RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 33 e-33106 DOI: https://dx.doi.org/10.5935/2238-3182.2022e33106

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Artigo Original

Correlação entre desesperança e a percepção da qualidade de vida na população atingida pelo rompimento da barragem de Fundão em Minas Gerais: um estudo transversal

Hopelessness correlates with the perception of quality of life in the population affected by the Fundão dam rupture: a cross-sectional study

Marco Antônio Valente Roque; Nicole Font dos Santos; André Augusto Corrêa de Freitas; Letícia Costa da Silva; Fernanda Rúbia Batista; Matheus Gonçalves Flores; Sarah de Morais Bispo Fidelis; Frederico Duarte Garcia; Maila de Castro Lourenço das Neves

Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil

Endereço para correspondência

Autor Correspondente:
Nicole Font dos Santos
E-mail: nicolefonts@gmail.com

Recebido em: 11 fevereiro 2022
Aprovado em: 18 Novembro 2022
Data de Publicação: 27 Março 2023

Editor Associado Responsável:
Dr. Nestor Barbosa de Andrade
Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Uberlândia
Uberlândia/MG, Brasil

Comitê de Ética:
Número do Parecer: 2.358.772

Fontes apoiadoras: Caritas Brasileira

Conflito de Interesse: Não há

Resumo

INTRODUÇÃO: A desesperança pode ser definida como a expectativa negativa em relação ao futuro, associada à falta da expectativa de mudança, sendo encontrada em contexto de diferentes desastres.
OBJETIVO: Avaliar a prevalência de desesperança e suas correlações com a qualidade de vida e delimitar os fatores associados ao seu desenvolvimento na população atingida pelo desastre pelo rompimento da barragem do Fundão em Mariana/MG.
MÉTODOS: Foram avaliados 225 adultos atingidos pelo desastre e analisadas as relações de desesperança com depressão, qualidade de vida e seus determinantes.
RESULTADOS: 9% da população apresentou nível leve de desesperança. A correlação entre desesperança e depressão obteve um coeficiente de correlação (CC) de 0,220 (p=001). Já a correlação entre desesperança e qualidade de vida foi -0,248 (p<0,001) e se manteve significativa com a exclusão dos indivíduos com diagnóstico de depressão sendo de -0,204 (p=0,010). Os preditores de um alto grau de desesperança foram a insônia (OR: 5,92, p=0,002); ter 60 anos ou mais (OR: 4,736, p=0,009); e o risco de suicídio (OR: 5,468, p=0,005). A alta resiliência foi fator protetor de um alto grau de desesperança (OR: 0,115; p=0,008).
CONCLUSÕES: Um alto grau de desesperança correlacionou-se com piora da qualidade de vida mesmo em indivíduos sem depressão. Assim, sugerimos que intervenções focadas em redução de desesperança devem ser incluídas em planos assistenciais para minimizar os impactos nos atingidos.

Palavras-chave: Desastres; Qualidade de vida; Saúde mental; Desastres tecnológicos; Depressão; Suicídio.

 

INTRODUÇÃO

Quando expostas a situações de crise, parte das pessoas mantém cognições positivas, como a expectativa de um futuro melhor, de perspectivas favoráveis e de melhorias em sua condição. Estas cognições constituem estratégias de enfrentamento ou coping que permitem suportar as adversidades. Estas cognições findam por produzir o sentimento de esperança ou expectativa positiva.

De forma oposta, alguns indivíduos desenvolvem cognições negativas quando confrontadas a situações de crises, como a desesperança1. A desesperança foi definida pela American Psychiatric Association (APA) como um pessimismo em relação ao futuro2. A desesperança surge, usualmente, em resposta a eventos negativos e, na nosologia psiquiátrica, pode ser descrita como um sintoma depressivo2. Contudo, a desesperança não é uma expressão cognitiva exclusiva da depressão. Ela pode ser observada em indivíduos com outros transtornos mentais e fatores de risco para estes transtornos. Neufeld e O'Rourke (2009)3 identificaram que a desesperança foi mais correlacionada a ideação suicida do que a gravidade dos sintomas depressivos (correlação de 0.77 versus 0.68, respectivamente).

