RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 33 S71-S76 DOI: https://dx.doi.org/10.5935/2238-3182.v33supl.5.08

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Relato de Caso

Perfuração escleral com reação de câmara anterior e tamponamento espontâneo com tratamento conservador: um relato de caso

Scleral perforation with anterior chamber reaction and spontaneous tamponade with conservative treatment: a case report

Isabela Matos Takahashi1; Arthur Amaral Nassaralla2; Isabella Breves Amaral e Silva1; Juliana Lambert Oréfice1,2

1. Faculdade Ciências Médicas de Minas Gerais
2. Centro Oftalmológico de Minas Gerais

Endereço para correspondência

Isabela Matos Takahashi
Email: isabela_takahashi@yahoo.com.br

Resumo

Introdução O acometimento escleral no trauma ocular é uma situação delicada que requer propedêutica cuidadosa, uma vez que a extensão da lesão pode não ser totalmente visível, colocando em risco a integridade ocular e a função visual do indivíduo. A abordagem cirúrgica é a preconizada nestes casos, visando principalmente a manutenção da anatomia e da acuidade visual. Discussão Apresenta-se a seguir o caso de um paciente com história de traumatismo ocular perfurante em olho direito com câmara anterior formada com reação de 4+/4+, que evoluiu com tamponamento espontâneo de óstio traumático. Embora a abordagem preconizada seja a intervenção cirúrgica, neste caso optou-se pela conduta conservadora que, por sua vez, obteve um resultado satisfatório com manutenção da acuidade visual. Conclusão Usualmente, perfurações esclerais exigem intervenções cirúrgicas. No caso exposto, o tamponamento espontâneo da lesão, que é incomum, permitiu uma abordagem conservadora de sucesso, garantindo função visual preservada em todo o seguimento do episódio.

Palavras-chave: Trauma Ocular. Perfuração Escleral. Reação de Câmara Anterior. Tamponamento Espontâneo.

 

INTRODUÇÃO

Os traumatismos oculares constituem uma parcela significativa das admissões em serviços de oftalmologia, representando 13,6% das admissões em pronto atendimento de emergência no Brasil1. Epidemiologicamente, pacientes do sexo masculino e da faixa etária economicamente ativa são os mais acometidos, bem como as lesões unilaterais são mais recorrentes que as bilaterais. Em adição, as principais causas de traumas oculares são aquelas provenientes de atividades de lazer, seguidas pelas atividades ocupacionais2.

A perfuração da esclera, por sua vez, é uma lesão traumática muito associada a acidentes de trabalho, usualmente resultante da ação de objetos pontiagudos em alta velocidade, e, para estes casos, preconiza-se a abordagem cirúrgica3.

Este trabalho tem por propósito relatar um caso atípico de perfuração escleral com reação de câmara anterior em que o tratamento conservador obteve sucesso, não sendo necessária a abordagem cirúrgica.

 

RELATO DE CASO

M.A.S., 33 anos, foi admitido no serviço de urgência oftalmológica com história de traumatismo ocular perfurante em olho direito por fragmento metálico proveniente de lixadeira elétrica.

O paciente relatava dor ocular leve e baixa acuidade visual logo após o trauma com melhora gradual. Relata que não usava equipamentos de proteção individual no momento do trauma e que conseguiu retirar o corpo estranho com a própria mão.

No exame, constatou-se acuidade visual 20/20 em ambos os olhos (AO). À biomicroscopia observou-se em olho direito (OD) hiperemia 1+/4+, câmara anterior formada (CAF) com reação de 4+/4+ com formação aglutinados fibrinoides mais concentrados em região temporal superior, sinal de seidel negativo, observado tamponamento espontâneo de óstio traumático em conjuntiva nasal superior, íris trófica e cristalino transparente. A tonometria de aplanação aferia 14mmHg em OD e 14mmHg em olho esquerdo (OE). À fundoscopia do OD: disco fisiológico, persistência de fibras mielínicas peridiscal, polo posterior sem alterações, retina aplicada, meios transparentes. Ecografia sem alterações. Exame biomicroscópico e fundoscópico em OE encontravam-se dentro da normalidade.

Optou-se por tratamento conservador sendo prescrita antibioticoterapia com Ciprofloxacino tópico e oral e corticoide tópico e oral, além de midriático para evitar a formação de sinéquias.

Após 24h, o paciente foi reavaliado e ao exame observou-se células e flare +/+, permanência da uveíte anterior e melhora dos depósitos de fibrina. Com 72hrs, à biomicroscopia não apresentava reação inflamatória na câmara anterior. Durante todo o tratamento, o paciente permaneceu com acuidade visual de 20/20.

