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CAPES/Qualis: B2
Centenário da descoberta da doença de chagas
Manoel Otávio da Costa Rocha
A descoberta da doença de Chagas em 1909 constitui feito singular na história da Medicina, no qual um único pesquisador descobre, sucessivamente, o vetor, o agente etiológico, o principal mecanismo de transmissão e as características clínicas de uma doença, lançando, ainda, as bases para o desenvolvimento pleno da pesquisa a seu respeito.1
Carlos Justiniano Ribeiro Chagas nasceu em Oliveira, Minas Gerais, em nove de julho de 1879, tendo realizado, neste estado, sua obra científica principal enquanto trabalhava na cidade de Lassance, convocado por Oswaldo Cruz a realizar campanha antimalárica no Vale do São Francisco, em 1908.2
Um ano após a chegada em Lassance, Carlos Chagas verificou a infestação de barbeiros - insetos hematófagos então abundantes na região - por um novo tripanosomídeo, inicialmente denominado Schizotrypanum cruzi, posteriormente Trypanosoma cruzi. Examina animais domésticos, neles também encontrando o mesmo parasito. Em Manguinhos, Carlos Chagas havia alcançado o embasamento parasitológico em metodologia científica que, associada ao tirocínio clínico adquirido na Santa Casa do Rio de Janeiro, com Farjado, Rocha Faria e Miguel Couto, possibilitou o desenvolvimento sequenciado e racional de sua magnífica descoberta.3 Em março de 1909, observou a presença do tripanossoma no sangue de uma criança de dois anos, partindo para o reconhecimento de uma nova doença4, a qual descreveu minuciosamente quanto a seus aspectos clínicos, delineando, ainda, os fundamentos de sua patogenia e sua epidemiologia.
Por sugestão de Miguel Couto, a nova doença passou a ser reconhecida com o nome de seu descobridor. Dentre os colaboradores na edificação do acervo de conhecimentos iniciais sobre a nova doença, sobressaem os nomes de Gaspar Viana, Margarino Torres e Eurico Villela.3
A descoberta de Chagas teve vasta repercussão nos meios científicos nacionais e internacionais, a que se seguiu o denominado "episódio da Academia", fase de desentendimento e de tentativas de descrédito da notável descoberta.5 Em decorrência de questionamentos postos na Academia Nacional de Medicina, entre 1924 e 1925, quanto à relevância da doença, esta passou por longo período de desatenção, o que retardou o melhor conhecimento de seu manejo clínico e o controle de transmissão.
Com os trabalhos de Salvador Mazza e colaboradores, na Argentina, reativou-se o interesse pelo estudo da doença1. A partir da metade da década de 40, novos acontecimentos renovaram esse interesse.1,5 Com a criação do Centro de Estudos em Doença de Chagas em Bambuí, dentro da organização do Instituto Oswaldo Cruz, surgiram contribuições das mais relevantes quanto às caracteristicas da miocardite chagásica6 e à demonstração da possibilidade concreta de se controlar a transmissão vetorial da doença.7 Com a criação da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, surgiu um novo e importante grupo de pesquisadores, que veio trazer contribuições fundamentais à compreensão da doença de Chagas e de seus processos de epidemiologia. Novo estímulo para a investigação e conhecimento da enfermidade derivou-se da realização, em julho de 1959, do Congresso Internacional Comemorativo do Cinquentenário da Descoberta da Doença de Chagas, a qual deixou de constituir preocupação nacional, para ser reconhecida como problema de dimensões continentais.1,5
Esse congresso abriu novas perspectivas para o desenvolvimento dos estudos da doença de Chagas nas décadas seguintes.1
Surgiram, de maneira contínua e crescente, trabalhos no campo das ciências básicas e o desenvolvimento dos estudos abordando a epidemiologia, patogenia, anatomopatologia clínica, tratamento e controle da enfermidade, envolvendo pesquisadores de diversas instituições de ensino e pesquisa, em vários estados brasileiros. Grupos estáveis e produtivos de pesquisadores constituíram-se especialmente em Goiânia, Salvador, Ribeirão Preto, Campinas, São Paulo, Belo Horizonte, Uberaba e Rio de Janeiro. Sob inspiração de Carlos Chagas e seus companheiros, a pesquisa intensificou-se com a realização das Reuniões Anuais de Pesquisas Básica e Aplicada em Doença de Chagas, respectivamente, em Caxambu e Uberaba. No seio da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical manteve-se, ao longo de sua existência, o luzeiro de ideais e dos exemplos de Carlos Chagas, catalisando-se e estimulando-se a pesquisa aplicada à solução dos graves problemas causados pela doença, assim como buscando-se influenciar a adoção de políticas adequadas para seu controle. Dessa sociedade emanaram os exemplos do fazer científico comprometido com a superação dos problemas autóctones de saúde, forjando-se sucessivas gerações de docentes e pesquisadores em Medicina Tropical, que vieram constituir a base para a implantação e desenvolvimento de um sistema de pós-graduação de excelência nessa área do conhecimento, reconhecido internacionalmente. No âmbito da produção científica nacional, destaca-se aquela relacionada à área da saúde e, especialmente, à relacionada às pesquisas básica e aplicada à doença de Chagas.
