RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 32 e-32301 DOI: https://dx.doi.org/10.5935/2238-3182.2022e32301

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Educação Médica

A medicina contemporânea pode fazer mal para os pacientes?

Can contemporary medicine damage patients?

José de Oliveira Campos1; Enio Roberto Pietra Pedroso2; Júlia Ribeiro Vaz de Faria3*

1. Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, Minas Gerais, Brasil
2. Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil
3. Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais - FCMMG, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil

Endereço para correspondência

Júlia Ribeiro Vaz de Faria
E-mail: juliaribeirovaz@gmail.com

Recebido em: 28 Dezembro 2021
Aprovado em: 06 Fevereiro 2022
Data de Publicação: 27 Maio 2022

Fontes Apoiadoras: Não há.

Conflito de Interesse: Não há.

Editor Associado Responsável:

Nestor Barbosa de Andrade
Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Uberlândia
Uberlândia/MG, Brasil

Resumo

O equilíbrio que o senso comum permite pode ser a resposta para que a interferência da ciência não incorra em transformação da ação médica, processo semelhante ao que ocorre em uma linha de montagem de uma fábrica. É preciso combinar ciência e arte, objetividade e subjetividade, em que a compaixão constitua a essência de toda a relação humana, princípio da medicina e necessária para que a prática médica conspire em busca do bem-estar que todos almejam e merecem.

Palavras-chave: Educação Médica; Educação em Saúde; Escolas de Medicina; Formação Médica, Sistema de Saúde.

 

O que é medicina?

A medicina (medeo: cuidar, kline: debruçar) constitui-se na forma como o ser humano inclina-se para o cuidado da pessoa com o objetivo de obter e manter a sua saúde, isto é, o seu bem-estar biopsicosocialculturalespiritual, e não trata apenas a doença. Expressa o esforço humano não só em entender a si mesmo, em seu contexto objetivo e subjetivo, mas também em entender sua inserção familiar e social, suas apreensões e necessidades, suas atitudes e crenças desde o nascimento até a sua morte. Trata-se de serviço humanístico e humanitário; e requer de quem a pratica esforço em busca da consciência de si, da natureza e da vida; e competência em ousar, transgredir e transformar a própria vida e de quem lhe pede ajuda em busca de bem-estar1-5.

É fácil definir esse bem-estar? É provável que seja tão variável quanto sejam as pessoas e suas sociedades; e dependa da evolução histórica e das possibilidades decorrentes do desenvolvimento intelectual, tecnológico e da sensibilidade humana.

Ser médico

O médico é o ser humano que assume esse debruçar sobre o cuidado, sobre o acolher, o cuidar do outro, como tarefa de sua própria vida1,3,6-9.

A organização formal da sociedade em busca da formação do médico implica em vários pressupostos que buscam orientar como promover saúde, atenuar doença, aliviar desconforto, assistir incapacidade, evitar morte prematura e promover bem-estar. Seus recursos são os mesmos da relação humana apropriada, em que o exame clínico aproxima o médico do paciente e sua família, e permite a síntese e o julgamento sobre o que altera a relação saúde-doença, como prepara a terapêutica e estabelece o exercício da influência infinita em busca do bem-estar que todos procuram1,5.

O estabelecimento do diagnóstico não significa, necessariamente, a melhora da saúde. É preciso entender a exposição e o desnudamento objetivo e subjetivo da pessoa ao médico, que permite o estabelecimento da cumplicidade nessa relação, em busca de vida melhor, respeitosa e digna. Representa a confidência e a solidariedade do médico ao seu paciente desde o momento em que o paciente nasce, experimenta-se, ajuíza a sua experiência, entende a existência, vive a sabedoria do juízo, busca o bem-estar na própria essência, conscientiza-se da própria morte e transcende a matéria. Representa sentir com o sentimento do outro - compaixão -, tarefa que não só envolve, mas ultrapassa a ciência e se revela na experiência, ânimo, caráter, trabalho e força das palavras; em fazer, inclusive, o doente sentir a doença em paz7.

