RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 19. 4

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Artigo Original

Qualidade de vida dos portadores de doença de Chagas

Quality of life of patients with Chagas disease

Eliane Dias Gontijo1; Tássia Nazareth Guimarães2; Cláudia Magnani2; Gabriela Miana Paixão1; Sanzio Dupin1; Lúcia Miana Paixão3

1. Faculdade de Medicina, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Brasil
2. Universitá di Bologna, Bologna, Italia
3. Secretaria Municipal de Saúde de Belo Horizonte, Brasil

Endereço para correspondência

Eliane Dias Gontijo
Faculdade de Medicina, Universidade Federal de Minas Gerais
Av. Alfredo Balena, 190, sala 825
Belo Horizonte, MG 30130-100, Brasil
Email: egontijo@medicina.ufmg.br

Recebido em: 01/09/2009
Aprovado em: 09/09/2009

Instituição: Ambulatório de Doença de Chagas do Hospital das Clínicas da UFMG

Resumo

OBJETIVOS: este trabalho pretende conhecer a avaliação da qualidade de vida (QV) pelos portadores de doença de Chagas (DCH), em seus domínios físico, psicológico, de relações sociais e com o meio ambiente, no sentido de orientar os profissionais na integralidade do cuidado.
MÉTODOS: utilizou-se o WHOQOL-Bref proposto pela OMS. Foram acrescentadas questões sobre identificação pessoal, forma clínica e religiosidade, aplicadas em amostra de conveniência a 70 pacientes atendidos no Ambulatório de Doença de Chagas do Hospital das Clínicas da UFMG durante o ano de 2008. A análise descritiva foi feita por distribuição da frequência das variáveis categóricas e da média das variáveis contínuas. Utilizaram-se os testes estatísticos qui-quadrado de Pearson, regressão logística e regressão linear. O Kappa foi usado para estabelecer a concordância das variáveis: satisfação com a saúde e qualidade de vida.
RESULTADOS: os entrevistados foram, em sua maioria, mulheres, com média de idade de 53 anos. A maioria apresentou baixa escolaridade, situação econômica precária e relato de mudança de emprego devido à doença. Os participantes não relacionaram a saúde com a qualidade de vida. As condições socioeconômicas adversas dos pacientes chagásicos justificam a pouca satisfação com o ambiente físico, condições de moradia, recursos financeiros, serviços de saúde e transporte, itens relativos ao referido domínio. A correlação da percepção de qualidade de vida com a satisfação apareceu nos domínios físico, psíquico e ambiental, entretanto, não foi observada relação com o domínio das relações sociais (r:0,05 NS). Houve associação significativa entre a forma clínica cardíaca e baixo escore relativo ao domínio psíquico(4), evidenciando que o portador da forma cardíaca da doença possui mais sofrimento psíquico quando comparado com o chagásico sem cardiopatia. Os demais domínios não se relacionaram com a forma clínica a 5% de significância.
CONCLUSÕES: o estigma associado ao chagásico prejudica a sua função no organismo social da comunidade e a inclusão ao grupo, limitando sua QV. Esse fato salienta a necessidade de que o cuidado com o paciente com doença de Chagas seja integral, envolvendo abordagem multiprofissional.

Palavras-chave: Qualidade de vida; Doença de Chagas; Trypanosoma cruzi; Estigma; Integralidade.

 

INTRODUÇÃO

A doença de Chagas (DCH) é cercada de estigmas e domínios culturais populares que condicionam as relações sociais e econômicas de seus portadores. É causada pelo Trypanosoma cruzi, que possui ampla distribuição no continente americano. Estimam-se entre 12 e 14 milhões de infectados em 19 países da América Latina. No Brasil, são 2,5 milhões de cidadãos com sorologia positiva para o T. cruzi1,2, sendo 50% assintomáticos, constituindo a forma crônica indeterminada da doença; 20% com a forma digestiva; e entre 10 e 30% com cardiopatia crônica, dos quais 10% desenvolverão forma grave que, possivelmente, será responsável pelo seu óbito ou pela perda de anos produtivos laborais.3

