RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 20. 3

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Relato de Caso

Pielonefrite enfisematosa: relato de dois casos e revisão da literatura

Emphysematous pyelonephritis: report of two cases and literature review

Luciano Batista Silveira Santos1; César Augusto Passos Braga1; Odilon Óton Guimarães Neto1; Urias de Castro Haddad1; Renato do Amaral Mello Nogueira2

1. Médico Residente do Serviço de Radiologia e Diagnóstico por Imagem-HCSL. Pouso Alegre, MG - Brasil
2. Médico Preceptor do Serviço e Coordenador da Residência Médica em Radiologia e Diagnóstico por Imagem - HCSL. Membro Titular do Colégio Brasileiro de Radiologia (CBR). Pouso Alegre, MG - Brasil

Endereço para correspondência

Luciano Batista Silveira Santos
Rua: São Luiz, 100, Bairro: Centro
Passos, MG - Brasil, CEP: 37.900-166
E-mail: lucianobss@hotmail.com

Recebido em: 10/02/2010
Aprovado em: 12/08/2010

Instituição: Setor de Radiologia e Diagnóstico por Imagem do Hospital das Clínicas Samuel Libânio - HCSL, Universidade do Vale do Sapucaí. Pouso Alegre, MG - Brasil

Resumo

Descrevem-se dois casos de pielonefrite enfisematosa unilateral, forma rara e grave de infecção necrotizante do parênquima renal, em duas pacientes femininas, uma delas diabética e portadora de litíase renal e ureteral à esquerda e a outra com hipertensão arterial sistêmica e ureterolitíase à direita. Os exames de imagem foram importantes para o diagnóstico precoce, avaliação da gravidade e definição prognóstica, além de instituição do adequado manejo terapêutico.

Palavras-chave: Pielonefrite; Diabetes; Infecções Urinárias; Radiologia.

 

INTRODUÇÃO

A pielonefrite enfisematosa (PE) constitui forma rara, grave e potencialmente fatal de infecção necrotizante do parênquima renal, na qual se verifica a formação de gás no parênquima, no sistema coletor ou no tecido perirrenal.1

Sabe-se que é causada geralmente por infecção bacteriana em situação de hipóxia, caracterizada por formação de gás no parênquima renal decorrente da fermentação de glucose em dióxido de carbono e hidrogênio, embora com sua patogênese ainda não totalmente elucidada. Os agentes etiológicos mais frequentemente envolvidos são E. coli(66%) e Klebsiella sp. (26%). Nota-se associação dessa grave infecção com o diabetes mellitus e a obstrução do trato urinário por cálculos, em ambos podendo ocorrer necrose papilar e comprometimento da função renal.2-5

A principal sintomatologia que a caracteriza é semelhante à da pielonefrite aguda, constituída pela tríade de febre, vômitos e dor no flanco. Ressalta-se que a sua evolução, entretanto, é muito mais grave se comparada à da pielonefrite aguda não complicada, com sua taxa de mortalidade podendo chegar a 70%, razão pela qual é uma emergência urológica.2,6,7

O exame diagnóstico considerado padrão-ouro é a tomografia computadorizada (TC), que permite a classificação da pielonefrite enfisematosa conforme a gravidade, além de adequada avaliação prognóstica e melhor decisão terapêutica.4,7 Entre várias classificações propostas, a de Wan et al.6 identifica duas formas: na primeira (PE Classe 1), observa-se a presença de gás em listras e manchas mosqueadas, com ou sem bolhas, associada à rápida destruição do parênquima renal e mortalidade de até 69%; na segunda (PE Classe 2), verificam-se bolhas ou formações loculares de gás associadas a melhor prognóstico e baixa taxa de mortalidade (18%).

O objetivo deste trabalho é relatar dois casos de PE em pacientes que apresentaram manifestações clínicas de pielonefrite aguda e posterior evolução para sepse e insuficiência renal, cujo diagnóstico foi determinado pela ultrassonografia (US) e confirmado pela TC de abdome sem contraste. Discutem-se, também, os dados clínicos relevantes a essa condição patogênica e os sinais radiológicos que determinaram o diagnóstico, enfatizando-se a importância do pronto diagnóstico e tratamento intensivo adequados ao caso, ressaltando-se a notoriedade dos exames de imagem para melhor definição prognóstica e programação terapêutica.