A dimensão da medicina

A perspectiva da medicina, portanto, requer sentir e entender a natureza humana, o que é mais do que ciência, pois utiliza as ciências naturais para o seu exercício, mas nutre-se de humanismo em sua ação de perscrutar a multiplicidade humana; em sondar a angústia, a felicidade, a mentira, a verdade, a responsabilidade, o descuido, a regularidade e o acaso que acompanha cada pessoa. Busca a percepção da plenitude humana, e entende o que o objetivo e o subjetivo de cada pessoa expressa. Procura entender os mecanismos que determinam as anormalidades objetivas e as influências subjetivas de tudo que afeta o ser humano, e enfrenta desafios desconhecidos não organizados pela ciência6-10.

Requer ainda intuição, senso crítico, percepção da validade da qualidade de vida; e entendimento dos fatores genéticos, epidemiológicos, antropológicos, psicológicos e sociais. O conhecimento da medicina estabelece-se pelo relato de caso, pela comparação de casuística, pelo estudo controlado, pela metanálise e por outras formas de busca da percepção científica do entendimento de como obter e perder o bem-estar6,11,12.

O diagnóstico e a terapêutica anteriormente eram realizados, na maioria das vezes, com base no empirismo, na experiência pessoal e popular; e em alguns aforismos, como: "o que é comum é comuníssimo e raro raríssimo"; "o médico não pode ser ingênuo"; "o médico não pode machucar alguém"; "para o que não há remédio, e remediado está" e "não existem doenças, mas doentes"1-5,13.

Esse sentido de avaliar a prática médica revela o quanto a observação pessoal, com o senso crítico de cada um, constituía a máxima da medicina. O objetivo diante dessa perspectiva constituía-se em contribuir, assessorar, estimular e conviver para que todos pudessem ter vida digna, solidária e de bem-estar.

A medicina contemporânea foi construída em função da contribuição da análise criteriosa dos postulados de Koch, baseados na observação da doença em humanos. A correlação com a ocorrência em animais de experimentação, a extrapolação em relação à observação humana anterior, a valorização da epidemiologia clínica, a análise de óbitos e a avaliação macro e microscópica de como a doença foi capaz de provocar a morte contribuíram para os avanços na medicina14-17.

Os estudos multicêntricos; a análise de múltiplas casuísticas; e os testes comparativos entre propostas clínicas, propedêuticas e terapêuticas fizeram a medicina avançar exponencialmente no último século. O conhecimento em medicina evolui hoje de forma que um fato ou fenômeno novo é apresentado em cada 48 horas! A publicação em medicina atinge mais de 400.000 trabalhos por ano! Como se comportar para contribuir para que o paciente se sinta personalizado e não uma engrenagem nesse sistema10-14?

É preciso não deixar que os avanços da biologia molecular - estrutural, imunologia e genética - impeçam a valorização do que pode contribuir a psicologia, antropologia e sociologia sobre a vida humana e a sua morbimortalidade.

É necessário abordar a doença e o doente. O paciente precisa sentir-se bem por ir à consulta. O sucesso terapêutico depende não só da doença resolvida, mas da relação entre o médico e seu paciente-família-comunidade. É preciso sensibilidade, atenção e cumplicidade para conspirar com o paciente, e não só explicar resultado, probabilidade, efeitos adversos e custos. O equilíbrio que o senso comum permite pode ser a resposta para que a interferência necessária da ciência não incorra em transformação da ação médica em mesmo processo que ocorre em uma linha de montagem de uma fábrica14,15.

Evolução da medicina

Observa-se, desde os meados do século 20, evolução espantosa dos conhecimentos incorporados à medicina, especialmente nas áreas da genética, da fisiopatologia das doenças, dos métodos diagnósticos e da terapêutica16.

