilidade para o diagnóstico da RD

Para compreender a forma de diagnosticar RD utilizada pelas máquinas , é necessária a compreensão dos conceitos IA, Machine Learning (ML) , Deep Learning (DL) e Redes Neurais Artificiais.

IA pode ser definida de uma maneira ampla como a simulação da inteligência humana por sistemas computacionais, de forma a conseguir realizar atividades as quais julga-se necessário o uso de inteligência, tais como reconhecimento de voz, reconhecimento visual ou tomada de decisão. O termo ML refere-se a um subconjunto dentro da IA, no qual o uso de ferramentas estatísticas permite que a máquina aprenda automaticamente com a exposição a novas informações, sem a necessidade do input humano para tal. DL, por sua vez, é um subtipo de ML, no qual a própria máquina consegue identificar, dentro dos dados fornecidos a ela, quais são as informações essenciais para que ela execute a função designada. As Redes Neurais Artificiais, inspiradas na estrutura do cérebro humano, estão na base do funcionamento do DL7. São grandes equações matemáticas com milhões de parâmetros, que recebem um input (como por exemplo, os pixels de uma retinografia) e calculam um output (por exemplo, se a retina é saudável ou não). Inicialmente, os parâmetros desta equação são aleatórios, mas conforme a máquina recebe dados e compara o resultado de sua análise (output) com o que é informado a ela como sendo o resultado esperado, tais parâmetros vão automaticamente sendo alterados para uma maior chance de acerto futuramente8.

Para uma melhor compreensão, podemos exemplificar com a comparação entre duas máquinas que possuem a função de diferenciar imagens de retinas saudáveis e retinas acometidas pela RD, uma que opere com base no DL e outra que utilize outra modalidade de ML. Para o sistema baseado no DL, será apenas necessário fornecer dados (imagens de retinas saudáveis ou de retinas acometidas) e informar a qual categoria tal dado pertence (saudável ou patológica). Apenas com essas informações o sistema já é capaz de ajustar seu algoritmo de processamento para que ele se torne cada vez melhor em diagnosticar alterações. Em outras palavras, ele infere as regras de classificação com base nos exemplos dados.

Em contrapartida, para o funcionamento de uma máquina que opere com base em outro sistema de ML, também seria necessário informar quais são as características que devem ser analisadas para que a diferenciação seja realizada (por exemplo, a presença de microaneurismas ou exsudatos).

É interessante citar que, pelo fato dos sistemas que utilizam DL possuírem autonomia para detectar quais são as características mais importantes da imagem para realizar a tarefa, é possível que eles utilizem aspectos até então desconhecidos ou ignorados pelos humanos9. Como exemplo hipotético desta última situação, poderíamos citar uma máquina que, para diferenciar entre imagens de retinas saudáveis ou não com 100% de acurácia, utiliza o número de vasos paralelos na região látero-superior da retina, parâmetro para classificação até então desconhecido pelos humanos.

Embora o DL necessite de um poder computacional e banco de dados maior do que outros métodos de ML, praticamente toda a IA atual criada para o diagnóstico da RD utiliza este método10. Isto ocorre pois ele gera um programa com maior acurácia diagnóstica quando o input possui muitos bits de informação (por exemplo, as dezenas de milhares de pixels em uma retinografia)11.

Acurácia diagnóstica

Em sua metanálise, Wang et al. utilizaram-se de 24 estudos, os quais englobavam ao todo 235.235 pacientes, para estimar quantitativamente a especificidade e sensibilidade do uso de redes neurais para a detecção de RD12. Como resultado final, demonstram que a IA detectou corretamente 91,9% dos pacientes com RD, ao mesmo tempo em que excluiu 91,3% daqueles que não apresentavam a doença12. Tais achados corroboram o fato de que o uso de redes neurais para o diagnóstico de RD apresenta performance superior à de médicos oftalmologistas6.

Wang et al. concluíram também que não existe uma relação linear absoluta entre acurácia diagnóstica e qualidade da imagem, contrapondo conclusão previamente estabelecida a partir de um estudo acerca de microaneurismas12. Evidenciaram que, a partir de determinado limiar, acréscimos na qualidade da imagem não cursariam com melhor e/ou mais precisa detecção de lesões retinianas12. Além disso, demonstraram também que existe um montante mínimo de dados necessários para se treinar o algoritmo, mas que, a partir deste valor, a ampliação do banco de dados não altera a acurácia nem a performance da IA12. Tais conclusões são especialmente relevantes quando se considera os altos custos e tempo envolvidos tanto na geração de exames de imagem com qualidade superior quanto na geração de maiores bancos de dados12, variáveis particularmente relevantes quando se pensa na IA aplicada à programas de triagem na saúde pública.