 

DISCUSSÃO

A estrutura ocular é composta por três túnicas: túnica fibrosa, túnica vascular e túnica nervosa. A esclera e a córnea formam, em conjunto, a camada externa – ou fibrosa - cuja principal função é fornecer proteção às estruturas internas, tendo em vista a fragilidade destas.

O acometimento escleral no trauma ocular é uma situação especialmente delicada, tendo em vista que, por vezes, a extensão da lesão pode não ser totalmente visível, sendo, por isso, indispensável a observação cuidadosa do ferimento 4,5.

Dentre os tipos de lesões com globo ocular aberto que podem acometer a túnica externa, destacam-se as perfurantes e penetrantes. Por definição, a perfuração escleral envolve o acometimento de toda a espessura desta camada, enquanto a penetração acomete a estrutura apenas parcialmente 5,6. A primeira caracteriza-se ainda pela presença de um orifício de entrada e um de saída, sendo comumente causada por projéteis 7.

As perfurações são causadas na maioria das vezes por objetos pontiagudos como tesouras, anzóis, pregos ou pedaços de madeira. A apresentação clínica é muito variável e depende de alguns fatores, como tamanho e quantidade de corpo estranho, bem como da sua velocidade no momento do trauma. Apesar disso, a manifestação mais comum é, indiscutivelmente, a redução aguda e significativa da acuidade visual. Podem estar também presentes congestão conjuntival, hemorragia subconjuntival e perda da integridade da cápsula anterior do cristalino 4.

O diagnóstico é clínico e o teste de Seidel se faz indispensável para avaliar a presença ou não de vazamento de humor aquoso. A presença de um olho hipotônico ou com Seidel positivo acusa positivamente uma câmara anterior perfurada, quadro este associado a maior risco de infecções com grande potencial de comprometimento da acuidade visual4.

A abordagem do paciente vítima de perfuração escleral tem por objetivo primário a manutenção da integridade ocular, sua topografia e, consequentemente, a proteção das estruturas nobres que se alojam nas camadas mais internas do globo. O tratamento cirúrgico é, portanto, a abordagem preconizada3. Em adição, ferimentos com bordas próximas, sem evidência de acometimento intraocular e sem sinais de infecção ou necrose podem necessitar de adesivos teciduais, que atuam unindo o tecido em descontinuidade, além de fazerem uma importante barreira de contato entre o meio externo e o intraocular6.

É importante frisar ainda que, durante a avaliação inicial do paciente, caso este apresente outros ferimentos faciais - como fraturas de mandíbula, afundamento malar, nariz, ferimentos cortantes - a cirurgia oftalmológica é prioritária 3.

Ainda, sabe-se que lesões esclerais, especialmente as perfurações, exigem intervenção cirúrgica não só para manutenção da anatomia e da acuidade visual, mas também para reforçar a estrutura escleral e evitar a ocorrência de outros eventos indesejáveis e complicações, como prolapsos e infecções secundárias 7.

Embora a conduta cirúrgica seja a preconizada no manejo da perfuração escleral, no caso exposto optou-se pela conduta conservadora. A nossa decisão deveu-se a ocorrência do tamponamento espontâneo e incomum da lesão, acompanhado de função visual preservada durante todo acompanhamento.

 

REFERÊNCIAS

1. Jayme BC, Silva LVB, Rezende LCM, Silva MFA, Moreira TC, Oliveira TMA, et al . Principais ocorrências na emergência oftalmológica com enfoque em traumas oculares: uma revisão integrativa. Research, Society and Development. 2023; 12 (1):1-6.

2. Aragaki GN, et al.. Estudo epidemiológico dos traumas oculares graves em um Hospital Universitário de São José do Rio Preto - SP. Arquivos Brasileiros de Oftalmologia. 2003; 66(4):473–476.

3. Souza-Dias C. Manual da residência de oftalmologia. Barueri: Manole, 2018.

4. Gurnani B, Kaur K. Scleral And Limbic Lacerations. StatPearls. Treasure Island (FL): StatPearls Publishing. 2022.

5. Scleral Perforation and Penetration. In: Strabismus Surgery and its Complications. Springer, Berlin, Heidelberg.

6. Macsai MS, Fontes BM. Trauma Suturing Techniques. In: Ophthalmic Microsurgical Suturing Techniques. Springer, Berlin, Heidelberg, 2007.

7. Bowling B. Kanski Oftalmologia Clínica: Uma Abordagem Sistêmica. Rio de Janeiro: GEN Guanabara Koogan, 2016