ISSN (on-line): 2238-3182
ISSN (Impressa): 0103-880X
CAPES/Qualis: B2
Relato de caso de Monkeypox no Brasil: lesões faciais destrutivas em um paciente HIV positivo com evolução grave e prolongada tratado com sucesso com tecoviritmat
Mpox in a patient with advanced HIV infection: severe destructive facial lesions with prolonged course and compassionate use of tecovirimat
Helena Duani1,*; Marcia de Souza Pimenta2; Marina Fernandes Palmerston Harada2; Bruna Walker Ferreira de Faria3; Lucas dos Santos Athadeu Ferreira1; Ho Yeh Li4
1. Serviço de Infectologia, Departamento de Clínica Médica, Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais, UFMG, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil
2. Hospital da Unimed BH, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil
3. CIVES PBH, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil
4. Organização Mundial de Saúde (OMS)
Helena Duani
Departamento de Clínica Médica, Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Brasil
E-mail: hduani@gmail.com
Recebido em: 23 Dezembro 2023
Aprovado em: 3 Março 2024
Data de Publicação: 27 Setembro 2024.
Editor Associado Responsável: Dr. Alexandre Moura
Santa Casa de Misericórdia de Belo Horizonte. Belo Horizonte/MG, Brasil
Conflito de Interesse: Os autores declaram não ter conflitos de interesse.
Comitê de Ética: Foi aprovado pelo Comitê Institucional de Ética em Pesquisa (CAAE 65155322.3.0000.5149) e redigido de acordo com as diretrizes da CARE.10.
Fonte apoiadora: Não houve fontes apoiadoras.
Resumo
Relatamos o caso de um homem cisgênero de 29 anos, vivendo com HIV e com grave imunossupressão, diagnosticado com Mpox. Ele apresentava extensas e destrutivas lesões difusas, particularmente na face e região inguinal. Mesmo após 40 dias de doença, continuavam a surgir novas lesões ativas por todo o corpo. Exames iniciais indicaram uma contagem de linfócitos T CD4+ de 26 células/mm3 e uma carga viral do HIV de 71.069 (log 4.85) cópias/ml. Após uma melhora inicial, observou-se um ressurgimento de novas lesões e piora clínica, o que suspeitamos ter sido devido ao uso de corticoides ou à síndrome da reconstituição imune. Após 54 dias de doença, o paciente iniciou o tratamento com tecovirimat por duas semanas. No entanto, aos 120 dias de doença, ainda apresentava lesões de pele no rosto, região inguinal e membros inferiores, com DNA de Mpox detectável nessas lesões. Embora tenha havido melhora nas lesões ativas, cicatrizes profundas persistiram, resultando em retrações da pele e desfiguração facial prolongada.
Palavras-chave: Mpox; HIV; Infection.
INTRODUÇÃO
A Mpox, anteriormente "varíola dos macacos", é uma infecção zoonótica rara, potencialmente fatal, que ocorre endemicamente na África ocidental e central1. É causada pelo vírus monkeypox, um ortopoxvírus similar ao vírus da varíola (causador da varíola humana) e ao vírus da vaccínia (componente viral vivo das vacinas contra os ortopoxvírus), e pode ser transmitida para humanos1. No início de 2022, a doença ressurgiu em um ritmo sem precedentes, em vários países do mundo, com preocupações particulares em relação à sua transmissibilidade de pessoa para pessoa e à disseminação comunitária em regiões não endêmicas2.
Durante o surto de 2022, o Brasil registrou mais de 8.000 casos confirmados e cinco mortes por Mpox3. Esse surto apresentou características clínicas específicas que não eram normalmente observadas na forma clássica da doença2.
As manifestações clínicas características da Mpox incluem um eritema vesiculopustular disseminado, progredindo através de estágios distintos antes da descamação, quando as crostas se desprendem4. Essas lesões características frequentemente se apresentam como enantema (lesões orais e na língua) e evoluem sequencialmente através dos estágios macular, papular, vesicular e pustular, finalmente criando crostas dentro de 2-3 semanas após o início dos sintomas1-5. Notavelmente, o enantema precede o envolvimento cutâneo. A descamação marca o fim da infectividade, revelando a pele nova por baixo, embora as cicatrizes, a hiperpigmentação e a hipopigmentação possam persistir nas áreas afetadas. As lesões permanecem dolorosas até a descamação, quando a formação de crostas induz uma mudança para um prurido intenso6.
