ISSN (on-line): 2238-3182
ISSN (Impressa): 0103-880X
CAPES/Qualis: B2
Oclusão vascular retiniana bilateral mista após infecção por SARS-COV-2 (COVID-19), um relato de caso
Bilateral combined retinal vascular occlusion in asymptomatic patient due to SARS-COV-2 infection (COVID-19), a case report
Isabela Martins Melo1; Gustavo Moreira Madeira2; Lívia Araújo Soares Prado3; Marcella Moreira Madeira4; Alexandre Amaral Yung5
1. Oftalmologista. Departamento de Oftalmologia do Biocor Instituto, Minas Gerais, Brasil
2. Médico Residente. Departamento de Oftalmologia do Instituto da Previdência dos Servidores do Estado de Minas Gerais, Minas Gerais, Brasil
3. Graduando de Medicina. Universidade Federal de Lavras, Minas Gerais, Brasil
4. Graduando de Medicina. Universidade Federal de Lavras, Minas Gerais, Brasil
5. Oftalmologista. Departamento de Oftalmologia do Biocor Instituto, Minas Gerais, Brasil
Isabela Martins Melo
martinsimelo@hotmail.com
Resumo
INTRODUÇÃO: A COVID-19 se associa a um amplo espectro de manifestações, desde pacientes assintomáticos a casos de pneumonia extensa associada à síndrome do desconforto respiratório agudo. Oclusões vasculares da retina também foram reportadas com relativa freqüência, sendo relatadas como complicações do microambiente inflamatório e trombótico causado pela infecção.
OBJETIVO: Esse trabalho tem como objetivo relatar um caso de oclusão de ramo de veia central da retina (ORVCR) em olho direito (OD), associada à oclusão simultânea de veia central da retina (OVCR) com oclusão da artéria ciliorretiniana (OACLR) em olho esquerdo (OE) em um paciente com diagnóstico de COVID-19, sendo essa a provável etiologia.
RELATO DO CASO: Paciente de 62 anos, portador de hipertensão arterial sistêmica controlada, apresentou-se com perda visual bilateral simultânea, súbita e indolor. Ao exame, apresentava acuidade visual (AV) em OD de 20/30 e em OE de 20/800, ausência de defeito pupilar aferente e hemorragias em chama de vela e exsudatos algodonosos próximos à arcada temporal superior em OD e, em OE, edema de disco óptico, ingurgitamento e tortuosidade venosa, hemorragias discóides nos quatro quadrantes e opacificação e edema do feixe papilomacular. À tomografia de coerência óptica, apresentava edema macular em OD e hiperrefletividade e indistinção das camadas internas, associadas espessamento difuso da retina externa em OE. A angiofluoresceinografia do OD demonstrou extravasamento macular e, em OE, não-perfusão capilar no feixe papilomacular, associado a atraso do enchimento venoso e extravasamento retiniano e discal difuso de contraste. O diagnóstico foi de ORVCR em OD associada à OVCR edematosa simultânea com OACLR em OE. O paciente foi submetido a extenso screening sistêmico, no qual as únicas alterações encontradas foram uma elevação no D-dímero e RT-PCR positivo para COVID-19.
DISCUSSÃO: A COVID - 19 é uma infecção sistêmica com impacto significativo no sistema hematopoiético e no processo de hemostasia, predispondo a eventos tromboembólicos tanto na circulação arterial quanto venosa. A coagulopatia associada à COVID-19 também parece estar relacionada aos distúrbios vasculares retinianos, especialmente às oclusões venosas da retina, relatadas em inúmeros casos ao longo dos últimos dois anos.
CONCLUSÃO: O desenvolvimento desse quadro raro (bilateral, simultâneo e misto), em um paciente sem outro fator de risco além da hipertensão arterial bem controlada, sugere que o estado trombo-inflamatório da infecção pela COVID-19 provavelmente teve impacto na patogênese da oclusão.
INTRODUÇÃO
A COVID-19, doença infecciosa causada pelo vírus SARS-CoV-2, foi identificada no final do ano de 2019 e declarada como pandemia em março de 2020. Desde então, observou-se um amplo espectro de manifestações, desde pacientes assintomáticos a casos de pneumonia extensa associada à síndrome do desconforto respiratório agudo1. Distúrbios da coagulação também foram reportados com relativa frequência, especialmente em pacientes com doença grave2,3.
