RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 33 S60-S64 DOI: https://dx.doi.org/10.5935/2238-3182.v33supl.5.06

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Relato de Caso

Neuropatia óptica isquêmica não arterítica após facoemulsificação: um relato de caso

Alberto Andrade Horta Dumont1; Clara Chagas Barbosa Santos2; Marcelo Gonçalves de Oliveira2; Luciano Mesquita Simão3

1. Instituto dos Olhos Ciências Médicas - IOCM-MG
2. Faculdade de Ciências Médicas Minas Gerais – FCMMG
3. Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais; Instituto dos Olhos Ciências Médicas - IOCM-MG

Endereço para correspondência

Autor correspondente:

Luciano Mesquita Simão
E-mail: lucianosimao@gmail.com

Resumo

INTRODUÇÃO: A neuropatia óptica isquêmica anterior- não arterítica (NOIA-NA) ocorre devido a uma falha da circulação da artéria ciliar posterior responsável pelo suprimento sanguíneo da porção anterior do nervo óptico associada à perda variável de visão. Os principais fatores de risco são diabetes mellitus, hipertensão arterial, hipercolesterolemia, doença isquêmica (cardiovascular/cerebrovascular), síndrome da apneia do sono, tóxica (ou seja, associada ao uso de certos medicamentos) e cirurgias do segmento anterior.
OBJETIVO: Relatar um caso clínico de NOIA-NA que se desenvolveu após procedimento de cirurgia de catarata por facoemulsificação com ênfase nos fatores de risco associados a tal ocorrência.
RELATO DO CASO: Um paciente de 72 anos, assistido em serviço de referência em oftalmologia do estado de Minas Gerais, submetido à facoemulsificação (FACO) com implante de lente intra-ocular (LIO) no olho direito (OD) no dia 07/06/22 e no olho esquerdo (OE) no dia 05/07/22, ambas sem intercorrências e com boa evolução no pós-operatório imediato. Após sete meses de pós-operatório, o paciente relata quadro progressivo e indolor de baixa de visão à esquerda há menos de uma semana associado à presença de escotomas no campo visual. Ao mapeamento de retina no OE encontrou-se edema de disco óptico com hemorragias em chama de vela, aumento da tortuosidade vascular e reflexo foveal fisiológico.
DISCUSSÃO: A hipótese de NOIA-NA, ocorrida no sétimo mês de pós-operatório de FACO sem intercorrências, foi a causa mais presumida, a partir da clínica, da realização de exames complementares e do acompanhamento. Portanto, a baixa de visão unilateral, indolor, aguda associada aos defeitos sugestivos no campo visual, caracterizados por defeitos altitudinais ou escotomas nasais, aos achados à tomografia de coerência óptica (OCT) de aumento da espessura da camada de fibras peripapilares do disco óptico e a história do uso de inibidores da fosfodiesterase tipo 5 (tadalafila) podem associar à ocorrência de NOIA-NA conforme já descrito na literatura.
CONCLUSÃO: A conduta foi expectante em decorrência da falta de eficácia do tratamento, comprovada cientificamente. No entanto, a orientação quanto a necessidade do controle mais rigoroso dos fatores de risco cardiovasculares se faz de suma importância para se evitar a possibilidade de recorrência da NOIA-NA, em especial no olho contralateral.

Palavras-chave: Neuropatia Óptica Isquêmica Anterior não Arterítica. Isquemia do Nervo Óptico. NOAI-NA. Facoemulsificação.

 

INTRODUÇÃO

A neuropatia óptica isquêmica anterior- não arterítica (NOIA-NA) ocorre devido a uma falha da circulação da artéria ciliar posterior responsável pelo suprimento sanguíneo da porção anterior do nervo óptico associada à perda variável de visão. Os principais fatores de risco são diabetes mellitus, hipertensão arterial, hipercolesterolemia, doença isquêmica (cardiovascular/cerebrovascular), síndrome da apneia do sono, tóxica (ou seja, associada ao uso de certos medicamentos) e cirurgias do segmento anterior1.

A NOIA-NA já foi bem documentada após diversos procedimentos cirúrgicos como angioplastia miocárdica, blefaroplastia, etc. No entanto, o presente relato destaca a sua ocorrência após a extração de catarata por facoemulsificação (FACO)2,3,4. Contudo, esta correlação é, ainda, pouco explicada e requer seu mecanismo ser melhor estudado2,3,4,5.