A predominante transmissão de Mpox entre homens que têm relações sexuais com outros homens (HSH), muitos dos quais possuem concomitantemente outras Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs), evidencia a necessidade de intensificar a conscientização e o rastreamento nas clínicas especializadas em ISTs. Frequentemente, indivíduos com essas infecções procuram primeiramente por cuidados médicos nessas instituições. Essa dinâmica de transmissão, frequentemente exacerbada pelo fenômeno do turismo sexual, ocorre paralelamente à pandemia contínua de HIV, gerando preocupações acerca das possíveis interações patogênicas entre as infecções por Mpox e pelo HIV7. Notavelmente, aproximadamente 40% dos casos de Mpox nos EUA estão associados à coinfecção pelo HIV. Contudo, o impacto exato do HIV na susceptibilidade à infecção por Mpox permanece indeterminado8. Alguns estudos indicam que indivíduos com HIV, especialmente aqueles em estado de imunossupressão mais avançada, estão sujeitos a manifestações mais graves e prolongadas de Mpox9.
Essa constatação realça a importância de abordagens de saúde pública direcionadas para o monitoramento, prevenção e tratamento adaptado a esse grupo de risco, bem como a necessidade de estudos adicionais para elucidar as interações clínicas entre HIV e Mpox. Considerando que a Mpox pode ser mais grave em pacientes com HIV e imunossuprimidos, descrevemos o caso clínico de um paciente HSH, que apresenta imunossupressão devido à infecção pelo HIV. Esse paciente desenvolveu lesões destrutivas difusas causadas pela Mpox, que persistiram por mais de 90 dias, indicando uma evolução grave da doença. Relatamos também nossa experiência no uso de tecovirimat como terapêutica.
Considerações éticas
O paciente forneceu o consentimento verbal e por escrito para este relato de caso, incluindo a utilização de dados laboratoriais e de suas imagens. Este relato de caso foi aprovado pelo Comitê Institucional de Ética em Pesquisa (CAAE 65155322.3.0000.5149) e redigido em conformidade com as diretrizes CARE10.
RELATO DE CASO
Neste relato apresentamos um paciente homem cis, 29 anos, HSH e que vive com HIV. Em 4 de julho de 2022, apareceram pústulas na região inguinal, nádegas e face, acompanhadas de sintomas de febre, prostração, adinamia e hiporexia. Ele havia frequentado um evento com aglomeração significativa de indivíduos em São Paulo/SP, Brasil, em 19 de junho de 2022.
O diagnóstico de HIV foi estabelecido em 2021 durante uma internação por pneumocistose, quando foi iniciada terapia antirretroviral (ARV) com Tenofovir Disoproxil Fumarato (TDF), Lamivudina (3TC) e Dolutegravir (DTG). Os últimos exames de acompanhamento da infecção pelo HIV, realizados em março de 2022, revelaram carga viral não detectável e uma contagem de linfócitos T CD4+ (CD4) de 278 células/ml (12,8%) (Tabela 1).
Ao exame físico foram evidenciadas múltiplas lesões papulovesiculares com umbilicação central no rosto, pescoço, tronco, membros superiores e inferiores, assim como nas regiões inguinal e perineal. Houve pronta suspeição de Mpox pelo médico infectologista assistente, e a primeira coleta de amostra (secreção da ferida e suabe da lesão) para reação em cadeia da polimerase (PCR) foi realizada em 15 de julho de 2022, com resultado positivo (Tabela 2). Foi recomendado isolamento domiciliar com monitoramento clínico remoto, e o tratamento prescrito incluiu paracetamol, ceftriaxona intramuscular 500 mg e azitromicina em dose única de 1 g.
Nos dias sucessivos, houve melhora da febre e as lesões evoluíram para crostas (Figura 1). Entretanto, em 20 de julho de 2022, o paciente apresentou piora importante das lesões faciais e sinais de infecção bacteriana sobreposta, marcadas por edema, vermelhidão, calor e dor local. Foi iniciado amoxicilina/clavulanato 500/125 mg por via oral, a cada 8 horas, com uso durante 7 dias. Em 27 de julho de 2022 (Figura 2), o edema facial intensificou-se ainda mais e foi prescrito três dias de prednisona oral (40 mg/dia).
Exames para monitoramento do HIV realizados em 29 de julho de 2022 revelaram resultados preocupantes. A carga viral elevou-se para 71.069 cópias/ml (log4,85), a contagem de CD4 caiu para um valor criticamente baixo, 26 células/ml (1,9%). O VDRL foi reativo (1:256) com FTA-ABS IgG positivo indicando infecção sifilítica (Tabela 1). O FTA-ABS IgM e Anti-HCV permaneceram negativos. Apesar da intervenção com antibiótico e corticoide oral, o quadro do paciente descompensou significativamente, necessitando de internação em 1º de agosto de 2022. Os sintomas que motivaram a internação incluíram: dor refratária que não respondia aos analgésicos padrão; lesão crostosa exacerbada facial direita; edema pronunciado afetando todo o lado direito da face, região periorbital, dificultando a abertura ocular (Figura 3); e dificuldade de deglutição devido ao edema facial e de língua.
