RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 32 DOI: https://dx.doi.org/10.5935/2238-3182.v32supl.01.12

Voltar ao Sumário

Resumo

Variante no gene TUBB4B em paciente com Amaurose Congênita de Leber com Perda Auditiva Neurossensorial precoce - o primeiro caso brasileiro

TUBB4B variant in patient with Leber Congenital Amaurosis with Early-Onset Deafness - the first brazilian case

Ana Luiza Fernandes Ottoni Porto1,2; Fernanda Belga Ottoni Porto2

1. Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, MG, Brasil
2. INRET Clínica e Centro de Pesquisa, Belo Horizonte, MG, Brasil

Endereço para correspondência

Fernanda Belga Ottoni Porto
fernandabop@gmail.com

tel 55 31 987932809
Rua dos Otoni 735/507
CEP 30150270
Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil

Resumo

INTRODUÇÃO: A Amaurose Congênita de Leber (ACL) é a doença hereditária da retina mais grave e de início mais precoce, caracterizada por cegueira ou deficiência visual grave desde o nascimento. Na maioria das vezes, a ACL é herdada de maneira recessiva.
OBJETIVO: Descrever um caso raro de ACL dominante associada a surdez, relacionada ao gene TUBB4B.
MÉTODOS: Apresentamos o caso de um paciente com baixa visão identificada no primeiro ano de vida e diagnóstico clínico de Amaurose congênita de Leber estabelecido aos 5 anos de idade, quando o eletrorretinograma de campo total mostrou ausência de resposta em ambos os olhos.
RESULTADO: O sequenciamento de última geração identificou uma variante em heterozigose c.1172G> A, p. (Arg391His) sem sentido no gene TUBB4B. O paciente foi então encaminhado para avaliação auditiva, que identificou surdez neurossensorial bilateral moderada, revelando a presença de uma forma sindrômica de ACL dominante.
CONCLUSÃO: Relatamos um paciente com diagnóstico de ACL na forma autossômica dominante mais rara, associada à perda auditiva neurossensorial, relacionada à variante TUBB4B. O diagnóstico genético ofereceu uma oportunidade para investigar e identificar a surdez e fornecer um atendimento médico mais personalizado, incluindo aconselhamento genético, prognóstico e manejo dos sintomas. Além disso, abre espaço para que o paciente possa ter acesso futuro a terapias moleculares, à medida que estas se desenvolvem.

Palavras-chave: Amaurose Congênita de Leber, Distrofias Retinianas hereditárias, Surdez Neurossensorial, TUBB4B, Distrofia dos Bastonetes e Cones, Fotorreceptor, Retina

 

INTRODUÇÃO

A Amaurose congênita de Leber (ACL) é a doença hereditária da retina mais grave e de início mais precoce, sendo responsável por cerca de 5% dos casos de distrofias retinianas 1. A ACL é clinicamente caracterizada por um quadro de cegueira ou deficiência visual grave desde o nascimento, nistagmo, resposta pupilar amaurótica e ausência de resposta no eletrorretinograma (ERG) de campo total 2. Comumente também pode apresentar sinal óculo-digital de Franceschetti, ceratocone e catarata 3. Apesar de haver essa caracterização bem definida, a ACL é marcada por uma heterogeneidade clínica e genética significativa, o que torna o seu diagnóstico desafiador. Ela afeta 1: 30.000 indivíduos 4; com prevalência de 180.000 indivíduos no mundo 1.

Mutações em 25 genes respondem por 80% dos indivíduos com ACL 5. O diagnóstico se baseia em uma avaliação clínica qualificada, no entanto, com os avanços na área da genética, o sequenciamento de última geração se apresenta como uma excelente ferramenta complementar uma vez que possibilita a identificação de variantes associadas à ACL, permitindo a realização de um diagnóstico molecular em 75% dos casos 2.