O conhecimento avançou em velocidade extraordinária, iniciando-se em relação às patologias de órgãos, das células, como determinada por Virchow, Koch, Pasteur, Freud, Röetgen e Currie, ultrapassando as moleculares e cada vez mais se aproximando do genoma. Evoluiu para a visão científica baseada na observação das evidências, sob rigoroso controle dos dados, em que a demonstração de sua reprodutibilidade e de suas associações decorria de avaliações de ensaios controlados, como a revelação e sustentação da verdade, orientada pelos postulados de Koch. Esses avanços permitiram solucionar graves problemas de saúde, antes inimagináveis ou inatingíveis, entretanto, sem a compreensão de seu uso racional, sendo muitas vezes aplicado de forma inútil ou fútil ou com o prejuízo da saúde, sem considerar as necessidades aparentemente ilimitadas dos pacientes diante dos escassos recursos disponíveis10,14,15.

O conhecimento cada vez mais particularizado requereu a divisão do corpo e da alma, do corpo em partes, cada vez menores, o que resultou em visão de técnicas, de especialidades, de doenças e de abordagens. A formação geral foi, por isso mesmo, pulverizada de forma a se desdobrar em infinitas especialidades, em decorrência da fragmentação do conhecimento. Essa característica conduziu o comportamento humano para a visão particularizada do todo, o que coincidiu com a tendência à solidão e ao individualismo da sociedade, instalando-se com plenitude a era da informação. Associou-se a isso a ganância, a busca desenfreada pelo acúmulo de patrimônio, o consumo, a valorização estética, a busca da eternidade e juventude, o individualismo, que determinam o aparente bem-estar da sociedade contemporânea9,11.

Exame clínico

Hipócrates ensinou que o médico deve examinar o paciente de forma a observar cuidadosamente os sintomas, fazer o diagnóstico e depois o tratar, estabelecendo os fundamentos da medicina clínica, conforme aconselha Osler: "escute o seu paciente, ele está fazendo o diagnóstico para você"12,15.

O exame clínico revela a expressão da doença no paciente. Permite ao médico aproximação, conspiração e cumplicidade ao paciente. Trata-se de momento singular e especial, em que mais do que a objetividade da doença, está presente toda a sua representação no doente. Nada supera a "mensagem" que o médico transmite, nesse encontro, de sua disposição em ajudar ao paciente a obter vida melhor. Os primeiros encontros desencadeiam sentimentos fundamentais para os passos seguintes da missão médica, como: confiança, respeito e confidência. Esse encontro estabelece coerência, opinião, crença e harmonia; constituindo-se oportunidade ímpar de troca de experiências, inclusive com a família e a sociedade16-19.

O exame clínico é insubstituível em sua potencialidade de revelar particularidades não objetivas, possibilita confidência e concede privacidade20. O raciocínio clínico é também consequência natural do exame clínico que revela lógica, equilíbrio e juízo, e se aplica na abordagem necessária para que o bem-estar seja restaurado4,8,11,13.

O exame clínico constitui-se mais do que a ciência pode revelar: usa as ciências naturais, mas nutre-se da convicção, sensibilidade, impressão, experiência e prática. Assim perscruta a multiplicidade e plenitude humanas; sonda a angústia, felicidade, mentira, verdade, responsabilidade, descuido, regularidade e acaso; entende a fisiopatologia, enfrenta desafios desconhecidos e não organizados pela ciência; combina realidade-esperança; ajuda no choque, negação, depressão e aceitação de doença fatal.

Substituição do exame clínico

Observa-se, na atualidade, a substituição abusiva do exame clínico pela propedêutica complementar. Considera-se como paradigma contemporâneo que o método clínico é insuficiente, incapaz diante da autossuficiência da propedêutica complementar em determinar a certeza do diagnóstico. Os avanços, especialmente direcionados para a cardiologia e as neurociências, foram conduzindo aleatoriamente para a superespecialização médica, tornando a medicina altamente competente em áreas cada vez mais limitadas - mas muito melhor remuneradas e respeitadas, do que as áreas gerais que passaram a ser consideradas de menos valia. Os pacientes passaram a ser "fatiados" em órgãos e sistemas17-21.