Indivíduos expostos a desastres podem tornar-se vulneráveis a desenvolver sentimentos de desesperança. Desastres podem ser definidos como perturbações do funcionamento de uma comunidade que causam perdas generalizadas e que superam sua capacidade de enfrentamento. Os desastres podem ser classificados em naturais ou tecnológicos, estes últimos ocorrem quando são produzidos pelo homem e em decorrência do avanço tecnológico1,2. Como exemplo, podem ser citados vazamentos de substâncias químicas, incêndios, acidentes nucleares e os rompimentos de barragens.

A presença de desesperança foi descrita em diferentes contextos de desastres, como as secas prolongadas4, as inundações5, os terremotos6,7, furacões e ciclones8,9. Estes estudos apontam a existência de uma correlação positiva entre níveis de desesperança e sofrimento mental apresentado pelas vítimas de desastre. Ozdemir et al. (2015)7 apontam que elevados níveis de desesperança estão associados ao desenvolvimento de transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) em uma população sobrevivente a terremotos, Kar et al. (2004)8 reportaram que desesperança, depressão e ideação suicida estavam presentes entre as vítimas de um ciclone na Índia. O mesmo fenômeno foi observado em sobreviventes do furacão Katrina, nos Estados Unidos. No estudo de Mortensen et al. (2009)9 60% da população evacuada após o furacão, reportou ter sentimentos de desesperança, nervosismos e medo. Mulheres e idosos têm maior vulnerabilidade para desenvolver sentimentos de desesperança após desastres3,5,6.

O rompimento da barragem de Fundão operada pela mineradora Samarco, na cidade de Mariana, Minas Gerais, ocorreu em 5 de novembro de 2015. O desastre ocasionou o vazamento de 62 milhões de metros cúbicos de lama e rejeitos de minérios, dezenove pessoas morreram e milhares ficaram desabrigadas. A lama e os rejeitos provenientes da atividade mineradora poluíram o Rio Doce e seu entorno, dispersando rejeitos pelo estado de Minas Gerais, Espírito Santo e Bahia. A população atingida se expôs não somente à passagem dos rejeitos, mas à escassez de água potável e alimentos, a perdas materiais pela diminuição do comércio e do turismo nos locais atingidos e a incertezas jurídicas10.

Estudos que avaliem a saúde mental deveriam ser realizados sempre que um desastre acontece. Em 2017, o Núcleo de Pesquisa em Saúde da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) realizou o estudo PRISMMA - Pesquisa sobre a Saúde Mental das Famílias Atingidas pelo Rompimento da Barragem do Fundão em Mariana10. Entre os 225 adultos avaliados, 28,9% apresentaram diagnóstico de depressão, 32% ansiedade generalizada e 12% TEPT. O presente estudo é um subestudo do protocolo PRISMMA, com objetivo de avaliar a prevalência de desesperança, suas correlações com a qualidade de vida e características sociodemográficas da população atingida pelo desastre de Mariana.

Com base na literatura apresentada, o presente estudo aventa as seguintes hipóteses:

1. Existe uma correlação inversa entre desesperança e qualidade de vida percebida nesta população, mesmo em indivíduos sem diagnóstico de depressão;

2. As chances de apresentar desesperança podem estar associadas a características sociodemográficas (sexo, estado civil, nível de escolaridade e renda), características clínicas (insônia) e características psicossociais (suporte social, antecedentes de traumas na infância, discriminação, resiliência, grau de exposição ao desastre).

 

MÉTODOS

Desenho do Estudo

Trata-se de uma análise had-hoc dos dados do estudo PRISMMA, um estudo observacional e transversal, realizado na forma de inquérito domiciliar, utilizando entrevistas estruturadas, cuja coleta de dados foi realizada dois anos após o acontecimento10. Foram avaliadas a saúde geral e mental dos indivíduos afetados pelo rompimento da barragem no município de Mariana.

