RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 33 S77-S79 DOI: https://dx.doi.org/10.5935/2238-3182.v33supl.5.10

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Relato de Caso

Síndrome ocular isquêmica: um relato de caso

Ana Luisa Souto Gandra1; Aniel Feitosa da Cruz2; Marcelo Gonçalves de Oliveira2; Juliana Lambert Orefice3

1. Médica e Residente em Oftalmologia no Instituto dos Olhos Ciências Médicas - IOCM-MG
2. Acadêmicos de Medicina da UFMG e FCMMG
3. Professora da Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais, Diretora do Centro Brasileiro de Ciências Visuais

Endereço para correspondência

Juliana Lambert Orefice
E-mail: juorefice@gmail.com

Resumo

INTRODUÇÃO: A síndrome ocular isquêmica (SOI) se manifesta devido a um quadro de hipoperfusão ocular principalmente devido à estenose ou oclusão das artérias carótidas interna e/ou comum que culmina em redução da pressão de perfusão da artéria central da retina. Apresenta maior incidência na população idosa, principalmente acima dos 65 anos e do sexo masculino, devido à íntima correlação entre a SOI e doenças e risco cardiovascular nessa população.
OBJETIVO: Relatar um caso de síndrome ocular isquêmica bilateral em uma mulher de 63 anos.
RELATO DE CASO: Paciente do sexo feminino, de 63 anos, hipertensa, apresentou dois episódios de AVE isquêmicos. Compareceu ao serviço em março de 2022 queixando-se de baixa acuidade visual (BAV) em ambos olhos (AO), de início em janeiro, pior em olho esquerdo. Foi realizado duplex scan de carótidas que evidenciou oclusão total em território carotídeo esquerdo, sem fluxo sanguíneo e estenose hemodinamicamente significativa em bifurcação/ artéria carótida interna à direita. À fundoscopia, foram visíveis algumas hemorragias retinianas em olho direito e dilatação venosa. À gonioscopia, presença de sinéquias 360. Nesse dia, a pressão intraocular (PIO) era 6 e 9 mmHg. Após avaliação, a equipe médica decidiu iniciar anti-VEGF e panfotocoagulação e orientar a paciente a manter o seguimento com a neurologia e iniciamos anti-VEGF e panfotocoagulação.
DISCUSSÃO: A síndrome ocular isquêmica é uma doença rara, mais comum em homens acima de 65 anos, comumente unilateral, com baixa prevalência bilateral (22%), uma vez que sua etiologia está intimamente relacionada com a obstrução da carótida ipsilateral, principalmente por processo aterosclerótico. O aparecimento dos primeiros sinais e sintomas se correlaciona com a arquitetura vascular óptica com pouca circulação colateral, sendo que alguns sinais podem ser identificados em oclusões acima de 50% da carótida. Dada sua associação com o acometimento sistêmico dos vasos, a mortalidade em 5 anos é de cerca de 40%.
CONCLUSÃO: A síndrome ocular isquêmica é um quadro raro, com potencial ameaçador à visão associado às etiologias que cursam com oclusão do complexo arterial carotídeo. Avaliação e pesquisa de doenças vasculares associadas, além do tratamento adequado se presentes devem ser realizados. Considerando que os sinais de oclusão carotídea importante podem se manifestar inicialmente nos olhos, o oftalmologista tem papel importante na identificação precoce e prevenção de complicações da SOI.

Palavras-chave: Arteriopatias Oclusivas. Neuropatia Óptica Isquêmica. Estenose Carotídea.

 

INTRODUÇÃO

A síndrome ocular isquêmica (SOI) se manifesta devido a um quadro de hipoperfusão ocular principalmente devido à estenose ou oclusão das artérias carótidas interna e/ou comum que culmina em redução da pressão de perfusão da artéria central da retina. Além disso, pacientes com uma circulação colateral bem desenvolvida provavelmente não irão cursar com a oclusão total da artéria carótida interna1,2. Outras causas de SOI são: dissecção de aneurisma da artéria carótida, arterite de células gigantes, displasia fibrovascular, arterite de Takayasu, síndrome do arco aórtico, doença de Behçet, trauma ou inflamação1,3.

