RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 33 e-33116 DOI: https://dx.doi.org/10.5935/2238-3182.2023e33116

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Artigo Original

Influência das condições de saúde nos desfechos virológicos em uma população vivendo com HIV: um estudo observacional retrospectivo

Health conditions influence in virologic outcomes in a population living with HIV: a retrospective observational study

Pollyanna Roberta Campelo Görgens; Danilo Bretas de Oliveira

Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde, Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri, Diamantina, Minas Gerais, Brasil

Endereço para correspondência

Pollyanna Roberta Campelo Görgens
Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde – Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri, Diamantina, Minas Gerais, Brasil
E-mail: pollyanna.gorgens@ufvjm.edu.br

Recebido em: 07 Novembro 2023.
Aprovado em: 25 Novembro 2023.
Data de Publicação: 07 Março 2024.

Editor Associado Responsável: Dr. Alexandre Moura
Santa Casa de Misericórdia de Belo Horizonte, Belo Horizonte/MG, Brasil.
Fontes apoiadoras: Não houve fontes apoiadoras.
Conflito de Interesse: Não há.
Comitê de Ética: Número do Parecer - 4.267.116 (CAAE 36223420.8.0000.5108).

Resumo

OBJETIVO: Correlacionar as condições de saúde, o vínculo com a atenção primária à saúde e o Índice de Desenvolvimento Humano municipal com os desfechos virológicos do tratamento do HIV, em uma população acima de 13 anos, na região do Vale do Jequitinhonha, norte de Minas Gerais.
MÉTODOS: Estudo retrospectivo de 239 prontuários, de 1995 a 2020, em um serviço de referência regional. O risco para um resultado desfavorável do HIV PCR sérico foi inicialmente estimado pelo teste qui-quadrado, regressão logística simples e correlações de Pearson e Spearman, considerando nível de significância de 95%. Posteriormente, a análise multivariada foi realizada para construir uma árvore de decisão para um perfil de risco de falha terapêutica. Resultados: 92 usuários apresentavam vínculo fraco com a atenção primária à saúde e 12 estavam em falha terapêutica. As condições que reduziram as chances de resposta favorável ao tratamento foram hipertensão arterial sistêmica (OR=013; IC95%=0,13-0,47), condições psicossociais (OR=0,06; IC95%=0,00-0,32), leishmaniose visceral (OR=0,07; IC95%=0,01-0,58) e nível de linfócitos T CD4 abaixo de 350 células/mm3 (OR=0,10; IC95%=0,02-0,39). A correlação positiva (p<0,05) foi observada entre Índice de Desenvolvimento Humano e falhas no tratamento (COR=0,5; IC95%=0,1-0,7).
CONCLUSÃO: Hipertensão arterial sistêmica e nível de linfócitos T CD4 abaixo de 350 células/mm3 foram as condições mais relevantes no modelo de árvore de decisão para um perfil de risco de falha terapêutica.

Palavras-chave: HIV; AIDS; Doença crônica; Coinfecção; Atenção primária à saúde.

 

INTRODUÇÃO

O cuidado contínuo em HIV pode ser entendido como o processo de atenção às pessoas que vivem com HIV, passando pelos momentos de diagnóstico oportuno, vinculação a um serviço de saúde, retenção no serviço, início do tratamento antirretroviral mantendo boa adesão e a supressão da carga viral com qualidade de vida semelhante à de uma pessoa que não possui o vírus. A rede de atenção à saúde para pessoas com HIV foi criada para superar a fragmentação dos sistemas de saúde, que se manifesta diversas vezes na ausência de coordenação entre os níveis de atenção, multiplicação de serviços, infraestrutura em locais não apropriados, inexistência ou dificuldade de acesso aos serviços, descontinuidade das ações e incoerência entre os serviços ofertados e as necessidades de saúde da população1.

Nos últimos anos, a epidemia do HIV tem apresentado redução da morbimortalidade, porém as doenças crônicas têm sido mais prevalentes nesse grupo de pessoas. Doenças cardiovasculares, Hipertensão Arterial Sistêmica (HAS) e diabetes se tornaram mais prevalentes nesse grupo. Esse novo cenário também confere à infecção pelo HIV o status de doença crônica. Assim, os serviços especializados em HIV precisam desenvolver um cuidado multiprofissional e contínuo, envolvendo outros serviços como a Atenção Primária à Saúde (APS), como forma de garantir a qualidade da assistência1. Parte significativa dos serviços especializados está operando em capacidade máxima, atendendo à demanda sem fluxos organizados e atuando de forma isolada, de forma não colaborativa com a rede de atenção em saúde1.