Os sintomas físicos são responsáveis por mais da metade de todas as consultas ambulatoriais, mas o modelo predominante de atenção focada na doença é inadequado para muitos desses encontros motivados por sintomas. Além disso, a quantidade de treinamento médico dedicado à compreensão, avaliação e tratamento dos sintomas comuns é desproporcionalmente pequena em relação à sua prevalência, comprometimento e custos com assistência médica21.

Esta revisão narrativa sobre sintomas físicos aborda quatro questões epidemiológicas comuns: causa, diagnóstico, prognóstico e terapia. É preciso considerar que: 1) pelo menos um terço dos sintomas comuns não têm explicação explícita e baseada na doença (5 estudos na atenção primária, 1 em clínicas especializadas e 2 na população geral); 2) a história e o exame físico por si só contribuem com 73% a 94% das informações diagnósticas, respectivamente, com testes e procedimentos dispendiosos contribuindo muito menos (5 estudos de múltiplos tipos de sintomas e 4 de sintomas específicos); 3) os sintomas são responsáveis ??por mais da metade de todas as consultas ambulatoriais ou mais de 400 milhões de consultas anuais nos Estados Unidos18,20.

Qual estratégia mais adequada? Deve ser solicitado algum exame? A vigilância do paciente pode substituir exame complementar?

É essencial para o entendimento do todo, que sejam revalorizadas as áreas gerais da medicina como: clínica médica, pediatria, ginecologia-obstetrícia e cirurgia geral.

Exame clínico como base para o raciocínio clínico e a abordagem diagnóstica

Excluídos os diagnósticos em que a competência para que sejam realizados é determinada pelo seu reconhecimento imediato, é fundamental que o médico exerça a investigação cuidadosa através da escuta do paciente, sua família e seus acompanhantes. Essa comunicação deve ultrapassar a visão de problemas orgânicos e deve permear o imponderável psiquismo, ainda não passível de comprovação à propedêutica complementar.

O médico bem treinado é capaz em poucos minutos, no decorrer da apresentação das queixas e por intermédio do método hipotético-dedutivo, de discernir duas ou três hipóteses diagnósticas, que poderão ser elaboradas, comprovadas, ou extrapoladas com a participação do exame físico, não necessariamente completo, mas conduzido pelas hipóteses sugeridas. Em geral, uma das hipóteses é verdadeira em 75% dos casos. Poderão entrar em cena, nesse momento, a propedêutica, que é complementar ao exame clínico, escolhida de acordo com sua capacidade de comprovação ou de fortalecer a possibilidade diagnóstica e também para excluir outras, através de sua sensibilidade e especificidade20,21.

Nada supera a gratificação do encontro médico-paciente do que o diagnóstico bem conduzido, correto e com a mínima necessidade de intervencionismo.

Propedêutica complementar

Não existem exames complementares que apresentam 100% de sensibilidade ou especificidade. É fácil deduzir, portanto, que podendo fornecer resultados falso-positivos ou falso-negativos, a combinação de tantos exames, solicitados como se estivesse sendo caçado com uma cartucheira, poderá acertar o que não se quer e errar o alvo. Deve-se lembrar que exames de imagem podem ter interpretações diferentes por investigadores diferentes (discordância interpessoal), ou pelo mesmo investigador, quando a mesma imagem lhe for submetida em momentos diferentes (discordância intrapessoal)22-24.

Resultados "anormais" poderão exigir novas investigações que, em sua maioria, não têm qualquer significado para a saúde dos pacientes, mas que, podem determinar a realização de novos exames, o que inclui novas intervenções, muitas delas com sofrimento para o paciente. O paciente será transformado em "doente", consumidor de remédios e de atenção médica desnecessária. O desperdício acarretado pelo uso de propedêutica complementar e procedimentos desnecessários produzem um gargalo impeditivo de seu uso, quando realmente são necessários21.

O diagnóstico correto enseja a aplicação do tratamento, que pode visar a prevenção primária, secundária, minorar o sofrimento ou curar; além de expandir para a família, vizinhos e comunidade a perspectiva do diagnóstico estabelecido, sua prevenção e profilaxia23,24.