A DCH é reconhecida pela complexa inter-relação com fatores biológicos, históricos, políticos e socioeconômicos, com forte impacto médico-trabalhista e de caráter estigmatizante. Não é entendida pela população da forma como o é pela comunidade científica, isto é, independentemente de sua forma de apresentação, sintomática ou assintomática, os chagásicos são cercados por discriminações que condicionam suas relações sociais, culturais e econômicas e limitam sua qualidade de vida.4

Entende-se como qualidade de vida (QV) a percepção do indivíduo de sua posição na vida no contexto da cultura e sistemas de valores nos quais ele vive e em relação aos seus objetivos, expectativas, padrões e preocupações.5 O interesse pelo conceito de QV é relativamente recente e decorre, em parte, dos novos paradigmas que têm influenciado, nas últimas décadas, as políticas e as práticas do setor da saúde. Os determinantes e condicionantes do processo saúde-doença são multifatoriais e complexos. Assim, saúde e doença configuram processos compreendidos como um continuum, relacionados aos aspectos econômicos, socioculturais, à experiência pessoal e estilos de vida.6

No Brasil, a QV tem sido pesquisada, especialmente em condições crônicas de saúde-doença e como adjuvante na análise de intervenções terapêuticas.7 No âmbito da saúde coletiva, é crescente o interesse pela avaliação da QV do paciente.8-10

O presente estudo pretende conhecer a percepção de QV de portadores da DCH em seus domínios físico, psíquico, de relações sociais e com o meio ambiente, a fim de contribuir para que os profissionais de saúde atendam a seus pacientes em sua integralidade.

 

CASUÍSTICA E MÉTODO

Trata-se de estudo transversal, utilizando o instrumento WHOQOL-Bref proposto pela OMS, para avaliação de QV. Foram acrescentadas questões referentes a identificação pessoal, forma clínica e crenças religiosas. O questionário, incluindo 33 variáveis, foi aplicado em amostra de conveniência de 70 pacientes atendidos no Ambulatório de DCH do Hospital das Clínicas da UFMG durante o primeiro semestre de 2008. O instrumento WHOQOL-Bref apresenta características satisfatórias de consistência interna, validade discriminante, validade de critério, validade concorrente e fidedignidade teste-reteste.11,12 O WHOQOL-Bref é composto de 26 questões: duas sobre qualidade de vida global e satisfação com a saúde e as outras 24 distribuídas em quatro domínios: físico, psicológico, relações sociais e meio ambiente. As questões foram formuladas para uma escala de respostas do tipo Likert, com escala de intensidade (nada-extremamente), capacidade (nada-completamente), frequência (nunca-sempre) e avaliação (muito insatisfeito-muito satisfeito; muito ruim-muito bom).

As entrevistas foram feitas por duas estudantes de graduação em Medicina da UFMG, previamente treinadas e realizadas em local reservado e tranquilo, assegurando a privacidade e conforto dos pacientes.

A análise descritiva foi feita por distribuição da frequência das variáveis categóricas e da média das variáveis contínuas. Utilizaram-se os testes estatísticos qui-quadrado de Pearson, regressão logística e regressão linear. O Kappa foi usado para estabelecer a concordância das variáveis: satisfação com a saúde e qualidade de vida. Os softwares aplicados foram o Excel e EpiInfo Windows.

O trabalho foi aprovado pelo comitê de Ética em pesquisa da UFMG, em 15 de junho de 2005 (processo nº. Etic 095/05), e obteve apoio financeiro da FAPEMIG.

 

RESULTADOS

Os entrevistados foram, em sua maioria, mulheres (68%), com média de idade de 53 anos, variando de 27 a 79 anos, não-brancos (60%), baixa escolaridade (4,5 anos) e renda familiar de 2,4 salários mínimos. O tempo médio de diagnóstico foi de 19,87 anos; e um terço dos entrevistados relatou que mudou de emprego devido à doença.