Minas Gerais, agora como no passado, muito tem contribuído para o melhor conhecimento dessa moléstia, ressaltando-se a participação das Faculdades de Medicina da UFMG e do Triângulo Mineiro, Centro de Pesquisas René Rachou - Fiocruz, Instituto de Ciências Biológicas da UFMG e Fundação Ezequiel Dias.
Muito se alcançou no campo da pesquisa e conhecimento da doença de Chagas desde sua descoberta, destacando-se o expressivo sucesso verificado no controle das transmissões vetorial e transfusional, fruto da influência perseverante e da ação política consciente dos tropicalistas brasileiros.
Embora o Brasil tenha recebido certificação, pela Organização Mundial de Saúde, da interrupção da transmissão vetorial pelo Triatoma infestans em 2006, atenção deve ser dada ao número significativo de casos de transmissão por meio de alimentos contaminados pelo T. cruzi em áreas endêmicas, aos diferentes aspectos epidemiológicos da doença na Amazônia e à necessidade de se manterem ativas as medidas de vigilância e controle da transmissão vetorial.
No Brasil, o controle da transmissão transfusional da infecção pelo T. cruzi institui-se, de maneira eficaz, a partir do início da década de 80.2 No entanto, o risco dessa forma de transmissão persiste em vários países latino-americanos, e mesmo em países de outros continentes, em função da migração de indivíduos infectados e da sua deficiência no controle transfusional, especialmente no que se refere à tripanossomiase americana.8
Nas palavras de Carlos Chagas Filho, "a descoberta da doença de Chagas, pelas características singulares com que se desenvolveu, é o melhor patrimônio científico brasileiro, porque demonstra a validade de nossos técnicos e cientistas e, mais ainda, o desassombro, a coragem e o idealismo com que nossos pesquisadores e médicos se dedicam aos problemas nacionais de mais importância".5
REFERÊNCIAS
1. Coura JR. Síntese histórica e evolução dos conhecimentos sobre a doença de Chagas. In: Dias JCP, Coura JR, editores. Clínica e terapêutica de doença de Chagas, Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 1997. p. 469-86.
2. Wendel S, Brener Z. Historical Aspects. In: Wendel S, Brener Z, Camargo ME, Rassi A, editors. Chagas Disease (American Trypanosomiasis): its Impact on transfusion and clinical medicine. Brazil: ISBT; 1992. p. 5-12.
3. Chagas Filho C. Carlos Chagas e seus colaboradores. In: Cançado JR, Chuster M, editores. Cardiopatia chagásica. Belo Horizonte: Fundação Carlos Chagas, 1985. p. ix-xiii.
4. Chagas C. Nova tripanozomiase humana. Estudos sobre a morfolojia e o ciclo evolutivo do Schizotrypanum cruzi n.g., n.s.p., ajente etiolójico de nova entidade mórbida no homem. Mem Inst Oswaldo Cruz. 1909;1:159-218.
5. Chagas Filho C. Histórico sobre doença de Chagas. In: Cançado JR, editor. Doença de Chagas. Belo Horizonte: Imprensa Oficial do Estado de Minas Gerais; 1968. p. 5-21.
6. Laranja FS, Dias E, Nóbrega, Miranda A. Chagas' disease. A clinical epidemiologic and pathologic study. Circulation. 1956; 14: 1035-60.
7. Dias E, Pellegrino J. Alguns ensaios com o gamexane no combate aos transmissores da doença de Chagas. Brazil Médico. 1948; 62: 185-191.
8. Schmunis GA. Tripanossomíase americana: seu impacto nas Américas e perspectivas de eliminação. In: Dias JCP, Coura JR, editores. Clínica e terapêutica da doença de Chagas. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 1997. p. 11-23.
Manoel Otávio da Costa Rocha
Professor Titular. Departamento de Clínica Médica Faculdade de Medicina da UFMG
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