Após essa piora, novas lesões vesiculares emergiram, semelhantes àquelas observadas no início do quadro clínico (Figura 3 e Figura 4, dia 37). Isso sugeriu doença ativa viral do Mpox em curso. A combinação de piperacilina-tazobactam com vancomicina intravenosa (IV) e analgesia com morfina IV foi iniciada. Foi também tratado com penicilina Benzatina 2.400.000 UI IM foi administrada em 5 de agosto de 2022, considerando o VDRL altamente positivo.
Durante a hospitalização do paciente, houve uma nova piora clínica e das lesões sendo observado um aumento no número dessas, juntamente com a deterioração da morfologia das lesões e apresentação simultânea em vários estágios de evolução, incluindo pápulas, vesículas, crostas e pústulas. Em 12 de julho de 2022, o paciente experimentou uma exacerbação dos sintomas respiratórios acompanhada pelo surgimento de novas úlceras orais, especificamente na língua, e um aumento progressivo do edema facial (Figura 5, dia 48). Essa deterioração clínica necessitou da administração de oxigênio suplementar via cânula nasal, juntamente com o início de um breve curso de terapia com hidrocortisona, com duração de um dia. Além disso, o regime antimicrobiano foi reforçado com polimixina B. Dada a elevação observada nos níveis séricos de creatinina (Tabela 3), a escolha inicial de vancomicina foi substituída por teicoplanina. Uma tomografia computadorizada cervical foi realizada, revelando ausência de lesões infiltrativas ou abscessos. Além disso, foram realizadas interconsultas com equipes de cirurgia geral e plástica. Essas equipes desaconselharam qualquer intervenção cirúrgica, citando o alto risco de disseminação local e potencial agravamento do estado clínico do paciente.
Os testes subsequentes de PCR para Mpox continuaram a mostrar resultados positivos, com o PCR sérico indicando um Limite de Ciclo (Cycle Threshold - CT) de 25 e o esfregaço da lesão apresentando um CT de 15. Considerando a significativa deterioração clínica do paciente (Figura 6, dia 60) e a falta de resposta aos tratamentos iniciais, em 27 de agosto de 2022, dia 54, iniciou-se a administração de tecovirimat 600 mg por via oral a cada 12 horas. Esse tratamento foi administrado após receber autorização para uso compassivo, concedida tanto pelo Ministério da Saúde do Brasil quanto pela Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS). Após essa intervenção, o paciente demonstrou estabilidade clínica e laboratorial nos dias subsequentes. Consequentemente, o regime antibiótico foi descontinuado em 4 de setembro de 2022.
A terapia com tecovirimat foi continuada por um período de 14 dias. O paciente não apresentou sinais de intolerância oral ou reações alérgicas ao medicamento. No entanto, houve um aumento transitório nos níveis de creatinina sérica, que escalaram de 1,07 mg/dl em 26 de agosto de 2022 para 1,27 mg/dl em 31 de agosto de 2022, cinco dias após o início da terapia. Após isso, observou-se uma diminuição gradual nos níveis de creatinina, com retorno aos valores basais registrados em 6 de setembro de 2022 (Tabela 2). Essa alteração transitória da função renal pode ser atribuída à administração prolongada de vancomicina, teicoplanina, piperacilina-tazobactam e polimixina B. No entanto, uma possível associação com o tecovirimat não pode ser excluída. O resumo dos medicamentos antimicrobianos administrados ao paciente é apresentado em ordem cronológica para clareza:
- 5 de julho de 2022, administrados ceftriaxona 500 mg IM e azitromicina 1g.
- De 20 de julho de 2022 a 27 de agosto de 2022, prescrito amoxicilina-clavulanato.
- De 1 de agosto de 2022 a 3 de agosto de 2022, adicional de amoxicilina-clavulanato.
- Doxiciclina e penicilina benzatina foram administradas em 2 de agosto de 2022. Doses adicionais de penicilina benzatina foram dadas em 9 de agosto de 2022 e 20 de agosto de 2022.
- Piperacilina-tazobactam foi administrada de 3 de agosto de 2022 a 4 de setembro de 2022.
- Vancomicina foi prescrita de 4 de agosto de 2022 a 7 de agosto de 2022.
- Teicoplanina, foi administrada de 7 de agosto de 2022 a 7 de setembro de 2022.
- Polimixina B foi dada de 14 de agosto de 2022 a 22 de agosto de 2022.
- Tecovirimat foi administrado de 27 de agosto de 2022 a 10 de setembro de 2022.