Todos os pacientes eram provenientes de zona rural, sendo que 98,4% nasceram em zonas endêmicas e 90,8% relataram ter residido em casa de pau-a-pique.

A quase totalidade dos participantes do estudo (82%) declarou a crença religiosa como fortalecedor no enfrentamento das dificuldades do dia-a-dia, associando a espiritualidade ao sentido de vida. Os participantes não relacionaram a saúde com a QV (coeficiente de Spearman 0,32). Os domínios relações sociais (67,7) e psicológico (57,2) foram os que apresentaram os mais altos escores, enquanto o domínio meio ambiente apresentou o mais baixo (49,7). As condições socioeconômicas adversas dos pacientes chagásicos justificaram a pouca satisfação com o ambiente físico, condições de moradia, recursos financeiros, serviços de saúde e transporte, itens relativos ao referido domínio. A correlação da percepção de QV com satisfação apareceu nos domínios físico, psíquico e ambiental, entretanto, não foi observada relação com o domínio das relações sociais (r:0,05 NS). Houve associação significativa entre a forma clínica cardíaca e baixo escore relativo ao domínio psíquico4, evidenciando que o portador da forma cardíaca da doença possuía mais sofrimento psíquico quando comparado com o chagásico sem cardiopatia. Os demais domínios não se relacionaram com a forma clínica a 5% de significância. (Figuras 1 e 2)

 


Figura 1 - Avaliação dos escores de cada domínio.

 

 


Figura 2 - Comparação entre escores de satisfação, nos domínios, entre cardiopatas e não cardiopatas. (Teste Mann Whitney)

 

DISCUSSÃO

A dimensão psicossocial é entendida como condições da enfermidade - relacionadas ao nível educacional dos portadores, às informações que têm sobre a doença e à sua influência sobre os hábitos sanitários - e como condições pessoais e de vida, além das suas ideias, valores, crenças ou expectativas pessoais em relação à doença.13

Os domínios culturais difundidos na população chagásica destacam-se também como fatores que influenciam a percepção do estado de saúde, por modelarem as relações socioculturais nas quais os indivíduos se inserem no seu cotidiano, criando sofrimento social, marginalização e estigma. Há acentuado preconceito contra o trabalhador chagásico, o que leva a pior condição de vida e consequências sociais desastrosas.14 O impacto psicológico adquire toda importância e o conhecimento das manifestações e repercussões da doença, às vezes, pode ser relativizado em função de estratégias individuais desenvolvidas como forma de contornar as limitações profissionais impostas pela DCH. A negação emerge como estratégia privilegiada frente à angústia de estar doente, à evolução conhecida da DCH e à impossibilidade de interrompê-la; entretanto, se essa estratégia permite minimizar o impacto psicológico da soropositividade, ela também impede a adesão aos programas e tratamentos disponíveis.10 O alto índice de espiritualidade observado pode ser considerado outra estratégia social utilizada para enfrentar a crise existencial determinada pela doença crônica e pelas condições sociais e econômicas que limitam a QV.4 A fé assume papel fundamental na abordagem da DCH, pois se torna instrumento justificativo da própria condição existencial e força psicológica para aceitar os próprios problemas de saúde e as dificuldades a eles associadas.

Os portadores de DCH, como outros tantos moradores da zona rural, quase sempre vivem em condições desfavoráveis. Em geral, sentem-se pouco envolvidos com os cuidados com o seu ambiente, por não serem proprietários da terra e da casa onde moram. Por vezes, são submetidos a exigentes jornadas de trabalho, que só lhes garantem a sobrevivência imediata, com pouca perspectiva de bom futuro.14 As condições socioeconômicas adversas do paciente chagásico foram evidenciadas pelo baixo escore obtido na avaliação do domínio de meio-ambiente, destacando-se como fatores que afetam a saúde do indivíduo e sua qualidade de vida. A maior insatisfação apresentada pelos cardiopatas nesse domínio reflete a relação doençaincapacidade laboral, a qual determina importante impacto econômico em suas vidas, assim como forte sofrimento social gerado pela perda do papel individual na sociedade.