A SOI ocorre em sua maior totalidade nos idosos, com idade média de 65 anos, sendo rara antes dos 50 anos. A proporção de homens afetados para cada mulher é de 2:1, podendo estar diretamente relacionado com a alta incidência de doenças cardiovasculares nesse grupo. Em 20% dos casos ocorre bilateralmente. Apesar de ser condição rara, apresenta consequências devastadoras e que geralmente cursam com perda irreversível da visão2,4.

Alterações de campo visual são sintomatologias que podem estar presentes, como na forma de escotoma central, defeitos centrocecal, defeitos nasais, ou presença apenas de ilhas central ou temporal1. A presença de dor no olho acometido está presente em cerca de 40% dos casos. Ocorre também sinais tanto em segmento anterior quanto posterior do olho, sendo que no primeiro caso, há sinais de neovascularização da iris, glaucoma neovascular secundário, iridocilite, catarata assimétrica, atrofia de íris e hiporreativa à luz3. Em relação aos sinais de porção posterior temos: artérias retinianas estreitadas, telangiectasias perifoveais, veias retinianas dilatadas, hemorragia retiniana medial/periférica, microaneurismas, neovascularização do disco óptico e da retina, sinais do ponto vermelho-cereja e ponto em lã-algodão, hemorragia em humor vítreo e glaucoma de pressão normal3,4.

 

RELATO DE CASO

Paciente do sexo feminino, de 63 anos, hipertensa, apresentou dois episódios de AVE isquêmicos secundário a obstrução de carótidas em 2021, sendo realizada angioplastia em outubro do mesmo ano. Compareceu ao serviço em março de 2022, queixando-se de BAV em AO, de início em janeiro, pior em olho esquerdo. Foi realizado duplex scan de carótidas que evidenciou oclusão total em território carotídeo esquerdo, sem fluxo sanguíneo e estenose hemodinamicamente significativa em bifurcação/ artéria carótida interna à direita. Presença de inversão de fluxo em artéria vertebral. Ao exame, AV era de 20/25 e NPL, com rubeosis iridis, corectopia e sinéquias posteriores. À fundoscopia, foram visíveis algumas hemorragias retinianas em olho direito e dilatação venosa. À gonioscopia, presença de sinéquias 360. Nesse dia, a PIO era 6 e 9 mmHg. Após avaliação, a equipe médica decidiu iniciar anti-VEGF e panfotocoagulação e orientar a paciente a manter o seguimento com a neurologia, que relatou que paciente estava em cuidados paliativos, sem indicação de reabordagem vascular. Logo em seguida da abordagem inicial, a paciente evoluiu com catarata branca em ambos os olhos e foi submetida a facoemulsificação. Porém, não houve melhora visual.

 

DISCUSSÃO

A síndrome ocular isquêmica (SOI) decorre de um estado de hipoperfusão ocular crônica5. Foi descrita inicialmente em 1963 por Hedges, em um paciente com completa obstrução da artéria carótida e presença de hemorragias e dilatações das veias da retina1,6.

Considerada uma doença rara, mais comum em homens acima de 65 anos, mais prevalente unilateralmente, com bilateralidade podendo ocorrer em 22% dos casos1. A principal causa dessa condição é o estreitamento da artéria carótida ipsilateral principalmente por aterosclerose, normalmente é encontrado um estreitamento de mais de 90% do vaso1,3. Pode estar associada à diabetes, à hipertensão e à doença cardiovascular e cerebrovascular, sendo esse último intrinsecamente relacionado ao caso clínico exposto, uma vez que a paciente apresentou dois episódios de AVE isquêmico 7. O aparecimento da isquemia ocular normalmente ocorre em paciente com pouca circulação colateral, sobretudo na ausência de ramos da artéria ciliar posterior, sendo que os primeiros sinais da doença podem ser vistos com oclusões acima de 50% da carótida1,8. A mortalidade em 5 anos é de cerca de 40%, principalmente por doenças cardíacas7,8.

Embora a aterosclerose seja a causa mais comum, outras possíveis etiologias incluem artrite de células gigantes, displasia fibrovascular, arterite de Takayasu, doença de Behçet, trauma ou complicações após abordagens cirúrgicas1.

A sintomatologia mais comum inclui baixa acuidade visual e dor ocular e periocular7,8. A perda visual normalmente é gradual embora possa ser súbita ou até se manifestar como amaurose fugaz7.