Acredita-se que a fisiopatologia esteja relacionada a isquemia segmentar da circulação da artéria ciliar posterior, afetando o suprimento da porção anterior do nervo óptico3,4. É possível sugerir a ocorrência da NOIA-NA após FACO em categorias, 1,2,5 sendo o tipo imediato, o ocorrido em dias, e o tipo tardio, em semanas ou meses, após o procedimento cirúrgico2,3,4,5.

Acredita-se, ainda, que a pressão intraocular (PIO) aumentada durante o procedimento esteja mais relacionada com o tipo imediato, enquanto no caso da tardia, os fatores de risco ainda estão sendo estudados1,2,3,6.

Observa-se na literatura que a incidência de NOIA-NA após extração de catarata é significativamente maior do que a sua incidência anual não relacionada ao procedimento. Segundo MCulley et al, a incidência de NOIA-NA após 6 semanas e 6 meses do procedimento de extração de catarata é de 34,6 em 100.000 (com 95% CI. 4,2-125) e 51,8 em 100.000 (95% CI, 10,7–151), respectivamente. Isso pode representar uma ocorrência de NOIA-NA a cada 2000 casos de extração de catarata, sendo, portanto, uma ocorrência muito incomum. Além disso, não há consenso na literatura relacionado ao período de maior susceptibilidade da ocorrência de NOIA-NA após FACO 1,3,6,7.

 

RELATO DE CASO

Um paciente de 72 anos, hígido, em uso de tadalafila, sem história oftalmológica prévia, ex-tabagista (30 anos/maço, cessou tabagismo há 20 anos) assistido em serviço de referência em oftalmologia do estado de Minas Gerais, foi submetido à FACO com implante de LIO no olho direito no dia 07/06/22 e no olho esquerdo no dia 05/07/22, ambas sem intercorrências intra operatórias e com boa evolução no pós-operatório. À época apresentava avaliação no OE sem alterações à biomicroscopia e à fundoscopia. A PIO era de 14 mmHg. No entanto, no dia 23/02/23, ou seja, sete meses após procedimento cirúrgico da FACO no OE, o paciente retorna queixando-se de baixa acuidade visual neste olho de início há menos de uma semana acompanhado de escotoma no campo visual. Negava trauma ocular. À biomicroscopia foram encontradas conjuntivas calmas, córneas transparentes, câmara anterior formada sem reação, íris trófica, pseudofacia bilateralmente. À fundoscopia havia no OD disco róseo com relação E/D (0,2/0,2), brilho macular fisiológico e no OE, edema de disco óptico com hemorragias em chama de vela, aumento da tortuosidade vascular e reflexo foveal fisiológico. Paciente foi avaliado no departamento de neuro-oftalmologia em 01/03/23, com permanência de baixa de visão no OE, estável e negava sinais ou sintomas de arterite temporal, como hipersensibilidade em região temporal, cefaleia, claudicação de mandíbula, febre, impotência ou perda de peso. A tonometria era de 14 mmmHg bilateralmente. Os exames de tomografia de coerência óptica (OCT), angiofluoresceinografia (AGF) e campo visual computadorizado (24-2) revelaram no olho esquerdo, respectivamente, edema de disco óptico, extravasamento de contraste com hemorragias em chama de vela na topografia de disco óptico e escotoma nasal .

Resultados da Tomografia de Coerência Óptica (OCT) de disco óptico, angiofluorescência (AGF) e campo visual computadorizado.

 


Imagem 1 - Tomografia de Coerência Óptica (OCT) de disco óptico demonstra resultado no OD dentro da normalidade e no OE edema de disco óptico.

 

 


Imagem 2 e 3 - Angiofluorescência (AGF) e retinografia (red-free) demonstram hiperfluorescência e extravasamento de contraste com hemorragias em chama de vela na topografia de disco óptico esquerdo

 

 


Imagem 4 - Campo Visual computadorizado revela no OD escotoma temporal relativo discreto e no OE escotoma absoluto predominante nasal.

 

DISCUSSÃO

A NOAI-NA, é uma forma grave de deficiência visual que é resultante de um suprimento sanguíneo insuficiente das artérias ciliares posteriores. É caracterizada pela súbita perda visual, indolor e, na maior parte dos casos, irreversível, a qual é acompanhada por defeito pupilar aferente e edema de disco óptico1,3. Estudos sugerem certo padrão no surgimento dos sintomas com percepção da BAV pelo próprio paciente. Principalmente no momento do primeiro despertar no pós-cirúrgico, com progressão gradual da perda de visão e alterações de campo visual, evidenciados nos testes de confrontação associados a níveis de acuidade visual 20/200 ou piores4,5,8,9. Entretanto, há também relatos de início da sintomatologia de forma mais tardia, com mais frequência relacionada ao pós-cirúrgico de catarata 6.9.10,11.