Estima-se que menos metade das pessoas vivendo com HIV (50,6%) possuem outras comorbidades, sendo a HAS a mais prevalente (13%), seguida da depressão (12,5%), hipercolesterolemia (10,83%) e diabetes e pré-diabetes (10,6%)2.

As pessoas com maior risco de ser infectadas pelo vírus também possuem um maior risco de contraírem outros patógenos, como os vírus da hepatite B e C, pois são patógenos transmitidos por vias semelhantes, como uso de drogas injetáveis, contato sexual e durante a gravidez ou parto. A coinfecção HIV-HBV, HIV-HCV e HIV-HBV-HCV já foi estimada em 2,95%, 18,14% e 2,53% respectivamente3. A coinfecção entre o HIV e as hepatites virais pode resultar em uma doença hepática mais grave e com maior morbimortalidade. Ambos os cenários, envolvendo o HIV associado a doenças crônicas transmissíveis e não transmissíveis, podem interferir na atenção à saúde do HIV e podem influenciar na adesão ao tratamento, na progressão do HIV para AIDS e na transmissão do vírus.

Mesmo uma baixa taxa de falhas no tratamento de primeira linha tem um impacto devastador na saúde a longo prazo. A falha no tratamento também representa uma carga financeira e de recursos humanos para a infraestrutura de saúde4. A relação entre a maior cobertura da APS e baixas taxas de AIDS já foi percebida em outros estudos5. Esta discussão sobre os fatores que impactam nos resultados do tratamento do HIV em países menos desenvolvidos tem sido historicamente negligenciada, embora nesses países ela seja ainda mais crucial, pois leva a pontos-chave de intervenções.

Este estudo tem como objetivo correlacionar as condições de saúde, o vínculo com a APS e o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) municipal com os desfechos virológicos do tratamento do HIV, em uma população acima de 13 anos, na região do Vale do Jequitinhonha, norte de Minas Gerais, Brasil.

 

MÉTODOS

População do estudo

Trata-se de um estudo observacional, retrospectivo, descritivo e exploratório, por meio da análise de prontuários de toda população de pacientes atendidos no ambulatório regional e público de HIV da região do Vale do Jequitinhonha, Minas Gerais, Brasil. Essa clínica é referência para 28 municípios de 3 regiões diferentes. Ela atua em uma área de menor desenvolvimento econômico e humano se comparado a outras partes do estado. Seu Produto Interno Bruto (PIB) representa apenas 2,0% do PIB mineiro e há variação moderada (0,151) no IDH municipal6.

Foram incluídos todos os prontuários de toda a população vivendo com HIV acompanhada no ambulatório e residente na área de abrangência. A coleta de dados foi realizada no período de 01/10/2020 a 31/12/2020. Esse foi o período necessário para a avaliação de todos os prontuários ativos com diagnóstico entre 1995, ano de início das atividades do ambulatório, e o final de 2020. Foram excluídos os prontuários sem informações pesquisadas. Foi construído um instrumento específico para coleta de dados a partir de informações habitualmente coletadas nos atendimentos e das camadas do Modelo de Determinação Social de Saúde7. Assim este instrumento foi organizado em camadas que iniciavam com características individuais, como idade e sexo, passavam por características intermediárias, como comportamentos e condições de vida e de trabalho, e finalizavam com uma camada distal, que incluía condições econômicas. Foi ainda considerado histórico de coinfecções, doenças crônicas, condições psicossociais, resultado do PCR do HIV, nível de linfócitos T CD4, município de procedência e vínculo com a APS. Os pacientes não foram identificados pelo nome para proteger a confidencialidade. O vínculo fraco com a APS foi considerado quando os prontuários registravam a ida ao serviço por motivos não relacionados diretamente ao atendimento do HIV, seguindo a Classificação Internacional de Atenção Primária8. É importante ressaltar que esse instrumento de coleta de dados foi construído para este estudo e não foi validado, o que pode ser considerado uma limitação. O estudo foi guiado pela declaração STROBE (Strengthening the Reporting of Observational Studies in Epidemiology)9 e declaração GATHER (Diretrizes para relatórios de estimativas de saúde precisas e transparentes)10.