 

DESCRIÇÃO DOS CASOS

O primeiro paciente tinha 63 anos de idade, sexo feminino, encaminhado ao nosso serviço com quadro de hiperglicemia, hipotensão e dor lombar esquerda há dois dias, associado a febre, náuseas e vômitos. Possuía história patogênica pregressa de diabetes mellitustipo 2, hipertensão arterial sistêmica e nefrolitíase esquerda. Os exames laboratoriais evidenciaram moderada leucocitose com desvio à esquerda e anemia; creatinina de 3,0 mg/dL e ureia de 114,0 mg/dL; exame de urina com proteinúria, sugestivo de infecção do trato urinário (ITU), e cultura que revelou infecção por Klebsiella oxytoca.

A US abdominal demonstrou a existência de gás no parênquima renal inferior esquerdo, caracterizado por focos hiperecogênicos associados ao efeito de reverberação e sombra acústica posterior, resultando na indefinição e obscurecimento de estruturas renais do polo inferior e presença de gordura perirrenal hiperecogênica (Figura 1).

 


Figura 1 - US do abdome: focos hiperecogênicos associados ao efeito de reverberação e sombra acústica posterior, resultando na indefinição e obscurecimento de estruturas do polo inferior do rim esquerdo.

 

Os achados na radiografia simples do abdome foram de áreas radiolucentes, indicando a existência de ar, com densas estrias parenquimatosas na topografia renal esquerda (Figura 2).

 


Figura 2 - Radiografia simples de abdome: radiolucência e aspecto denso estriado na topografia do rim esquerdo.

 

A tomografia computadorizada (TC) de abdome sem contraste foi realizada no intuito de avaliar a extensão do acometimento renal e melhor definição terapêutica e prognóstica, revelando franca destruição do parênquima renal inferior esquerdo, com grande quantidade de áreas de inclusão gasosa em padrão salpicado e estendendo-se para o espaço pararrenal, associado à densificação da gordura adjacente, caracterizando esses achados como classe IIIb, segundo a classificação radiológica de Huang et al.7 para achados tomográficos na PE (Figuras 3, 4 e 5). Não foram visualizadas imagens sugestivas de coleções líquidas.

 


Figura 3 e 4 - TC axial e reconstrução coronal demonstrando destruição do parênquima renal inferior esquerdo, com áreas de inclusão gasosa em padrão salpicado e com destruição da cápsula de Gerota.

 

 


Figura 5 - TC axial demonstrando densificação da gordura pararrenal esquerda.

 

Foi observada também litíase renal esquerda e em ureter distal esquerdo (Figuras 6 e 7), que se apresentava com calibre e trajeto normais, sem sinais sugestivos de hidronefrose.

 


Figura 6 e 7 - TC axial e reconstrução coronal demonstrando litíase ureteral distal esquerda.

 

A segunda paciente era também do sexo feminino, 57 anos de idade, com história patogênica pregressa de cálculo coraliforme no rim direito, no qual foi realizada nefrostomia percutânea há um ano e implantado cateter duplo J, que foi trocado seis meses após. Oito dias após a retirada do cateter evoluiu com dor lombar à direita, associada a febre, calafrios e náuseas. É portadora de hipertensão arterial sistêmica. Os exames laboratoriais evidenciaram moderada leucocitose com desvio à esquerda, creatinina de 1,7 mg/dL e ureia de 48,0 mg/dL, urina com proteinúria e sugestivo ITU, sendo colhida amostra de urina para cultura, que posteriormente se mostrou negativa.

A US de abdome revelou litíase e conteúdo gasoso de permeio no parênquima do polo superior e terço médio do rim direito (Figuras 8 e 9).

 


Figura 8 e 9 - Litíase e gás no parênquima renal direito.

 

A TC de abdome confirmou a existência de gás no parênquima renal associada a múltiplos abscessos, estádio IIIb, de acordo com Huang et al.7, aumento do tamanho renal e ureterolitíase proximal à direita, com hidronefrose leve (Figuras 10 e 11).