Amostra

Foram incluídas pessoas com idade entre 18 e 90, que à época do desastre residiam nos distritos de Mariana atingidos diretamente pela passagem da lama. Foram excluídas das análises as pessoas que recusaram participar do estudo; que apresentavam deficiência visual ou auditiva que impediam a leitura do termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE) ou dos materiais de pesquisa; que apresentavam deficiência intelectual ou cognitiva; ou que no momento da entrevista apresentavam sinais de ebriedade.

Instrumentos

Foram coletados dados sociodemográficos, sexo, cor, orientação sexual, estado civil, escolaridade, ocupação, renda, tipo de residência; e perguntas para investigar o impacto pelo evento na pessoa. Foram avaliados a satisfação com a saúde; a ocorrência de discriminação por ser um atingido pela barragem; o nível de urgência para evacuação do local atingido pela lama; e a percepção do risco pela contaminação da presença de componentes tóxicos na lama (Tabela 1).

 

 

A desesperança foi avaliada através da versão adaptada culturalmente e validada no Brasil da Escala de Beck para Desesperança (BHS). A BHS é um questionário que apresenta pontuação variando de 0 a 20 pontos. O resultado é estabelecido pela somatória dos valores, sendo que valores mais altos indicam maior desesperança. A escala também divide a desesperança em níveis, sendo ela nenhuma ou mínima quando a pontuação está na faixa de 0 a 3, ela é leve na faixa de 4 a 8, moderada na faixa de 9 a 14 e grave quando a pontuação é igual ou superior a 15 pontos. Os níveis moderados e graves foram associados a um maior risco de morte em pesquisas anteriores11.

Para fins desta pesquisa, dividiu-se a amostra em indivíduos "sem desesperança", ou seja, aqueles apresentando uma pontuação igual ou inferior a 14 pontos na BHS e "com desesperança" aqueles com uma pontuação igual ou superior a 15 pontos na BHS.

Foram incluídas perguntas a respeito dos antecedentes médicos e perguntas adaptadas do questionário do estudo realizado em Fukushima sobre o desenvolvimento e exacerbação de sintomas cardiovasculares12.

O Questionário sobre Traumas na Infância (QUESI) avaliou a presença de trauma infantil. O QUESI é composto por 28 questões que investigam e avaliam a ocorrência de eventos traumáticos durante a infância13. Esta pesquisa considerou como apresentando trauma infantil aqueles indivíduos que a QUESI classificou como apresentando trauma moderado ou severo/extremo.

A qualidade de vida, utilizamos o instrumento WHOQOL-BREF, da Organização Mundial de Saúde. A WHOQOL-BREF instrumento é composta por 26 perguntas e a pontuação final é obtida por média da somatória das notas das questões. O escore final é classificado em "precisa melhorar", "regular", "boa" ou "muito boa"14.

O presente estudo utiliza a classificação da WHOQOL-BREF "bom" ou "muito bom" como possuindo uma qualidade de vida adequada.

A Escala de Impacto de Evento (IES-R) é um questionário "Likert" composto por 22 perguntas para medir a influência do estresse da rotina diária, traumas diários e estresse agudo15. Os participantes que obtiveram um escore igual ou superior a 33 foram classificados como tendo um provável diagnóstico de TEPT.

A resiliência foi avaliada usando a Escala de Resiliência de Wagnild e Young (ERWY), composta de 25 itens. Ao final, a pontuação varia de 25 a 175, indicando mais ou menos resiliência. Pontuações de 125 pontos ou menos indicam baixa resiliência, entre 125 pontos e 145 pontos indicam resiliência média e acima de 145 pontos indica alta resiliência16.

A satisfação com o suporte social foi medida pela Escala de Satisfação com o Suporte Social (SSSS) que possui 15 itens. A pontuação varia de 15 a 75 pontos, as pontuações maiores indicam uma percepção de melhor suporte social17. Neste estudo, utilizamos como ponto de corte pontuações maiores ou iguais a 60% do valor máximo da escala (45) para indicar satisfação com o suporte social.