Todos os cálculos foram feitos usando o software "R"11 versão 4.0.3. O QGIS12 versão 3.16 foi usado para informações espaciais. Obteve-se a aprovação do Conselho de Ética Institucional da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha, Diamantina; Comitê de Ética Local da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha; Secretaria Municipal de Saúde de Diamantina; e o Comitê Nacional de Ética (Parecer número 4.267.116, CAAE 36223420.8.0000.5108). O estudo foi realizado de acordo com os padrões éticos estabelecidos na Declaração de Helsinki de 1964 e suas emendas posteriores ou padrões éticos comparáveis.

Condições prevalentes de saúde e controle de infecção por HIV

As condições de saúde mais prevalentes e o vínculo com a APS na população estudada foram estimados, sendo o intervalo de confiança de 95% calculado. Para verificar a associação entre os fatores e os desfechos do tratamento foi utilizado o teste qui-quadrado, considerando nível de significância de 95% (α=0,05). Análises de regressão logística simples foram realizadas para prever o risco (OR) de falha do tratamento. Os pacientes foram considerados em falha terapêutica quando diagnosticados há mais de 6 meses e os resultados da PCR do HIV estavam entre 200 e 500 cópias/ml nos 2 últimos exames ou acima de 500 cópias/ml no último exame realizado, seguindo o protocolo nacional de atenção integral ao HIV1.

Coinfecções mais prevalentes e IDH

O IDH do município foi obtido a partir do banco de dados demográfico nacional7. A correlação espacial (COR) foi usada para correlacionar o número de falhas de tratamento e o IDH do município de procedência dos pacientes. As coinfecções mais prevalentes também foram correlacionadas com o IDH do município de procedência. O teste de Shapiro Wilk foi realizado para verificar a distribuição normal dos dados. As correlações de Pearson e Spearman foram utilizadas para dados paramétricos e não paramétricos respectivamente. Para autocorrelação espacial dessas variáveis, foi realizado o Índice de Moran (IM).

Após a análise dos dados pela análise estatística bivariada, descrita acima, optou-se pela exploração estatística pela análise multivariada, utilizando a árvore de decisão e considerando como desfecho as chances de falha do tratamento. Essa análise foi realizada devido ao volume de informações coletadas e com a proposta de selecionar DSS que possam explicar os desfechos de forma mais objetiva e seguindo a proposta realizada em outros estudos semelhantes13.

 

RESULTADOS

Durante o estudo, foram identificados 244 prontuários nos arquivos do serviço. Destes, 5 prontuários foram excluídos por não conterem informações pesquisadas. Após os critérios de inclusão e exclusão, 239 prontuários foram considerados neste estudo. Em relação às características sociodemográficas, a maior parte dos pacientes (70,29%) eram de cor parda, do gênero masculino (62,34%), solteiros (48,95%) e heterossexuais (71,55%). Cerca de metade da população possuía emprego com renda (50,9%) e apenas a alfabetização como escolaridade (50,21%). A média de idade dos pacientes foi de 44,13 anos (Tabela 1).

 

 

O impacto das condições de saúde e o vínculo da Atenção Primária à Saúde no controle clínico do HIV

A toxoplasmose (RP,31,4), a hepatite A (PR,18,0), o citomegalovírus (PR,18,4) e a sífilis (PR,14,6) foram as coinfecções mais comuns. A tuberculose foi a oitava coinfecção mais comum (RP,4,2). Dos usuários, 146 apresentavam alguma doença crônica não transmissível (RP,61,1). A HAS foi a doença crônica mais prevalente (RP,18,0), seguida da doença renal (RP,14,2) e diabetes mellitus ou pré-diabetes (RP,11,3). A insuficiência renal crônica, observada em 30 pacientes, foi a doença renal mais comum. Apesar disso, geralmente se apresentava em grau leve nessa população de estudo. 88 dos usuários apresentavam alguma necessidade de atendimento psicossocial (RP, 36,8); 12 usuários (RP,5,02) estavam em falha terapêutica. O teste qui-quadrado indicou significância estatística (p<0,05) entre os resultados do tratamento e HAS, leishmaniose visceral, valor de linfócitos T CD4 e condições psicossociais (Tabela 2).