 


Figura 10 e 11 - Rim direito aumentado de tamanho, com conteúdo gasoso no parênquima associado à litíase renal. Observa-se também ureterolitíase à direita.

 

A paciente cursou com piora clínica e laboratorial, optando-se por nefrectomia radical à direita, evoluindo bem no pós-operatório, com alta da UTI em um dia. O anatomopatológico confirma os diagnósticos (Figuras 12 e 13).

 


Figura 12 e 13 - Peça cirúrgica revelando os vários abscessos; e lâmina demonstrando o processo de "tireoidização" do parênquima renal.

 

DISCUSSÃO

Os pacientes com PE mais frequentemente são femininos, numa proporção de 5,9:17, com forte associação com diabetes mellitus (90%)5. A faixa etária média é aos 55 anos. Em 20 e em 75% dos pacientes com e sem diabetes mellitus, a PE associa-se, respectivamente, observa-se obstrução urinária.8 Ocorre em sua maioria de forma unilateral, sendo bilateral em 5-10% dos casos. Em metade dos casos apresenta extensão extrarrenal.5

Os principais fatores relacionados ao desenvolvimento de PE são a elevação dos níveis de glicemia, a diminuição da perfusão tecidual, a alteração dos mecanismos imunitários do hospedeiro e a uropatia obstrutiva, tendo como seus agentes etiológicos mais envolvidos a E. coli (50-70%), seguida pelo Proteus mirabilis, Pseudomonas aeruginosa, Klebsiella sp e raramente por anaeróbios.9

A maioria dos pacientes durante a sua evolução clínica encontra-se extremamente debilitada, com febre, dor no flanco, vômitos, hiperglicemia, acidose, desidratação e desequilíbrio eletrolítico.8 A PE apresenta-se clinicamente com sinais de pielonefrite aguda grave, geralmente com a tríade de febre, vômitos e dor no flanco.4

A PE pode ser dividida, sob ponto de vista patogênico, segundo Wan et al.(6,10,11), em dois tipos de doewnça (Tabela 1).

 

 

A pielonefrite aguda, uma infecção bacteriana supurativa aguda do rim e pelve renal, é de diagnóstico geralmente clínico e laboratorial, dispensando exames de imagem, que, por outro lado, são úteis para crianças, em pacientes com evolução clínica desfavorável e para diagnosticar e acompanhar complicações.12 Nesse contexto, o diagnóstico radiológico da PE, que embora no passado possa ter sido feito usando-se a urografia intravenosa (UIV), demonstrando gás mosqueado no rim não funcional, ultimamente tem mostrado a TC de abdome como o exame preferido, que mostra a localização do gás e também coleções de líquido perirrenal ou abscessos renais ou perirrenais.13 A avaliação por US pode ser difícil, uma vez que o gás produzirá focos hiperecoicos com atenuação grosseira, obscurecendo a identificação de estruturas mais profundas, e também o gás pode potencialmente ser confundido com gás intestinal ou cálculos renais.8 Na radiografia simples do abdome, os achados são de gás dentro do parênquima renal e dos tecidos perinefréticos. Frequentemente observa-se também pielograma aéreo.

Huang et al.7 propõem classificação importante, baseada em achados na TC de abdome e que os correlaciona com o respectivo prognóstico (Tabela 2):

 

 

Michaeli et al.7, tratando de termos prognósticos diante de PE, relacionaram como fatores de risco não relevantes a idade, sexo, níveis de ureia e de glicose plasmática. Huang et al.7 revelaram a existência de proteinúria grave como fator de risco independente e determinante de prognóstico reservado. Febre, glomerulonefrite e nefropatia diabética podem levar à proteinúria grave. Os seguintes fatores de risco dependentes foram considerados: trombocitopenia, insuficiência renal aguda, distúrbio da consciência e choque. Segundo Wan6, valores de creatinina superiores a 1,4 mg/dL aumentam a taxa de mortalidade de 69 e 18% para 92 e 53%, em se tratando de PE tipo I ou II, respectivamente. (Tabela 3)

 

 

O tratamento na PE grave, classes III e IV, varia de acordo com os fatores de risco. Na vigência de menos de dois fatores de risco, alguns pacientes tendem a ser tratados, e com sucesso, com drenagem percutânea associada à antibioticoterapia agressiva. Em casos de pacientes com dois ou mais fatores de risco, a melhor opção, segundo Huang et al.7, é a nefrectomia.