Os sinais encontrados de isquemia no segmento anterior são congestão e quemose conjuntivais, edema corneano, discreta reação celular e flare de câmara anterior, presença de atrofia e neovascularização iriana (rubeoses iridis), média midríase fixa e catarata em casos avançados4,5,7. À fundoscopia, podem ser encontrados afilamento das artérias e dilatação das veias, que não se encontram tortuosas. Cerca de 80% dos pacientes apresentam hemorragias retinianas, principalmente em ponto-borrão, mais comuns em média periferia. Outras alterações incluem edema de disco microaneurismas, pulso arterial espontâneo, telangectasias maculares, edema macular, comunicações arteriovenosas, mácula em cereja, manchas algodonosos e neuropatia óptica isquêmica anterior e posterior1,5,7. Embora o desenvolvimento de glaucoma neovascular seja comum, é esperado que a pressão intraocular não esteja elevada, devido ao estado de má perfusão ocular com isquemia do corpo ciliar4,5,7. Um fato peculiar sobre esses pacientes é o possível aumento da pressão intraocular após o restabelecimento do fluxo sanguíneo, reiterando a necessidade do acompanhamento oftalmológico contínuo5.

O prognóstico visual desses pacientes é reservado, com cerca de 58% dos casos evoluindo com acuidade visual menor que conta-dedos em um ano8. Cerca de 25% dos pacientes evoluem para percepção luminosa em um ano7.

Atualmente, o tratamento para SOI inclui o tratamento das suas complicações. A panfotocoagulação pode reduzir a demanda de oxigênio e reduzir a formação de neovasos. A injeção intravítrea de anti-VEGF pode controlar a neovascularização e o edema macular. Em casos de elevação da pressão intraocular, as opções terapêuticas incluem fármacos que reduzem a produção de humor aquoso ou até mesmo a realização de trabeculectomia. Nos casos de inflamação do segmento anterior, as opções para tratamento sintomático incluem corticoides tópicos e midriáticos.

Considerando a gravidade clínica, é indispensável o acompanhamento multidisciplinar. Visando o tratamento da obstrução arterial, o fluxo pode ser restabelecido com a realização de endarterectomia ou a colocação de stents5,7.

 

CONCLUSÃO

A síndrome ocular isquêmica é um quadro raro, com potencial ameaçador à visão e à vida. Está associada à oclusão do complexo arterial carotídeo, principalmente de artéria carótida interna e comum, apresenta alto risco de mortalidade, aproximadamente 40% em 5 anos. A avaliação oftalmológica não foi capaz de realizar o diagnóstico precoce de oclusão arterial devido ao fato da paciente apresentar um quadro clínico de evolução crônica com desfechos desfavoráveis (dois episódios de AVE isquêmico) o que instigou uma investigação precoce e ampla do caso para o diagnóstico da etiologia dos eventos cerebrovasculares.

 

REFERÊNCIAS

1. Terelak-Borys B, Skonieczna K, Grabska-Liberek I. Ocular Ischemic syndrome - a systematic review. Med Sci Monit. 2012;18(8):RA138–144.

2. Lee D, Tomita Y, yang L, Negishi K, Kurihara T. Ocular Ischemic Syndrome and Its Related Experimental Models. Int J Mol Sci. 2022;23(9):5249.

3. Benjankar M, Sitaula S, Karki P. Ocular ischemic syndrome; A case report. Nepal J Ophthalmol. 2019;11(21):86-90.

4. Vazirani JA, Zadeng Z, Dogra MR, Gupta A. Ocular ischemic syndrome: A classical presentation of an uncommon condition. Indian J Ophthalmol. 2014; 62(5):658-60.

5. Mendrinos E, Machinis TG, Pournaras CJ. Ocular Ischemic Syndrome. Surv Ophthalmol. 2010; 55(1):2-34.

6. Hedges Jr TR. Ophthalmoscopic findings in internal carotid artery occlusion. Am J Ophthalmol. 1963 May;55:1007-12.

7. Kanski JJ. Oftalmologia Clínica. 9ª ed. São Paulo: Guanabara Koogan; 2022. 912 p.

8. Lee D, Tomita Y, Yang L, Negishi K, Kurihara T. Ocular Ischemic Syndrome and Its Related Experimental Models. Int J Mol Sci. 2022;23(9):5249.