 

 

O vínculo fraco com a APS foi observado em 92 pacientes (RP,38,5). Conforme descrito na seção de metodologia, o vínculo fraco com a APS foi considerado quando os prontuários registravam motivos de visitas à clínica de HIV não relacionados aos cuidados de HIV, mas relacionados a motivos que fazem parte da rotina da APS, seguindo a Classificação Internacional de Atenção Primária8. Este estudo não encontrou significância estatística entre o vínculo da APS e os resultados do tratamento (p>0,05) (Tabela 2). Apesar disso, quando os usuários foram atendidos pelo serviço de HIV, por demandas não diretamente relacionadas ao acompanhamento do HIV, os principais motivos das consultas foram o controle de doenças crônicas (17,6%) ou a assistência psicossocial (10,9%) (Tabela 3).

 

 

A regressão logística simples identificou que as condições de saúde que reduziram significativamente (p<0,05) as chances de um resultado favorável ao HIV PCR, realizado como controle de resposta ao tratamento, foram HAS (OR=0,13; IC95%=0,13-0,47), condições psicossociais (OR=0,06; IC95%=0,00-0,32), leishmaniose visceral (OR=0,07; IC95%=0,01-0,58) e nível de linfócitos T CD4 abaixo de 350 células/mm3 (OR=0,10; IC95%=0,02-0,39) (Tabela 4).

 

 

Correlação espacial das condições mais comuns e IDH

Foi observada correlação positiva (p<0,05) para IDH e falhas no tratamento (COR=0,5; IC95%=0,1-0,7), para IDH e hepatite A (COR=0,4; IC95%=0,1-0,8) e IDH e toxoplasmose (COR=0,4; IC95%=0,1-0,8) (Figura 1).

 


Figura 1. IDH do município e número de coinfectados com toxoplasmose, na região do Ambulatório de HIV, no Vale do Jequitinhonha, de outubro a dezembro de 2020.

 

O índice de Moran não apresentou significância estatística (p>0,05) para coinfecções ou falha terapêutica. Assim, o número de casos dessas coinfecções em um município parece não sofrer influência dos municípios vizinhos (Tabela 5).

 

 

A análise da árvore de decisão considerando o controle virológico do HIV como desfecho mostrou que se um indivíduo não tiver uma contagem de CD4+ abaixo de 350 células/mm3, há 100% de chance de um bom controle virológico. Se um indivíduo tiver uma contagem de CD4+ abaixo de 350 células/mm3 e ainda tem pressão alta, há 50% de chance de estar com sua carga viral detectável. Essa chance é em torno de 10% se esse último indivíduo não tiver HAS (Figura 2).

 


Figura 2. Árvore de decisão para o controle virológico do HIV considerando as condições de saúde, no Vale do Jequitinhonha, de outubro a dezembro de 2020.

 

DISCUSSÃO

Os achados deste estudo sugeriram que as condições de saúde que interferem com os desfechos virológicos do HIV são as doenças relacionadas às questões psicossociais, o baixo nível de linfócitos T CD4, a leishmaniose visceral e a HAS. Essas condições de saúde aumentam as chances de desfecho desfavorável ao tratamento do HIV. O maior IDH municipal foi outro fator que apresentou correlação positiva com desfechos desfavoráveis ao tratamento. Neste estudo, o vínculo com a APS não apresentou correlação com os desfechos virológicos.

As condições psicossociais como fatores que aumentam as chances de insucesso do tratamento reforçam a importância de contar com uma equipe de profissionais completa dentro do ambulatório de HIV, incluindo psicólogos e assistentes sociais. Viver com HIV/AIDS tem impacto em várias dimensões da vida de um indivíduo. Estigmas construídos socialmente e esforços para manter o diagnóstico em segredo podem contribuir para os transtornos mentais. O apoio familiar e a discriminação são fatores que interferem na convivência com a doença14. Este apoio familiar é especialmente importante em indivíduos que lidam com deficiência física ou cognitiva. Nesses casos, a assistência social pode ser decisiva para o sucesso do tratamento. O impacto de viver com HIV na saúde mental e no suporte social do indivíduo pode não ser bem acompanhado na ausência de profissionais de assistência psicossocial na equipe que presta o serviço especializado em HIV.

