RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 32 DOI: https://dx.doi.org/10.5935/2238-3182.v32supl.11.04

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Relato de Caso

Hamartoma Mesenquimal Hepático: Relato de dois casos de tumor hepático benigno na infância

Hepatic Mesenchymal Hamartoma: Report of two cases of benign hepatic tumor in childhood

Thaís Costa Nascentes Queiroz1; Guilherme Domingues Ferreira2; Eleonora Druve Tavares Fagundes1; Adriana Teixeira Rodrigues1; Alexandre Rodrigues Ferreira1

1. Hospital das Clínicas Universidade Federal de Minas Gerais
2. Faculdade Ciências Médicas de Minas Gerais

Endereço para correspondência

Thaís Costa Nascentes Queiroz
E-mail: thaisqueiroz@gmail.com
Endereço: Faculdade de Medicina da UFMG - Departamento de Pediatria
Avenida Alfredo Balena 190, 2º andar - Santa Efigênia - Belo Horizonte, Minas Gerais - CEP 30.130.100
Instituição: Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG, Faculdade de Medicina, Departamento de Pediatria. Belo Horizonte, MG - Brasil

Resumo

INTRODUÇÃO: O hamartoma mesenquimal hepático é um tumor benigno, mais frequente em crianças. É composto por um tecido fibroso, com quantidade variável de vasos sanguíneos e ductos biliares. Na maioria dos casos, é assintomático, mas pode manifestar com distensão abdominal e dor à palpação.
OBJETIVO: Relatar dois casos de tumor hepático benigno na infância.
RELATO DOS CASOS: Dois lactentes com grande massa abdominal e exames de imagens mostrando lesão cística hepática com septações em seu interior, sugestivas de hamartoma mesenquimal. Um caso foi submetido a ressecção cirúrgica e o outro, transplante hepático intervivo. Atualmente, ambos se encontram curados e assintomáticos.
CONCLUSÃO: O hamartoma mesenquimal deve ser suspeitado em crianças menores de cinco anos, especialmente nos menores de dois anos, com aumento do volume abdominal. Apesar do mesmo diagnóstico, os pacientes foram submetidos a tratamentos distintos para erradicação do tumor. Diante de tumor volumoso, a abordagem cirúrgica deve ser preparada com a possibilidade de inviabilidade da ressecção e necessidade de transplante intervivo durante o procedimento.

Palavras-chave: Hamartoma mesenquimal. Tumor hepático. Pediatria.

 

INTRODUÇÃO

O fígado é o terceiro órgão mais acometido por tumores abdominais em pacientes pediátricos1. Em pediatria, entre os tumores benignos que afetam esse órgão estão o hemangioma hepático infantil, adenoma hepático, hamartoma mesenquimal e a hiperplasia nodular focal. As etiologias malignas incluem hepatoblastoma, carcinoma hepatocelular, tumores rabdóides malignos, sarcoma embrionário indiferenciado e angiossarcoma1. A maioria dessas lesões apresenta-se de forma semelhante, com distensão abdominal progressiva, massa abdominal palpável, dor abdominal e hepatomegalia2,3.

O hamartoma mesenquimal hepático (HMH) é o segundo tumor hepático benigno mais comum em pacientes pediátricos1. Ele representa um total de 8% de todos os tumores de fígado em pacientes pediátricos e ocorre com maior frequência durante os primeiros dois anos de vida3. Na maioria das vezes, esse tumor se apresenta de forma assintomática, podendo regredir naturalmente após crescer durante os primeiros meses. Porém, pode manifestar sintomas como distensão abdominal e dor à palpação. Sua expansão pode levar a diversas morbidades e assim requisitar tratamento, na maioria das vezes cirúrgico envolvendo a ressecção da lesão3.

As provas de função hepática frequentemente estão normais, podendo haver uma elevação de alfafetoproteína3. A gamaglutamiltransferase pode ser discretamente aumentada, mas o habitual é as enzimas tissulares e canaliculares serem normais1,3.

Embora a patogênese não seja clara, a teoria mais amplamente aceita sugere que a HMH surge tardiamente na embriogênese a partir do desenvolvimento aberrante do mesênquima nos tratos portais1,4. Raramente, a HMH pode sofrer transformação maligna em sarcoma embrionário5.

Esse artigo tem como objetivo descrever dois casos clínicos de hamartoma mesenquimal hepático em pacientes pediátricos, do Hospital das Clínicas da UFMG, nos quais realizou-se a intervenção cirúrgica para a ressecção do tumor.