Foram avaliados o uso de medicações psiquiátricas e a qualidade do sono. Para diagnosticar condições psiquiátricas vigentes utilizou-se as seções da versão Brasileira da Mini Entrevista Neuropsiquiátrica Internacional (MINI) 5.0.0 para depressão, suicídio, transtorno de ansiedade generalizada, transtorno de estresse pós-traumático e uso de substâncias.

Análise de dados

Os dados foram tabulados no Microsoft Excel® (Microsoft, WA). As análises estatísticas foram feitas utilizando-se o Pacote Estatístico de Ciências Sociais (SPSS®) (IBM Corporation, CA). Os dados foram analisados para respostas duplicadas sem resultados significativos.

Para a realização da análise descritiva, calculamos medidas de tendência central e de dispersão. Para avaliar medidas de correlação foi utilizado o teste de correlação de Spearman, visando quantificar o impacto da desesperança na qualidade de vida da população geral e após a exclusão de casos diagnosticados com depressão. O teste Shapiro-Wilk averiguou a normalidade dos dados, a análise univariada das variáveis categóricas foi feita por meio do teste do qui-quadrado. Por meio de regressão logística múltipla com seleção em etapas, determinamos quais fatores apresentaram associação com desesperança moderada ou severa. Variáveis com p-valor≤0.2 na análise univariada foram considerados aptos para entrar no modelo de regressão. O R2 de Nagelkerke's foi usado para avaliar a capacidade preditiva do modelo logística obtido. O cálculo de odds ratio (OR) considerou o intervalo de 95% de confiança e a significância de p≤0.05.

Aspectos éticos

O projeto foi aprovado pelo comitê de ética da Universidade Federal de Minas Gerais sob o número CAAE 32520314.1.0000.5149. Foram realizadas as precauções necessárias para garantir o anonimato dos entrevistados. O acesso ao banco de dados foi limitado, e o armazenamento feito por meio de técnicas seguras. Todos os entrevistados foram esclarecidos a respeito do projeto e seus objetivos e assinaram o TCLE antes do início da entrevista.

 

RESULTADOS

Descrição da amostra

Ao final da coleta de dados, 479 indivíduos foram abordados. Destes, 193 (40,3%) recusaram-se a participar, 6 (1,3%) tiveram medo das repercussões de participar, 5 (1,0%) apresentavam incapacidade física, mental ou se encontravam sob o efeito de drogas, 3 (0,6%) não se consideravam atingidos e 1 (0,2%) era um menor desacompanhado. O fluxo de inclusão na pesquisa pode ser visualizado na Figura 1.

 


Figura 1. Fluxograma representando a amostra do projeto.

 

Ao final da coleta 225 indivíduos adultos responderam aos questionários usados para análise neste estudo com idade média entre 45,5±17,8 anos (mínimo de 18 anos e máximo de 90 anos), destes 144 (64%) eram mulheres, 173 (76,9%) tinham menos de 60 anos. Demais dados sociodemográficos da população estudada estão descritos na Tabela 1.

Entre os participantes, 166 (73,8%) estavam desempregados e 141 (62,7%) haviam sofrido algum tipo de discriminação por serem considerados atingidos pelo desastre, 164 (72,9%) precisaram sair urgentemente do local em que habitavam na época do ocorrido e 34,7% acreditam que o acidente pode ter causado contaminação.

Com relação às variáveis clínicas, 185 (82,7%) dos participantes relataram a presença de alguma doença clínica, 149 (66,2%) possuíam algum sintoma cardiovascular e 70 (31,1%) apresentaram insônia.

A população do estudo apresentou uma pontuação média de 4,14±3,16 na Beck Scale of Hopelessness (BHS), sendo 91% classificada como nível leve de desesperança.