A existência de doenças crônicas não transmissíveis em mais da metade dos usuários reforça a importância de o acompanhamento não ser exclusivamente centralizado no serviço regional especializado. Durante o estudo, vários prontuários tinham registro de valores elevados de pressão arterial em pacientes previamente hipertensos. Apesar disso, esta pesquisa não avaliou o controle dos níveis pressóricos e a adesão ao tratamento da HAS em pacientes com HIV. Estudos de prevalência de HAS em pacientes com HIV são variáveis. Embora alguns autores tenham encontrado associação entre HAS e maior tempo de adesão aos antirretrovirais, outros estudos apontam os mesmos fatores de risco da população em geral15. Ter a HAS como fator para desfecho desfavorável para o HIV sugere que indivíduos vivendo com ambas as doenças podem ter mais dificuldade na adesão ao tratamento antirretroviral. As doenças psicossociais como fator associado à adesão ao tratamento do HIV, observado neste estudo, também podem estar associadas a estilos de vida não saudáveis envolvidos na gênese da HAS. Alguns autores consideram que os pacientes que não seguem a terapia têm mais dificuldade em ter hábitos de vida saudáveis, como não fumar16.

O principal motivo não relacionado diretamente ao acompanhamento do HIV/AIDS recebido no serviço de saúde estudado foi o controle de outras doenças crônicas. Isso sugere que os usuários estão utilizando apenas este serviço de saúde para acompanhamento médico. Considerando que muitos pacientes não residiam na cidade sede do ambulatório e muitas doenças crônicas precisam ser acompanhadas com mais frequência, é provável que esses usuários não estejam sendo acompanhados integralmente.

A APS pode reduzir as barreiras geográficas por atuar mais perto das residências das pessoas, portanto a expansão da APS associada a políticas públicas pode contribuir para os baixos índices de HIV17. Apesar de este estudo não ter encontrado significância estatística entre o vínculo com a APS e o desfecho do controle do HIV, o comparecimento aos serviços de saúde no nível secundário de atenção para rotinas habituais da APS, como renovação de receita de anti-hipertensivo, principalmente se essa pessoa for transportada de outro município, implica custo desnecessário para o sistema de saúde público.

A evolução do tratamento antirretroviral ao longo dos anos trouxe diferentes níveis de complexidade da atenção à saúde do HIV. No passado, os pacientes eram diagnosticados em estágios avançados de imunodeficiência, com poucas e complexas opções terapêuticas e com altas taxas de morbidade e mortalidade. Mais recentemente, observou-se o manejo de pacientes HIV estáveis utilizando esquemas de tratamento simplificados, que se assemelham a outros pacientes com doenças crônicas. Em uma perspectiva de equidade, diferentes níveis de atenção à saúde requerem diferentes estratégias de intervenção18.

A APS habitualmente atua promovendo a saúde, prevenindo e tratando doenças, considerando a singularidade e a integralidade da pessoa. No entanto, a atenção à saúde do HIV caracteriza-se por ser quase restrita a serviços especializados. Parte significativa desses serviços especializados opera em capacidade máxima, atendendo à demanda sem fluxos organizados e atuando em uma rede de atenção não colaborativa3. As pessoas não estão recebendo os serviços de que precisam para se manterem saudáveis. As ações devem envolver a melhoria do acesso aos serviços de saúde e a redução da discriminação19.

O baixo nível de linfócitos CD4 T como condição de saúde relacionada ao controle desfavorável da PCR do HIV era esperado, assim como a AIDS é esperada como curso natural do HIV. No entanto, a leishmaniose visceral mostrou-se a coinfecção de maior impacto para os indivíduos com controle desfavorável do HIV. A profilaxia secundária é recomendada, no país, para todos os pacientes com baixa resposta imune que já tiveram leishmaniose visceral1.

O melhor IDH municipal como fator correlacionado ao maior número de falhas no tratamento pode indicar que a distribuição desigual de recursos e serviços em diferentes locais, como saúde, bem-estar, serviços públicos, renda familiar e infraestruturas, pode ter menos impacto na prevalência de coinfecções por HIV do que o esperado. Comportamentos individuais, hábitos sexuais e alimentares e condições de trabalho como risco para coinfecções devem ser explorados não apenas nos grupos socioeconômicos mais pobres. A adesão ao tratamento pode ser melhorada em regiões socioeconômicas mais altas. Estudos futuros em serviços de saúde privados podem vir a complementar esses achados.

O IDH dos municípios teve correlação positiva também com o número de casos de toxoplasmose e hepatite A. No entanto, esses números podem ter sido influenciados pela oferta deficiente de sorologia em algumas localidades, portanto esse resultado pode estar subestimado.