 

DESCRIÇÃO DO CASO

CASO 1

Paciente do sexo feminino com suspeita de massa hepática pelo ultrassom (US) pré-natal, apresentava "mancha no fígado". Aos 40 dias de vida, apesar de assintomática, apresentava discreta hepatomegalia no exame físico. Foi submetida a US abdominal que revelou uma lesão hepática hipoecóica, septada, e com volume estimado em 82,8 cm3. O pediatra assistente realizou acompanhamento com exames de US seriados e encaminhou a criança ao serviço de hepatologia pediátrica aos 10 meses de vida para avaliação do nódulo hepático. Lactente assintomática, clinicamente bem e hepatomegalia em cicatriz umbilical ao exame físico. Submetida a tomografia computadorizada com contraste iodado que evidenciou lesão hepática cística, com septações em seu interior, sugestivo de hamartoma mesenquimal, na topografia dos segmentos IV e VIII, medindo 67 x 55,3 x 41 mm, com densidade de 10 UH e sem presença de vegetações. Septação com discreta impregnação pelo contraste iodado (Figura 1).

 


Figura 1: Tomografia computadorizada pré-operatória no caso 1.

 

Os marcadores tumorais da paciente evidenciaram elevação de alfafetoproteína 15,2 (VR < 7,22); CEA 1,2 (VR < 3); e elevação de CA19-9 69 (VR até 37).

As últimas duas US realizadas aos 10 meses e 11 meses de vida da paciente revelaram um aumento do volume do tumor para 134,3 cm3. O fígado apresentava volume normal, forma anatômica e contornos regulares, medindo no eixo longitudinal 70 mm no lobo D. No interior do lobo direito a formação cística apresentava-se turva, com parede fina, contendo septos grosseiros vascularizados, situada na posição póstero-medial entre os segmentos VI, VII e I. A veia porta encontrava-se rechaçada caudalmente pela margem inferior do cisto, estando pérvia no mapeamento com Doppler. Uma loja do cisto insinuava-se no hilo hepático em direção à cabeça pancreática e com a veia cava inferior situando-se posteriormente ao cisto.

Os últimos exames laboratoriais revelaram queda na atividade de protrombina: (75,2%); elevação do RNI 1,15; albumina 3,9 g/dL; Hb 11,1 g/dL; Ht 36,2%; Plaquetas 303.000 /mm3; BT 0,41 mg/dL (BD 0,11 mg/dL); AST 43 U/L; ALT 19 U/L; GGT 40 U/L.

A paciente foi encaminhada, aos 11 meses e com peso de 9.340 gramas, para a ressecção cirúrgica do tumor com doador preparado caso houvesse necessidade de transplante hepático intervivo por insuficiência hepática ou inviabilidade de ressecção. A cirurgia foi bem-sucedida, sem necessidade de transplante hepático, e a paciente está, hoje, com 7 anos de vida, com fígado nativo, bem clinicamente.

CASO 2

Menino de 2 anos, 13.135g, com relato de febre há 3 dias e distensão abdominal. Propedêutica realizada pelo pediatra confirmou que a febre foi desencadeada por dengue, confirmada por exames sorológicos. Submetido a US para avaliação da distensão abdominal, que revelou hepatomegalia com conservação da forma, anatomia e contorno regular do órgão somada à presença de múltiplos cistos hepáticos. O grumo de cistos localizava-se entre o lobo quadrado e caudado, que estavam separados por septos espessos, o maior medindo 99.5 x 113.2 x 94 mm, com volume de 554.36 cm3. O grumo como um todo media 173 x 152 x 104 mm, um volume de 1.442 cm3. As lesões não apresentavam fluxo ao mapeamento com Doppler colorido. O restante do parênquima hepático apresentava-se homogêneo, com ecogenicidade e atenuação sônica normais. As veias hepáticas encontravam-se pérvias, porém rechaçadas. Os ramos portais pérvios, mas estirados pelos cistos, assim como as artérias hepáticas. Apresentava esplenomegalia leve, inespecífica.

A TC de abdome total mostrou volumosa formação expansiva hepática, de aspecto multicístico, contendo septações que se impregnam pelo meio de contraste, com leve realce mural, ocupando os segmentos IV, VII e VIII, medindo cerca de 13 x 10,4 x 14,3 cm nos maiores eixos dos planos longitudinal, anteroposterior e transverso do fígado. Essa formação levou ao aumento dimensional e abaulamento dos contornos hepáticos. Não há evidências de dilatação de vias biliares intra e/ou extra-hepáticas (Figura 2). Angiorressonância magnética arterial e venosa do abdome superior confirmou seu aspecto multicístico, com septações internas captantes de contraste, ocupando os segmentos VII, VIII e IV, as quais mediam 10,4 x 13,8 x 11 cm, causando aumento volumétrico do fígado e abaulamento de seus contornos, mas com a arquitetura vascular hepática preservada, sugerindo hamartoma mesenquimal.