A prevalência de depressão avaliada pela MINI foi de 28,9% na população avaliada, 37 (16,4%) apresentava risco de suicídio, 32% da amostra foi diagnosticada com transtorno de ansiedade generalizada e 12% com transtorno de estresse pós-traumático.

Também foram avaliadas características psicodinâmicas e históricas da população atingida, capazes de influenciar a saúde mental, como traumas infantis, satisfação com o suporte social e resiliência. Além de aspectos relacionados ao desastre. Tais resultados estão descritos na Tabela 1.

Desesperança e suas correlações com qualidade de vida e depressão

A correlação entre desesperança e qualidade de vida na população atingida pelo desastre de Mariana obteve um coeficiente de correlação (CC) de -0,248, p<0,001. A presença de um diagnóstico de depressão também se correlacionou com o escore de desesperança e o CC é de 0,220, p=0,001. Essa correlação se manteve estatisticamente significativa mesmo quando excluímos a população com diagnóstico de depressão, em que o CC é de -0,204, p=0,010. Ou seja, quanto maior a desesperança menor a qualidade de vida, mesmo em indivíduos sem o diagnóstico de depressão (Figura 2).

 


Figura 2. Correlação entre desesperança, depressão e qualidade de vida na população geral (n=225) e após a exclusão dos casos diagnosticados com depressão (n=160).

 

Encontramos também uma correlação negativa entre sintomas de depressão e qualidade de vida sendo o CC de -0,269, p<0,001.

Fatores associados a desesperança na população atingida pelo desastre de Mariana

As características que se associaram com a presença de desesperança na análise univariada foram a idade igual ou superior a 60 (p=0,015); renda inferior a 3 salários mínimos (p=0,032); presença de algum sintoma cardiovascular (p=0,020); reportar insônia (p<0,001); alta resiliência (p=0,004); trauma infantil (p=0,045); satisfação com suporte social (p=0,010); qualidade de vida adequada (p=0,003); depressão (p<0,001); risco de suicídio (p<0,001); ansiedade generalizada (p=0,005); e transtorno de estresse pós-traumático (p<0,001) (Tabela 1).

Quatro fatores permaneceram estatisticamente associados com a desesperança na análise multivariada (Tabela 2), a presença de insônia; a positividade para risco de suicídio na MINI; ter idade igual ou superior a 60 anos e a alta resiliência, conforme a escala de ERWY. Indivíduos que informaram ter insônia (p=0,002) tem 5,92 (intervalo de confiança a 95% (IC 95%) de 1,93-18,18) vezes mais chances de apresentar desespce de relatar desesperança moderada ou grave (p=0,009). E, finalmente, a alta resiliência foi o único fator protetor para desenvolvimento de desesperança (odds ratio = 0,115 (0,02-0,57) e p=0,008).

 

 

O modelo multivariado foi capaz de explicar cerca de 36,2% das variações registradas na variável dependente desesperança (?2: 12,969, p=0,044, G.L.=6; R2 de Nagelkerke: 0,362).

 

DISCUSSÃO

Os resultados obtidos na análise had-hoc do banco de dados da pesquisa PRISMMA confirmam parcialmente as hipóteses do estudo. Ao contrário do que esperávamos, a prevalência de nível elevado de desesperança avaliada pela BHS não foi encontrada, e sim, uma porcentagem de mais 90% de níveis leves. A respeito das correlações, nossas hipóteses foram confirmadas. Encontramos uma correlação positiva entre desesperança e a depressão e uma correlação negativa entre desesperança e qualidade de vida na população estudada. Essa correlação negativa ocorre mesmo entre indivíduos que não apresentam o diagnóstico de depressão, ou seja, quanto maior a desesperança, menor a qualidade de vida. Com relação aos fatores associados, nosso estudo encontrou que indivíduos que relataram insônia, comportamento suicida e que tinham idade superior a 60 anos tiveram uma chance maior de desenvolver desesperança. Por fim, a resiliência foi o único fator capaz de proteger e reduzir as chances de apresentar desesperança na população estudada.