As pacientes do caso clínico apresentavam a tríade sugestiva de pielonefrite aguda (febre, vômitos e dor no flanco) e vários fatores de risco associados a mau prognóstico como choque, proteinúria, insuficiência renal e estádio tomográfico IIIb7, que tornava o prognóstico sombrio. Optou-se por tratamento cirúrgico, sendo realizada nefrectomia, sem intercorrências. As pacientes evoluíram bem no pós-operatório imediato, recebendo alta hospitalar e planejamento para acompanhamento ambulatorial.

Este relato procura demonstrar a raridade dessa entidade clínica, que se manifesta com alta incidência em pacientes com diabetes mellitus e que se associa à elevada mortalidade. Enfatiza-se a importância do diagnóstico precoce e da relevância dos exames de imagem, devido à gravidade dessa complicação, especialmente a TC de abdome, para programação terapêutica e definição prognóstica.

 

CONCLUSÃO

A PE, apesar de se tratar de ocorrência rara, deve ser considerada diante de manifestações clínicas sugestivas, especialmente em pacientes com diabetes mellitus, e sua história natural deve ser bem conhecida por estar relacionada à complicação da pielonefrite aguda, como pela sua morbimortalidade significativa, constituindo grave emergência urológica de evolução potencialmente fatal. A investigação radiológica, especialmente por TC de abdome, possui fundamental importância para diagnóstico preciso e precoce, melhor definição prognóstica e otimização do planejamento terapêutico, podendo, inclusive, aliado a tratamento clínico adequado, evitar desfecho desfavorável como nefrectomia e até óbito.

 

REFERÊNCIAS

1. Michaeli J, Mogle P, Perlberg S, Hemiman S, Caine M. Emphysematous pyelonephritis. J Urol. 1984;131:203-8.

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3. Tang HJ, Li CM, Yen YS, Wann SR, Lin HH, Lee SS, et al. Clinical characteristics of emphysematous pyelonephritis. J. Microbiol. Immunol. Infect 2001;34(2):125-30.

4. Shetty S. Emphysematous Pyelonephritis. fev 2006. [Citado em 2010 jan. 04]. Disonivel em: www.emedicine.com/MED/topic3440.htm.

5. D'Ippolito G, Abreu Jr L, Borri ML, Galvão Filho MM, Hartmann LGC, Wolosker AMB. Pielonefrite aguda: classificação, nomenclatura e diagnóstico por imagem. Rev Imagem. 2005;27:183-94.

6. Wan YL, Lo SK, Bullard MJ, Chang PL, Lee TY. Predictors of outcome in emphysematous pyelonephritis. J Urol. 1998;159(2):369-73.

7. Huang JJ, Tseng CC. Emphysematous pyelonephritis: clinicoradiological classification, management, prognosis, and pathogenisis. Arch Inter Med. 2000;160(6):797-805.

8. Rumack CM. Tratado de ultra-sonografia diagnóstica. 3ª ed. Rio de Janeiro: Elsevier; 2006.

9. Carvalho M, Goulao J, Monteiro C, Madeira A. Pielonefrite enfisematosa-Revisão da literatura a propósito de um caso clínico. Acta Urol. 2006,23;4:75-80.

10. Schaeffer et al. Predictors of outcome in emphysematous pyelonephritis: Editorial Comment. J Urol. 1998;159(2):373.

11. Craig WD, Wagner BJ, Travis MD. Pyelonephritis: Radiologic-Pathologic Rev Radiograp. 2008 Jan-Feb;28(1):255-77; quiz 327-8.

12. Baumgarten DA, Baumgartner BR. Imaging and radiologic management of upper urinary tract infections. Urol Clin North AM. 1997;24:545-69.

13. Lee JKT. Tomografia computadorizada do corpo em correlação com ressonância magnética. 4ª ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 2008.