 


Figura 2: TC de abdome: volumosa formação expansiva hepática, de aspecto multicístico, contendo septações.

 

Exames complementares tais como alfafetoproteína (AFP), CA-19-9, enzimas e função hepática estavam dentro da faixa da normalidade.

Assim, o paciente foi encaminhado para o transplante hepático intervivos devido à grande dimensão do tumor e consequente diminuto volume hepático residual. O transplante hepático foi realizado com sucesso, sendo o pai da criança o doador. Ambos estão bem clinicamente após 10 meses da cirurgia.

 

DISCUSSÃO

O diagnóstico diferencial do HMH em relação a outras lesões hepáticas pode ser desafiador. Geralmente apresenta-se como uma grande lesão congênita, mais comumente vista abaixo dos 2 anos de idade6. Assim como aconteceu no caso 1, há relatos de lesões diagnosticadas no período pré-natal. Elas aparecem, na maioria das vezes, no último trimestre da gravidez e podem ser causa de hidropisia7. Embora benigno, o HMH compartilha várias características histopatológicas, imuno-histoquímicas e citogenéticas com o sarcoma embrionário indiferenciado. A aparência da imagem varia de predominantemente cística a predominantemente estromal/mesenquimal6. A maioria dos tumores apresenta cistos de diâmetros variados. Apesar de ser considerado uma lesão focal, pequenas lesões satélites na margem do tumor já foram descritas, o que poderia explicar a recorrência do tumor após sua ressecção2.

No HMH, o ultrassom geralmente mostra uma grande estrutura cística multiloculada com graus variados de tecido ecogênico sólido e septações internas1,5. A aparência "semelhante a uma peneira" pode ser observada tanto na ultrassonografia quanto na ressonância magnética, o que é consistente com a "aparência do queijo suíço" relatada no exame anatomopatológico macroscópico1,5. Em ambos os casos apresentados, verifica-se uma ultrassonografia bastante sugestiva de HMH.

As características do HMH na ressonância magnética refletem a morfologia subjacente da lesão, com uma aparência cística multisseptada exibindo baixa intensidade de sinal em T1 e alta intensidade de sinal em T2. As septações são de intensidade de sinal intermediária e realce de exibição nas sequências pós-contraste. Embora a variedade cística multisseptada seja o tipo de apresentação mais comum, os HMH podem ser sólidos ou ter uma aparência mista de sólido/cístico. O hamartoma mesenquimal sólido não pode ser diferenciado do hepatoblastoma apenas por imagem8.

Pacientes com HMH geralmente apresentam distensão abdominal e/ou palpação de massa abdominal no andar superior do abdome3,9. Os níveis séricos de AFP são tipicamente normais, embora elevações leves sejam ocasionalmente observadas. No caso 1, havia discreta elevação de AFP e no caso 2, níveis normais. A lesão tende a aumentar de tamanho durante os primeiros meses e, posteriormente, pode estabilizar, continuar a crescer ou até mesmo regredir3.

Não existe associação entre dengue e HMH. A febre provocada pela dengue, no caso 2, que motivou a família a procurar avaliação pediátrica. A distensão abdominal importante foi verificada ao exame físico e iniciada a propedêutica. Apesar de na maioria das vezes, esse tumor se apresentar de forma assintomática, ele pode manifestar sintomas como distensão abdominal e dor à palpação3.

Histologicamente, o HMH é caracterizado pelo crescimento lobular de estroma mixomatoso com células mesenquimais espalhadas em forma de estrela, ductos biliares ramificados e ilhas de hepatócitos aprisionadas3. Em ambos os casos, a histologia foi realizada após o tratamento cirúrgico, sendo no caso 1 a ressecção cirúrgica e no 2, o transplante de fígado. As peças cirúrgicas permitiram a análise histológica confirmando achados sugestivos de HMH.

A patogênese do HMH não é bem compreendida e o seu tratamento é essencialmente cirúrgico. Alguns casos evoluem para formas gigantes, mesmo no período neonatal, com complicações potencialmente fatais. A ressecção cirúrgica é o principal tratamento para HMH e o transplante de fígado pode ser considerado em casos irressecáveis3.

 

CONCLUSÃO

O hamartoma mesenquimal hepático é um tumor que apresenta excelente prognóstico se identificado e tratado adequadamente. Deve-se pensar na possibilidade diagnóstica em todos os casos de lactentes com massa hepática cística e uma compreensão clara dos diagnósticos diferenciais mais importantes é imperativa. O tratamento do hamartoma mesenquimal hepático é cirúrgico e, diante de um tumor volumoso, a sua abordagem deve ser planejada levando-se em conta a possibilidade de inviabilidade da ressecção e necessidade de transplante intervivos durante o procedimento.

 

REFERENCIAS

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