Encontramos uma média de desesperança (4,14±3,16) inferior a outros estudos realizados em populações que sofreram traumas. Ozdemir et al. (2015)7 constatou uma média de 9,49±3,36 pontos na versão turca da BHS em 144 indivíduos que sofreram dissociação patológica após um terremoto ocorrido na Turquia, em 2011. Um estudo realizado na Índia mostrou uma média de 10,9±3,3 pontos na BHS numa população de 540 entrevistados que sofreram com um ciclone que ocorreu na costa do país em 19998. Mortensen et al. (2009)9 demonstraram que a desesperança se encontrava presente em 24,5% dos indivíduos que sofreram com o furacão Katrina em Nova Orleans, em 2005, enquanto que a desesperança esteve presente em menos de 1% da população americana9. Tais achados podem estar relacionados a aspectos metodológicos como o longo intervalo entre o desastre e a realização das entrevistas para coleta de dados desta pesquisa, que ocorreu 2 anos após o desastre.

Paralelamente ao que foi visto em outros estudos, observamos uma associação entre a desesperança, medida pela escala BHS11 e uma menor qualidade de vida, medida pela WHOQL-Bref14. Dunn (2005)1 associou a menor qualidade de vida com maior vulnerabilidade à depressão, redução da funcionalidade e do suporte social e com isso da possibilidade de cooperar uns com os outros, uma maior vontade de antecipar a morte (mesmo na ausência de depressão), assim como predisposição a doenças coronarianas e hipertensão. A desesperança também se relacionou de forma independente à mortalidade e à morbidade1. Nesse sentido, faz-se essencial a avaliação da desesperança no acompanhamento de pessoas expostas a situações de desastre, a fim de possibilitar suporte psicológico e, com isso, evitar o suicídio e o surgimento de comorbidades clínicas e psiquiátricas.

Populações submetidas a desastres têm também maior prevalência de insônia. No presente estudo, 80% dos entrevistados relataram episódios de insônia após o rompimento da barragem. A insônia é um fator preocupante se considerarmos que a qualidade do sono pode estar diretamente relacionada à depressão e desesperança, assim como o contrário, formando um ciclo que se retroalimenta18.

O risco de suicídio mostrou-se relacionado à desesperança, resultado já demonstrado por estudos transversais e longitudinais13,19. Beck et al. (1974)11, demonstraram que o risco de suicídio está mais relacionado ao grau de desesperança do que à intensidade dos sintomas depressivos. Populações expostas a desastres tendem a ter maiores demandas de uso de estratégias de enfrentamento, relacionadas a interrupção de planos de vida e de projetos pessoais. De acordo com Sugiyama et al. (2020)20, a terapia cognitivo-comportamental em grupo mostrou-se eficaz no aumento de resiliência e na redução significativa de depressão, tanto leve quanto grave, podendo ser útil da prevenção de suicídio - comumente associado à depressão - e na melhora da qualidade de vida dos atingidos por desastres.

Idosos tiveram maiores chances de desenvolver desesperança, em concordância com resultados encontrados em estudos anteriores, tal qual a população vítima de inundações estudada por Chung et al. (2017)5,21,22. No estudo de Neufeld e O'Rourke (2009)3 idosos foram apontados como população em maior vulnerabilidade a desenvolver sentimentos de desesperança. Reduzidos níveis de esperança em idosos podem ser relacionados à maior morbidade nessa população, perda de funcionalidade e menor suporte social, como elucidado no estudo de Pillay et al. (1999)23, no qual o único fator protetivo no desenvolvimento de desesperança, foi a resiliência.

Conceitualmente, resiliência consiste na habilidade de lidar com situações e emoções negativas sem sofrer os impactos negativos dessas. Alguns autores apontam que a resiliência pode ser considerada a chave para a melhoria da qualidade de vida. Hjemdal et al. (2012)24 encontraram resultados semelhantes em uma população também submetida ao estresse, em que a resiliência foi identificada como fator preditor de desesperança em pacientes com câncer.