Sabe-se que as oclusões retinianas podem ser complicações de distúrbios vasculares sistêmicos, incluindo doenças inflamatórias e condições que levam ao aumento do estado de coagulabilidade e, neste último ano, aprendemos que o microambiente inflamatório e trombótico causado pela COVID-19 pode ser um desses fatores4, 5, 6, 7, 8, 9.
Diante desse contexto, esse trabalho tem como objetivo relatar um caso de oclusão de ramo de veia central da retina (ORVCR) em olho direito (OD), associada à oclusão simultânea de veia central da retina (OVCR) com oclusão da artéria ciliorretiniana (OACLR) em olho esquerdo (OE) em um paciente com diagnóstico de COVID-19, sendo essa a provável etiologia.
RELATO DE CASO
Paciente do sexo masculino, de 62 anos, portador de hipertensão arterial sistêmica controlada com uma medicação, apresentou-se ao Departamento de Oftalmologia do Biocor Instituto, Nova Lima, Minas Gerais, com perda visual bilateral simultânea, súbita e indolor, dois dias antes da admissão, sem nenhum sintoma sistêmico associado. Ao ser questionado sobre seus antecedentes patológicos, negava histórico de internações ou cirurgias e referia boa adesão ao tratamento da comorbidade. Ao exame oftalmológico, apresentava acuidade visual (AV) em OD de 20/30 e em OE de 20/800. Pupilas isocóricas e fotorreativas, sem defeito pupilar aferente relativo. Biomicroscopia sem alterações. No entanto, à fundoscopia, apresentava hemorragias em chama de vela e exsudatos algodonosos na mácula, próximos à arcada vascular temporal superior, associados ainda à redução do brilho foveal em OD (Figura 1). Em OE, apresentava disco óptico hiperêmico com limites indefinidos, ingurgitamento e tortuosidade venosa aumentados, hemorragias discóides nos quatro quadrantes da retina e ainda um branqueamento do feixe papilomacular, sugerindo opacificação e edema da camada de fibras nervosas (CFNR) na topografia dos ramos da artéria cilioretinana (Figura 2). A tomografia de coerência óptica do OD apresentava hiperrefletividade da CFNR e presença de cistos de líquido intrarretiniano na topografia da mácula superior (Figura 3). Em OE, percebeu-se hiperrefletividade e indistinção das camadas internas da retina, associadas a múltiplos cistos de líquido intrarretiniano e espessamento difuso da nuclear externa, com sombreamento das camadas subjacentes (Figura 4). A angiofluoresceinografia do OD demonstrou áreas de hiperfluorescência por extravasamento na mácula superior, associadas a pontos hipofluorescentes por bloqueio hemático (Figura 5). Em OE, já nas fases precoces do exame, foi possível observar área de hipofluorescência por não-perfusão capilar no feixe papilomacular, associado a atraso importante no enchimento venoso e múltiplos pontos de hipofluorescência por bloqueio hemático (Figura 6). Nas fases tardias, observou-se ainda extravasamento retiniano e discal difuso de contraste. O diagnóstico foi, portanto, de ORVCR em OD associada à OVCR edematosa simultânea com OACLR em OE.
O paciente foi então submetido a extenso screening de doenças cardiovasculares, reumatológicas e hematológicas, no qual as únicas alterações encontradas foram uma elevação do D-dímero e um exame sorológico de RT-PCR positivo para SARS-CoV-2, a despeito de permanecer completamente assintomático do ponto de vista respiratório. Uma vez terminado o isolamento respiratório, foi realizado seguimento oftalmológico do paciente, que evidenciou conversão da oclusão do OE para a forma isquêmica. Portanto, ao novo exame oftalmológico, o paciente apresentava piora da AV do OE para percepção de vultos, associado à defeito pupilar aferente relativo franco e expressivo aumento das áreas de isquemia e do número e extensão das hemorragias evidenciadas no fundo de olho (Figuras 7 e 8). Apesar de instaurado tratamento preventivo, o paciente evoluiu com glaucoma neovascular no OE.