As associações médicas, especialmente nos países desenvolvidos, preocupam-se cada vez mais com o uso inadequado de métodos diagnósticos, tratamentos e procedimentos desnecessários e que podem comprometer a saúde, o que calculam comprometer 30% do que é praticado, com imensos prejuízos individuais e sociais. Exemplos desses movimentos são o High Value Medicine e Wise Medicine propostos, nos Estados Unidos e na Inglaterra, pela ABIM Foundation American College of Physicians; e pelo Dont Do, respectivamente. O desperdício no Brasil pode ser maior, como revelado por estudos feitos pela Agência Nacional de Saúde, de que o uso de ressonância magnética é, proporcionalmente, maior do que é realizado nos Estados Unidos, que também não representa exemplo positivo24.

Ensino médico

As considerações apresentadas ao longo deste texto remetem à responsabilidade na condução de toda a crítica e a transformação médica a ser acreditada pelas faculdades de medicina e associações médicas. Nesse sentido, as instituições devem abraçar a luta para a aplicação correta das conquistas da medicina contemporânea, com seriedade, competência e ética13,21.

A escola médica é, naturalmente, onde a medicina é exposta ao seu aprendiz, responsável pelo desenvolvimento da crítica e pela criação de conhecimentos. É território que proporciona oportunidades de encontro com o controverso; em que a aplicação de novos processos técnico é desenvolvida, aplicada de forma plena e discutida, sem tendenciosidade; regida pelo balizamento ético e pela missão humanitária. É onde a visão do paciente não possui limites de órgãos-sistemas, corpo-alma e indivíduo-coletivo, além de permitir ultrapassar conhecimentos e técnicas e ampliar relacionamento interpessoal. É onde o transcender a capacidade técnica, o conhecimento científico constitui-se em tarefa comum, em compaixão, em interesse pela pessoa e pela vida11-16.

É local onde é preciso estabelecer salvaguardas para quem terá como tarefa receber confidência, intimidade, autorização para atingir o aparente indevassável espírito humano de outrem, mesmo sem ter conseguido entrar no próprio. É local para perceber o limite da ciência; usar com equilíbrio e harmonia as maravilhas da tecnologia que são informadas como salvadoras de todos os males, sob a influência, nem sempre verdadeira, de que são sempre de muito benefício. É local de ser influenciado pelos valores que decorrem do patrimônio, beleza, juventude, troca de benesses, sem se influenciar a ponto de impedir a importância da percepção da singularidade de cada pessoa e favorecer a equanimidade das relações humanas20.

É preciso saber que o médico nem sempre diagnostica ou trata, mas sempre alivia o impacto da enfermidade, ajuda a pessoa a se integrar nela mesma, em sua família e comunidade. É crítico e criativo, portanto, em compromisso com a inovação, a transgressão, a transformação da pessoa e da sociedade, em todos os locais onde se criam e se espalham experiências que respeitam a dignidade humana, sensível aos esforços da pessoa a se adaptar à perda de sua saúde e a conviver com suas limitações e a finitude da vida.

Modelo de ensino médico

A mudança quanto ao ensino de medicina com base na aprendizagem em problemas; em equipes, com a participação interprofissional e que integram medicina clínica e ciência básica, parece ser mais apta a ampliar a visão crítica e criativa da vida e do mundo, do que a reforma curricular em andamento nas faculdades de medicina. Permanecem, no entanto, dúvida se o aprendizado é melhor realizado em sala de aula, no treinamento em serviço, no desenvolvimento de habilidades para resolver problemas, na discussão de pensamentos, na aferição de ideias; e como se deve proceder para que o aluno de medicina comece logo a pensar como médico5,7,11-15.

As atividades que promovem a crítica, criação, proposição, enfrentamento de desafio real, exigem mais esforço do que a memorização de fatos, entretanto, são mais eficazes para a retenção de conhecimento. Essa abordagem, chamada de sala de aula invertida, é bem adequada para alunos da geração do século 21, que são digitais nativos, cresceram com a tecnologia, estão intimamente associados com a informação, acostumados com o trabalho em equipe, e familiarizados com o ambiente colaborativo. São afeitos a encontrar informações digitais e aprender melhor com conteúdo visualmente atraente que os mantém atentos e com a apresentação segmentar e de curta duração. A presença de tecnologia pessoal e institucional permite acesso rápido às informações médicas e possibilita que os educadores se concentrem em ajudar os alunos a compreenderem mais intensamente sobre a saúde e as doenças humanas10-16.