A ACL tipicamente, se apresenta como uma doença de herança autossômica recessiva e como uma anomalia ocular isolada, sem envolvimento sistêmico 6. Entretanto, ocasionalmente pode estar associado a síndromes envolvendo disfunções ciliares multissistêmicas 4. Descrevemos um caso raro de ACL associada a surdez, relacionada ao gene TUBB4B de herança dominante e ainda apenas alguns esporádicos casos relatados no mundo, sendo o primeiro caso relatado no Brasil 4.

 

METODOLOGIA

Esse estudo foi conduzido em acordância com a declaração de Helsinki e foi aprovado pelo comitê de ética da Santa Casa de Misericórdia de Belo Horizonte a partir do parecer de número 4.823.285. Após aprovação do Comitê de Ética e obtenção do TCLE, foi feita uma revisão dos dados contidos no prontuário médico.

 

DESCRIÇÃO DO CASO

Paciente de 8 anos, sexo masculino, filho de pais não consanguíneos e sem história familiar de baixa visão. Teve sua baixa visão identificada por seus pais em decorrência de frequentes quedas e tropeços quando começou a andar. O paciente apresentou exame neurológico e ressonância magnética do cérebro sem alterações. Aos cinco anos, realizou eletrorretinograma de campo total que mostrou ausência de resposta em ambos os olhos. Nessa idade, acuidade visual era no olho direito 5/125 (+ 6,0 esf -1,0 cil x 180°) e no olho esquerdo 5/125 (+ 6,0 esf -1,0 cil x 175°); as retinas exibiam vasos finos, aparência de sal e pimenta do pólo posterior, retina periférica amarelada com manchas pigmentadas arredondadas no fundo. O sequenciamento de última geração identificou uma variante em heterozigose c.1172G> A, p. (Arg391His) sem sentido no gene TUBB4B, provavelmente causada por uma mutação do tipo "de novo". O paciente foi então encaminhado para avaliação auditiva (figuras 1 e 2), que identificou surdez neurossensorial bilateral moderada, revelando a presença de uma forma sindrômica de ACL dominante.

 


Figura 1: Audiometria Tonal

 

 


Figura 2: Timpanometria

 

DISCUSSÃO

A ACL é uma doença genética heterogênea, de herança majoritariamente autossômica recessiva. O site RetNet - Retinal Information Network lista 23 genes recessivos e 3 genes dominantes relacionados à doença 7. Esses genes estão relacionados ao desenvolvimento e funcionamento dos fotorreceptores retinianos. O desenvolvimento de técnicas de sequenciamento de última geração e o uso de testes mais abrangentes, têm possibilitado a identificação de genes incomuns relacionados à doença, além da descoberta de novos genes.

A variante TUBB4B apresentada pelo paciente foi descrita apenas em alguns casos esporádicos na literatura. Essa variante está ausente nas coortes de controle de população do Genome Aggregation Database e todas as ferramentas in silico utilizadas prevêem que esta variante seja prejudicial à estrutura e função da proteína. A análise funcional em células cultivadas com superexpressão de TUBB4B de tipo selvagem ou mutante com marcação FLAG, mostrou que o TUBB4B mutante é capaz de se dobrar, formar heterodímeros alfa-beta e co-montar na rede de microtúbulos endógenos 6. No entanto, com a variante, a dinâmica de crescimento dessas estruturas foi alterada de forma consistente, mostrando que essas mutações têm um impacto significativo no crescimento normal de microtúbulos6.

As doenças envolvendo perda auditiva neurossensorial são essencialmente condições não sindrômicas monogênicas atribuídas a disfunções celulares do ouvido interno (6) . Entretanto, estão associadas a distrofias retinianas tipicamente em síndromes multisistêmicas, particularmente em doenças metabólicas e ciliopatias 8. Até recentemente, a Síndrome de Usher (MIM: PS276900), de herança recessiva e caracterizada por disfunção vestibular e perda progressiva da visão, era a única doença conhecida que envolvia o acometimento retiniano e auditivo 4. Entretanto, outros genes associados à perda auditiva e distrofia de retina incluem ALMS1, TUBB4B, CEP78, ABHD12 e PRPS1 9.