DISCUSSÃO
A COVID-19 é uma infecção sistêmica com impacto significativo no sistema hematopoiético e no processo de hemostasia, predispondo os pacientes a eventos tromboembólicos tanto na circulação arterial quanto venosa2. Distúrbios da coagulação são relativamente comuns em pacientes infectados, devido à intensa resposta inflamatória, disfunção endotelial, ativação plaquetária e estase sanguínea. Em pacientes graves, a hospitalização amplifica ainda mais esse risco, devido à imobilização prolongada, desidratação, uso de cateteres profundos e outras invasões3.
Além do risco de tromboembolismo sistêmico, a coagulopatia associada à COVID-19 também parece estar relacionada aos distúrbios vasculares retinianos. A infecção por si só foi hipotetizada como causadora de microangiopatia retiniana, ocasionando lesões hiperreflexivas ao nível das camadas internas da retina, além da presença de exsudatos algodonosos e micro-hemorragias4. Outra consequência potencialmente relacionada à infecção do vírus SARS-CoV-2 foi a oclusão venosa da retina, alteração retiniana com maior morbidade e que já foi relatada em inúmeros casos ao longo dos últimos dois anos5,6,7,8.
Apesar de multifatorial, a patogênese das oclusões venosas da retina inclui o estado inflamatório e de hipercoagulação como fatores de risco bem estabelecidos, sendo imperativo descartar essas causas em um paciente saudável ou que não tenha antecedentes patológicos significativos9. Ademais, a incidência das oclusões retinianas bilaterais é baixa, cerca de 7,8% na população Norte Americana, e possuem maior probabilidade de serem ocasionadas por síndromes de hiperviscosidade sanguínea.10
CONCLUSÃO
Não é possível determinar se as oclusões retinianas do caso relatado foram causadas diretamente pela COVID-19. No entanto, o desenvolvimento desse quadro raro (bilateral, simultâneo e misto), em um paciente sem outro fator de risco além da hipertensão arterial bem controlada, com RT-PCR positivo para SARS-CoV-2, sugere que o estado trombo-inflamatório da infecção provavelmente teve impacto na patogênese das oclusões.
REFERÊNCIAS
1. Centers for Disease Control and Prevention. 2019 Novel coronavirus, Wuhan, China. Information for Healthcare Professionals. https://www.cdc.gov/coronavirus/2019-nCoV/hcp/index.html (Accessed on February 14, 2020).
2. Sheth JU, Narayanan R, Goyal J, Goyal V. Retinal vein occlusion in COVID-19: A novel entity. Indian J Ophthalmol. 2020 Oct;68(10):2291-2293.
3. Terpos, Evangelos et al. "Hematological findings and complications of COVID-19." American journal of hematology vol. 95,7 (2020): 834-847.
4. Marinho, Paula M et al. "Retinal findings in patients with COVID-19." Lancet (London, England) vol. 395,10237 (2020): 1610.
5. Gaba, Waqar Haider et al. "Bilateral Central Retinal Vein Occlusion in a 40-Year-Old Man with Severe Coronavirus Disease 2019 (COVID-19) Pneumonia." The American journal of case reports vol. 21 e927691. 29 Oct. 2020.
6. Jaydeep A Walinjkar, Sneha C Makhija, Hitesh R Sharma, Sunil R Morekar,1 and Sundaram Natarajan. Central retinal vein occlusion with COVID-19 infection as the presumptive etiology. Indian J Ophthalmol. 2020 Nov; 68(11): 2572-2574.
7. Tal Yahalomi, Joseph Pikkel, Roee Arnon, Yuval Pessach Central retinal vein occlusion in a young healthy COVID-19 patient: A case report. Am J Ophthalmol Case Rep. 2020 Dec;20:100992.
8. Nilesh Raval, Anna Djougarian, James Lin. Central retinal vein occlusion in the setting of COVID-19 infection. J Ophthalmic Inflamm Infect. 2021 Apr 2;11(1):10.
9. Risk factors for central retinal vein occlusion. The Eye Disease Case-Control Study Group. Archives of Ophthalmology. 114(5):545-54, 1996.
10. D Leitner, Akshay Thomas; Sharon Fekrat. Bilateral Retinal Vein Occlusion. IOVS, June 2017, Vol.58, 1548.
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