Como agravante da situação, a assistência médica oferecida a esses pacientes mostra-se, em geral, inadequada e centrada apenas na abordagem biológica da doença, sem levar em consideração a percepção do indivíduo sobre a sua saúde e sobre os aspectos físicos, psicológicos e socioculturais que pertencem à própria experiência de adoecimento e, num plano mais amplo, ao seu viver.4 A aproximação médico-paciente é fundamental para situações em que sua doença crônica exigirá mais atenção e persistência no tratamento, buscando encorajá-lo a retornar para outras consultas. O conforto, verbal ou não, se não contribuir diretamente para prolongar a vida, ao menos poderá criar possibilidades de acolhimento.15

 

CONCLUSÕES

A DCH é cercada de estigmas e valores culturais que condicionam as relações sociais e econômicas de seus portadores. A partir da percepção do indivíduo de seu estado de saúde e sobre os aspectos físicos, psicológicos e socioeconômicos que pertencem ao seu viver, observou-se o impacto da DCH como limitadora da QV dos pacientes nos diversos planos. O estudo confirma que o estigma associado ao agravo prejudica a função do portador no sistema social da comunidade e a sua inclusão no grupo e reforça a necessidade de que os profissionais de saúde dispensem mais atenção às repercussões que a DCH acarreta no âmbito sociopsicológico do paciente, pois estas se tornam grandes limitadoras de sua QV. Sendo assim, tornase essencial estimular a integralidade do cuidado prestado pelo serviço de saúde, enfatizando a orientação decodificada sobre a DCH, no sentido de evitar que a desinformação perpetue a difusão de mitos populares, que, por vezes, se tornam preconceitos e elementos sociais de estigma e reforcem a vulnerabilidade psicossocial do portador da infecção chagásica.

 

REFERÊNCIAS

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8. Guariento ME, Wanderley JS, Almeida EA. Doença de Chagas. In: Lopes AC, Ward LS, Guariento ME. Medicina ambulatorial. São Paulo: Atheneu; 2006. p.225-36.

9. Araujo SM, Andó MH, Cassarotti DJ, Mota DCGD, Borges SMR, Gomes ML. Programa ACHEI: Atenção ao Chagásico com Educação Integral no Município de Maringá e região Noroeste do Paraná, Brasil. Rev Soc Bras Med Trop. 2000; 33(6):565-72.

10. Uchoa AE, Firmo JOA, Pereira MSN, Gontijo ED, Dias EC. Signos, significados e ações associadas à Doença de Chagas. Cad Saude Publica. 2002; 18:71-9.

11. Fleck MPA, Louzada S, Xavier M, Chachamovich GV, Santos L, Pinzon V. Aplicação da versão em português do instrumento abreviado de avaliação da qualidade de vida "WHOQOL-bref". Rev Saúde Pública. 2000;34(2):178-83.

12. Moreno AB, Faerstein E, Werneck G, Lopes CS, Chor D. Propriedades Psicométricas do Instrumento Abreviado de Avaliação de Qualidade de Vida da Organização Mundial de Saúde (WHOQOL-Bref) no Estudo Pró-Saúde. Cad Saúde Pública. 2006;22:2585-97.

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14. .Guariento M E., Camilo, M. V. F. & Camargo, A. M. A. (1999). Situação trabalhista do portador de doença de Chagas crônica, em um grande centro urbano. Cad Saúde Pública, 15, 381-386.

15. Ballester-Gil LM, Stotz EN, Hasslocher-Moreno AM, Azevedo BA, Araujo-Jorge TC. O saber do paciente chagásico sobre a sua doença: construção compartilhada de um instrumento para a pesquisa e teste de sua aplicabilidade. Ciênc Saúde Coletiva. 2008;13(suppl. 2):2199-2214.