Luscan et al., em seu estudo de 2017, foi o primeiro a reportar a variante Arg391 no gene TUBB4B (ß-tubulin 4B isotype-encoding) como causadoras de ACL associada a surdez neurossensorial, em quatro famílias 6. Em 2021, Medina et al., relatou duas crianças com perda visual identificada aos 2 anos de idade e perda auditiva relacionada ao TUBB4B 9. O paciente que aqui reportamos é o primeiro caso de ACL associada a surdez relacionada à variante no gene TUBB4B no Brasil. Em conjunto, as esporádicas variantes que têm sido relatadas ao redor do mundo ampliam os conhecimentos acerca dessa condição a uma literatura crescente.

O diagnóstico genético preciso da ACL nesse paciente permitiu o diagnóstico de uma doença sistêmica, aconselhamento genético adequado, auxiliou entendimento mais acurado do prognóstico e possibilitou uma intervenção precoce da surdez, buscando otimizar o desenvolvimento cognitivo, social e da linguagem. Além disso, abre espaço para acompanhamento das pesquisas e acesso futuro a terapias moleculares.

 

REFERÊNCIAS

1. Kondkar AA, Abu-Amero KK. Leber congenital amaurosis: Current genetic basis, scope for genetic testing and personalized medicine. Exp Eye Res. dezembro de 2019;189:107834.

2. Porto F, Jones E, Branch J, Soens Z, Maia I, Sena I, et al. Molecular Screening of 43 Brazilian Families Diagnosed with Leber Congenital Amaurosis or Early-Onset Severe Retinal Dystrophy. Genes. 29 de novembro de 2017;8(12):355.

3. Kumaran N, Pennesi ME, Yang P, Trzupek KM, Schlechter C, Moore AT, et al. Leber Congenital Amaurosis / Early-Onset Severe Retinal Dystrophy Overview. 4 de outubro de 2018;15.

4. Mechaussier S, Marlin S, Kaplan J, Rozet J-M, Perrault I. Genetic Deciphering of Early-Onset and Severe Retinal Dystrophy Associated with Sensorineural Hearing Loss. In: Bowes Rickman C, Grimm C, Anderson RE, Ash JD, LaVail MM, Hollyfield JG, organizadores. Retinal Degenerative Diseases [Internet]. Cham: Springer International Publishing; 2019 [citado 15 de julho de 2021]. p. 233-8. (Advances in Experimental Medicine and Biology; vol. 1185). Disponível em: http://link.springer.com/10.1007/978-3-030-27378-1_38

5. Kumaran N, Moore AT, Weleber RG, Michaelides M. Leber congenital amaurosis/early-onset severe retinal dystrophy: clinical features, molecular genetics and therapeutic interventions. Br J Ophthalmol. setembro de 2017;101(9):1147-54.

6. Luscan R, Mechaussier S, Paul A, Tian G, Gérard X, Defoort-Dellhemmes S, et al. Mutations in TUBB4B Cause a Distinctive Sensorineural Disease. Am J Hum Genet. dezembro de 2017;101(6):1006-12.

7. the Retinal Information Network [Internet]. Disponível em: https://sph.uth.edu/retnet/

8. Mysore N, Koenekoop J, Li S, Ren H, Keser V, Lopez-Solache I, et al. A Review of Secondary Photoreceptor Degenerations in Systemic Disease. Cold Spring Harb Perspect Med. novembro de 2015;5(11):a025825.

9. Medina G, Perry JA, Oza A, Kenna M. Hiding in Plain Sight: Genetic Deaf-Blindness is not Always Usher Syndrome. Mol Case Stud [Internet]. 21 de maio de 2021 [citado 15 de julho de 2021]; Disponível em: http://molecularcasestudies.cshlp.org/lookup/doi/10.1101/mcs.a006088