Os resultados apresentados neste estudo devem ser considerados dentro de algumas limitações. A taxa de recusa em participar do estudo é de quase 50% o que pode ter produzido algum viés de seleção. Os esforços em divulgar o projeto entre os participantes, por meio do auxílio de associações locais de atingidos, foram importantes para reduzir a taxa de recusa, mas não impedi-la. O tempo decorrido entre o desastre e as entrevistas aumentam o risco de viés de memória. Além disso, a população estudada ainda está envolvida com um processo longo e litigioso para reparação de danos e realocação, um estressor existente durante a época da entrevista, o que pode ter contribuído para a psicopatologia entre esses indivíduos.

Após a ocorrência de desastres, é sabido que a existência prévia de um plano de contingências para o tratamento da população atingida diminui com o tempo de resposta das autoridades para a assistência dessa população25. A assistência médica e psicológica à população parece ser fundamental para minimizar os possíveis impactos dos eventos em sua vida25. A assistência psicológica deve contemplar medidas de suporte que foquem em redução de estresse e modificação de hábitos, além de foco na redução da desesperança25. Existem estratégias, como o "Programa de Treinamento para Esperança", realizado na Turquia26, que obteve redução dos níveis de desesperança em crianças do ensino fundamental, e o programa "Janela para a Esperança" realizado com adultos após dano cerebral traumático27 que também obteve resultados de redução de desesperança nesses pacientes, utilizando técnicas derivados da terapia cognitivo comportamental (TCC).

 

CONCLUSÕES

Nossos dados identificaram correlação entre desesperança elevada e a piora da qualidade de vida mesmo em indivíduos sem depressão. Dessa forma, ressaltamos a necessidade de elaboração de planos assistenciais para que futuras populações atingidas por desastres recebam o apropriado nível de cuidado, com o intuito de preservação da saúde física, mental e da qualidade de vida.

 

DECLARAÇÕES

Este projeto de pesquisa foi financiado com recursos da Caritas Brasileira. O financiador não interveio em nenhuma etapa da realização da pesquisa. Os autores declaram não ter outros conflitos de interesse que possam influenciar os resultados desta pesquisa.

 

CONTRIBUIÇÃO DOS AUTORES

Conceptualização, Investigação, Metodologia, Visualização & Escrita - Análise e Edição: Administração do Projeto, Supervisão & Escrita - Rascunho Original: Validação, Software: Recursos & Aquisição de Financiamento: Curadoria de Dados & Análise Formal: Marco Antônio Valente Roque, Conceptualização, Investigação, Metodologia, Visualização & Escrita - Análise e Edição/Supervisão & Escrita - Rascunho Original, Validação, Software, Curadoria de Dados & Análise Formal. Nicole Font dos Santos Conceptualização, Investigação, Metodologia, Visualização & Escrita - Análise e Edição/Supervisão & Escrita - Rascunho Original, Curadoria de Dados & Análise Formal. André Augusto Corrêa de Freitas Conceptualização, Investigação, Metodologia, Validação, Software, Curadoria de Dados & Análise Formal. Letícia Costa da Silva, Conceptualização, Supervisão & Escrita - Rascunho Original. Fernanda Rúbia Batista Conceptualização, Supervisão & Escrita - Rascunho Original. Matheus Gonçalves Flores Conceptualização, Supervisão & Escrita - Rascunho Original. Sarah de Morais Bispo Fidelis: Visualização & Escrita - Análise e Edição. Frederico Duarte Garcia: Administração do Projeto, Recursos & Aquisição de Financiamento, Visualização & Escrita - Análise e Edição: Maila de Castro Lourenço das Neves: Administração do Projeto, Recursos & Aquisição de Financiamento, Visualização & Escrita - Análise e Edição.

 

COPYRIGHT

Copyright© 2021 Roque et al. Este é um artigo em acesso aberto distribuído nos termos da Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Licença Internacional que permite o uso irrestrito, a distribuição e reprodução em qualquer meio desde que o artigo original seja devidamente citado.

 

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