Situação da prática médica

Apesar do desenvolvimento e do impacto da tecnologia aplicada à medicina, questões humanas permanecem distinguindo a ação médica. Não é possível o exercício da medicina sem humanismo nem senso humanitário e, portanto, a definição da formação médica tem como princípio norteador as oportunidades curriculares de encontro com a fruição de ideias e como elas levam o espírito humano a agir em busca do bem-estar que todos almejam com equanimidade e justiça social11,13.

A profissão, qualquer que seja, requer instrumentos práticos para saber fazer adequadamente o que se propõe, nos limites para o que se propõe a fazer. A formação do médico em qualquer nível em que seja proposta requer estabelecer o que se pretende em seu final, isto é, quais os conhecimentos teóricos e práticos; as habilidades psicossociais; e como promover a sua constante atualização, para que seja sempre terminal em seu propósito e não necessariamente apenas ponte para outro fim22.

A prática permite o desenvolvimento de relações com as pessoas em risco da perda do bem-estar, da função, da estética e da vida. É possível desenvolver relacionamento humano que permita a ausculta, a confidência, o respeito; em que a ética, a religião e as relações antropológicas e sociais estejam envolvidas e realçadas. Busca-se a construção do médico que percebe o outro com o olhar do outro, e consegue sensibilizar o outro para a busca de sua felicidade, com as limitações próprias do ser humano, sejam elas psíquicas ou sociais. Em todo esse processo é essencial o envolvimento do tutor, do professor, do modelo, do mestre, do educador, que percebe seu próprio limite, estabelece salvaguardas da profissão, e descortina no iniciante as dúvidas e dificuldades naturais, e infunde ânimo para enfrentar o desafio de, mesmo sem se entender, consegue buscar a percepção do outro24.

É possível prever como será o futuro da medicina e da prática médica

Observa-se que o esforço médico em manter sua valiosa habilidade clínica com educação médica continuada e atualização, modificou-se profundamente com a abordagem da medicina baseada no desenvolvimento da inteligência artificial. Avanços na neurociência alcançaram modelagem computacional bastante precisa do cérebro humano, vem permitindo o desenvolvimento de sistemas que imitam processos cognitivos, como a aprendizagem não supervisionada e a curiosidade24.

A quantidade de dados decorrentes dos registros médicos eletrônicos, de sensores, da genética, de pesquisa; além da capacidade computacional dos sistemas de inteligência artificial (sistemas de big data analysis) têm aumentado em velocidade exponencial de forma que haverá momento em que os pacientes poderão preferir consultar estes dados em vez de seu médico, sendo sua principal limitação atual de uso, a falta de estrutura legal.

As escolas médicas e os programas de residência médica devem educar futuros médicos sobre o novo ambiente médico que está sendo formulado, o que inclui reestruturação de currículos e reconsiderar as práticas tradicionais de aprendizagem.

Qualquer que seja a tendência e o destino da prática médica no futuro, é essencial a proteção do paciente e sua família, em que o respeito, a segurança, a confidência e a compaixão permaneçam como propósitos da medicina que acolhe e cuida para o bem-estar que todos almejam e merecem19-23.

 

CONCLUSÃO

Apesar do desenvolvimento, do impacto da tecnologia aplicada à medicina, permanecem questões humanas a distinguirem a ação médica. Não é possível o exercício da medicina sem humanismo nem senso humanitário e, portanto, o seu princípio depende das oportunidades de encontro com pessoas e ao desenvolvimento de ideias que propiciam o espírito humano a agir em busca do bem-estar que todos almejam e merecem, com equanimidade e compaixão e justiça social.

 

COPYRIGHT

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