A incidência de NOAI-NA, de acordo com Mansukhani et al. varia de acordo com o tempo pós facoemulsificação para determinar se é uma NOAI-NA pós cirúrgica (NOIApc) ou se é uma NOIA espontânea (NOIAe)6. Em contexto pós-cirúrgico, a incidência em 2 meses, foi de 8,6 (95% IC 2,2 - 34,5) enquanto a espontânea foi de 6,9 (95% IC 5,7 - 8,4) por 100.000 pessoas por ano.6 Por outro lado, em um período de 1 ano após cirurgia de catarata, a incidência foi de 38,9 (95% IC 20,2 - 74,7) e da NOIAe foi de 6,5 (95% IC 5,3 - 7,9) por 100.000 pessoas por ano (p<0,001). O tempo médio de incidência de NOIApc foi de 25,5 meses (espectro, 38 dias a 12,7 anos)6. Comparando a NOIApc e NOIAe não houve diferença estatística em relação à raça, diabetes mellitus, hiperlipidemia, apneia obstrutiva do sono, doença arterial coronariana, infarto miocárdio, entre outros6. Entretanto, elas divergem em relação à idade média de incidência, 79 e 64 anos, respectivamente6. Uma outra consideração em relação à maior incidência de NOIApc é o fato de mais pacientes serem submetidos ao procedimento de FACO anualmente, a maior longevidade e a falta de determinação de tempo de sua ocorrência, em especial no tipo tardio, que varia de semanas, meses a anos.

O presente caso de NOIApc foi considerado devido à sintomatologia, tempo pós-operatório, quadro clínico, fundoscopia e achados aos exames complementares como campo visual, OCT e angiofluoresceinografia. Havia, ainda, história de ex-tabagismo e uso prévio de fosfodiesterase tipo 5 (tadalafila), sendo este último um relevante fator de risco a ser considerado.

A evolução da NOAI-NA na maioria dos casos leva a diminuição da acuidade visual de forma irreversível, com a possibilidade de acometimento do outro olho, - um desfecho comumente relatado na literatura - 11,12.

O manejo e tratamento da NOAI-NA ainda permanece incerto. Alguns estudos relatam que há algum benefício do uso de ácido acetil salicílico (aspirina) como medida de prevenção da recorrência e da instalação do quadro de NOAI-NA no olho contralateral, a conduta eleita no caso em questão foi expectante, devido a precariedade de estudos que denotem superioridade entre outros protocolos existentes em relação a conduta expectante. Portanto, a melhor estratégia consiste na prevenção primária dos fatores de risco associados à maior incidência de NOIA-NA.

 

CONCLUSÃO

Há poucos estudos que correlacionam NOIA-NA a FACO, sendo o mecanismo fisiopatológico ainda não muito bem explicado. O presente caso de NOIA-NA ocorrida em período pós-operatório tardio de FACO ressalva a importância de se controlar os fatores de risco modificáveis, no momento pré-operatório da FACO, que anualmente vem sendo cada vez mais realizada globalmente. A documentação clínica prévia dos casos é de suma importância, a fim de criar um conhecimento e embasamento científico para a identificação e conduta de outros casos semelhantes.

 

REFERÊNCIAS

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10. Lam BL, Jabaly-Habih H, Al-Sheikh N, Pezda M, Guirgis MF, Feuer WJ, et al. Risk of non-arteritic anterior ischaemic optic neuropathy (NAION) after cataract extraction in the fellow eye of patients with prior unilateral NAION. Br J Ophthalmol. 2007;91(5):585–587.

11. Moradi A, Kanagalingam S, Diener-West M, Miller NR. Post–Cataract Surgery Optic Neuropathy: Prevalence, Incidence, Temporal Relationship, and Fellow Eye Involvement. Am J Ophthalmol. 2017; 175:183–193.

12. Nguyen LT, Taravella MJ, Pelak VS. Determining whether delayed nonarteritic ischemic optic neuropathy associated with cataract extraction is a true entity. J Cataract Refract Surg. 2006;32(12): 2105–2109