Apesar da possibilidade de transmissão sexual da toxoplasmose, ela geralmente está relacionada a hábitos alimentares e condições sanitárias. Áreas rurais podem ter mais indivíduos soropositivos para T. gondii devido à maior atividade de manipulação do solo20. Viver ou trabalhar em áreas rurais é uma situação conhecida na área de estudo. As infecções por toxoplasmose são oportunistas e podem ser reativações em indivíduos imunocomprometidos1. Atenção especial deve ser dada às medidas educativas, mesmo nas áreas de maior IDH.

Os testes rápidos disponíveis são geralmente direcionados para as Hepatites B e C. Já o teste para hepatite A necessita de ambiente laboratorial para sua realização. Homens que fazem sexo com homens correm maior risco de contrair hepatite A por transmissão sexual devido a comportamentos que envolvem contato oral-anal21. Baixa testagem para hepatite A é comum em serviços especializados. A vacina contra hepatite A é recomendada para pessoas vivendo com HIV, com doenças hepáticas associadas e com teste de anticorpo para hepatite A negativo1. A não realização da sorologia pode comprometer a indicação da vacina.

Além das correlações espaciais envolvendo as condições de saúde aqui investigadas e o IDH do município de procedência dos indivíduos, procurou-se correlacionar as mesmas condições de saúde e o Índice Socioeconômico do Contexto Geográfico para Estudos em Saúde (GeoSES) em suas 6 dimensões (educação, pobreza, riqueza, renda, segregação e privação de recursos e serviços), mas não houve resultados significativos. Ainda houve tentativas de correlacioná-lo com o índice de GINI, e também não houve resultados significativos para desigualdades na distribuição de renda nos desfechos HIV.

A dificuldade de oferta de exames sorológicos complementares dificulta o acompanhamento das coinfecções e é uma outra limitação deste estudo. Mais esforços para o diagnóstico oportuno de HIV e coinfecções devem ser feitos. O baixo número de falhas de tratamento pode ter comprometido as análises, apesar disso, mesmo sendo um número baixo, pode haver um impacto devastador na qualidade de vida individual e coletiva em um futuro próximo.

Considerando os resultados do modelo de árvore de decisão para o controle virológico do HIV e considerando as condições de saúde, a contagem de CD4+ associada à presença de HAS pode ser um critério para um protocolo de consultas de acompanhamento mais regular. Considerando o protocolo vigente que sugere consultas semestrais de acompanhamento para este público1, reduzir esse intervalo pode ser razoável se a contagem de CD4+ estiver abaixo de 350 cels/mm3 em indivíduos hipertensos. O envolvimento da APS na supervisão do tratamento do HIV intercalado com a clínica do HIV é essencial. Diante de uma situação de escassez de recursos, comum em serviços públicos, a contagem de CD4+ pode ainda ser considerada um preditor que ajuda a fornecer duas informações em um único exame: o estado virológico e o estado imunológico.

Os indivíduos vivendo com HIV e portadores de HAS e AIDS possuem maior risco para o desfecho desfavorável ao tratamento e devem ser acompanhados de forma mais intensa por uma equipe multiprofissional. Não foi observada correlação entre o vínculo com a APS e o desfecho virológico do tratamento, porém essa equipe multiprofissional deve trabalhar em rede com a APS diante do risco de essas duas condições terem potencial para tornar o cuidado centrado na pessoa um processo mais complexo.

As condições psicossociais e a presença da leishmaniose visceral se mostraram como significantes nos desfechos do tratamento na análise bivariada inicial, porém não se mostraram como as condições com maior impacto nos desfechos virológicos na análise multivariada. A correlação entre municípios com maior IDH e maiores taxas de desfecho virológico desfavorável alertam para a necessidade de acompanhamento dos portadores do HIV independente das condições socioeconômicas.

 

CONTRIBUIÇÃO DOS AUTORES

PRC. Görgens propôs o tema desenvolvido e o desenho do estudo; realizou o levantamento bibliográfico, a pesquisa empírica e a elaboração do primeiro rascunho do artigo; participou da discussão teórica, revisão do texto e elaboração da versão final do artigo. DB. de Oliveira participou da discussão teórica, revisão do texto e elaboração da versão final do artigo. Todos os autores discutiram, leram e aprovaram a versão final do artigo.

 

REFERÊNCIAS

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Agradecimentos: Os autores agradecem ao programa IST/AIDS/Hepatites Virais, Diamantina, Minas Gerais, que permitiu o acesso à unidade de saúde onde foram realizadas as coletas.