Visando-se também estabelecer o valor diagnóstico da IA na RD, POLY et al. realizaram uma metanálise na qual foram incluídos 08 estudos que ao todo englobava 706.922 exames de imagem retiniana13. Como resultado, obtiveram AUROC, sensibilidade e especificidade de respectivamente: 98,93%; 74% e 95%13. Além disso, dentre os 08 estudos considerados, 03 deles analisaram ainda a capacidade dos algoritmos em detectar RD capaz de ameaçar a acuidade visual dos pacientes (RD avançada), e os resultados obtidos foram: AUROC: 99.46%; sensibilidade: 98% e especificidade: 92%13.

A IA pode também ser utilizada na detecção de RD através do uso de smartphones - neste tipo de abordagem, um aparelho é acoplado ao celular e funciona como um oftalmoscópio portátil. TAN et al. analisaram a performance deste tipo de IA através de uma metanálise composta por 09 estudos e que ao todo incluía 1430 pacientes14. Destes, 06 avaliaram a capacidade da IA em detectar qualquer grau de RD, e a sensibilidade e especificidade média foram respectivamente: 87.1%; 93.7%13. Além disso, concluíram que este tipo de IA apresenta diferente acurácia a depender do grau de RD, uma vez que se observou aumento progressivo da sensibilidade e especificidade conforme o grau da doença se agravava14.

A partir das performances extremamente satisfatórias obtidas nos estudos, evidencia-se que o uso da AI através de redes neurais pode sim funcionar como um método de screening (triagem) populacional para RD, tornando o processo automatizado e, por conseguinte, examinador-independente - peculiaridade especialmente importante em locais com baixa disponibilidade de recursos técnicos e humanos (médicos oftalmologistas altamente especializados)6.

Principais limitações da IA no diagnóstico da RD

Embora seja esperado que a IA assuma um papel cada vez mais relevante no contexto do diagnóstico da RD, algumas limitações desta tecnologia merecem ser mencionadas.

Durante o processo de aperfeiçoamento das redes neurais artificiais, as retinografias que servem de base para a aprendizagem do algoritmo frequentemente são obtidas sempre da mesma maneira (ex: utilizando câmeras do mesmo modelo e com configurações de contraste iguais). Desta forma, as diferenças na imagem causadas por fatores como o uso de outro modelo de máquina fotográfica irá prejudicar o desempenho do algoritmo, pois ele não consegue associar as alterações na imagem com o fator causal (o uso de um modelo de câmera diferente)16. Também relacionada à padronização das retinografias a serem analisadas pelo algoritmo, é necessário considerar as alterações causadas pela opacificação de meios que se encontram entre a câmera e a retina, como por exemplo a catarata ou leucomas. Tais alterações também podem prejudicar a acurácia diagnóstica.

Outra limitação importante destes algoritmos é o fato deles terem sido treinados apenas para detectar lesões relacionadas à RD. Desta forma, outros tipos de alterações retinianas, mesmo que significativas, podem passar despercebidas pelo programa. Portanto, faz-se necessário algoritmos que consigam detectar outras patologias, além da RD16.

Por fim, é importante citar que as redes neurais artificiais aprenderam com base em retinografias classificadas por oftalmologistas, sendo que esta classificação é considerada como verdade absoluta para o programa. Assim, mesmo que o algoritmo seja perfeito em sua predição, ele ainda estará sujeito a cometer erros que os oftalmologistas cometem ao classificar as imagens.

 

CONCLUSÃO

A IA, por meio de redes neurais artificiais, é capaz de fazer a classificação de retinografias em normais ou acometidas pela RD (em alguns casos, graduar o acometimento) com elevada acurácia. Entretanto, alguns obstáculos ainda se impõem para o uso deste recurso tecnológico como método diagnóstico padrão.

 

REFERÊNCIAS

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3. Padhy SK, Takkar B, Chawla R, Kumar A. Artificial intelligence in diabetic retinopathy: A natural step to the future. Indian J Ophthalmol. 2019;67(7):1004-1009. doi: 10.4103/ijo.IJO_1989_18

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13. POLY, Tahmina Nasrin et al. Artificial intelligence in diabetic retinopathy: Insights from a meta-analysis of deep learning. In: MEDINFO 2019: Health and Wellbeing e-Networks for All. IOS Press, 2019. p. 1556-1557.

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16. Ting DSW, Cheung CY, Lim G, et al. Development and Validation of a Deep Learning System for Diabetic Retinopathy and Related Eye Diseases Using Retinal Images From Multiethnic Populations With Diabetes. JAMA. 2017;318(22):2211-2223