Em 17 de setembro de 2022, o paciente recebeu alta hospitalar. Devido à continuidade de resultados positivos da PCR para Mpox, foi aconselhado a manter o isolamento domiciliar. Após sua alta, em 22 de setembro de 2022, foram realizados novos exames laboratoriais. Os resultados indicaram uma carga viral de HIV de 70 cópias/ml (log 1,85), um CD4 de 279 células/mm3 (6,7%) e um título VDRL de 1/16.
Durante o período de isolamento domiciliar, o paciente experimentou a cicatrização parcial das lesões, embora sinais da doença ativa persistissem. Em 29 de setembro de 2022, um teste PCR foi repetido e novamente foi detectável. Em consulta ambulatorial em outubro de 2022, observou-se que as lesões haviam desenvolvido tecido de granulação, indicando certo grau de melhoria. No entanto, um novo suabe da lesão coletado em 13 de outubro de 2022 continuou a apresentar resultado de PCR positivo para Mpox.
O paciente permaneceu sob cuidados ambulatoriais, recebendo acompanhamento de um especialista em doenças infecciosas e de um enfermeiro para o manejo das feridas. Ele mostrou melhora progressiva em suas lesões. Entretanto, foi diagnosticado com paralisia facial do lado direito, provavelmente secundária à retração da cicatriz, conforme evidenciado nas imagens (Figuras 7, dia 128), e linfedema facial e cervical do lado direito concomitante.
DISCUSSÃO
Neste estudo, apresentamos o caso de um paciente vivendo com HIV diagnosticado com Mpox. O paciente desenvolveu uma forma severa e prolongada da doença, caracterizada por ampla disseminação e complicações. Durante a hospitalização, o paciente recebeu múltiplos tratamentos medicamentosos. Esses incluíram antimicrobianos de amplo espectro e opioides para o manejo da dor, corticosteroides para cuidados de suporte e o medicamento antiviral tecovirimat.
O Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) nos Estados Unidos11 caracteriza a Mpox grave como aquela em que o paciente apresenta erupções cutâneas extensas ou necróticas, lesões cobrindo uma grande área corporal ou em regiões sensíveis (rosto, genitália, intestino, uretra). Outros indicadores de gravidade são lesões com edema, infecções bacterianas/fúngicas secundárias, linfadenopatia grave e complicações como estenoses, cicatrizes, envolvimento multiorgânico e comorbidades que obstruem a ingestão oral. Casos graves também podem apresentar nódulos pulmonares, condições neurológicas (encefalite, mielite transversa), problemas cardíacos (miocardite, doença pericárdica), complicações oculares (conjuntivite grave, úlceras corneanas), sintomas urológicos (uretrite, necrose peniana). O paciente discutido aqui exibiu a maioria desses sintomas graves, especialmente sequelas faciais notáveis e paralisia facial direita devido às crostas de cicatrização, mas não apresentou complicações neurológicas, oculares ou cardíacas.
Este caso representa um dos primeiros casos no Brasil em que o tecovirimat foi administrado sob uso compassivo autorizado pelo Ministério da Saúde, devido à grave condição clínica do paciente. Embora a Food and Drug Administration (FDA) dos Estados Unidos não tenha aprovado nenhum tratamento para ortopoxvírus não variólicos, incluindo a Mpox, o tecovirimat é aprovado pela FDA para o tratamento da varíola humana. Sua eficácia contra outros ortopoxvírus ainda está em avaliação. O tecovirimat, que funciona como um inibidor da proteína de envelopamento VP37 do ortopoxvírus, impede a disseminação do vírus. Está disponível em cápsulas de 200 mg e na forma injetável, com absorção ótima quando tomado com uma refeição rica em gorduras. A duração do tratamento recomendada é de 14 dias12-15. Nosso paciente, enfrentando acesso tardio à medicação, iniciou o tratamento no 54º dia de doença. Notavelmente, enquanto o principal efeito adverso do tecovirimat é a hipoglicemia quando coadministrado com repaglinida15, nosso paciente permaneceu clinicamente estável, sem alterações significativas na glicemia, mas exibiu um leve aumento na creatinina sérica, provavelmente devido a drogas nefrotóxicas concomitantes.
Em julho de 2022, após o diagnóstico de Mpox, aconselhamos a continuação dos ARVs, considerando que o paciente estava em uso regular das medicações para HIV. No entanto, um teste laboratorial subsequente realizado em julho revelou uma queda significativa na contagem de CD4 do paciente e um aumento na carga viral do HIV. Isso indicava que o paciente poderia ter interrompido os ARVs desde março de 2022, quatro meses antes de contrair Mpox. Uma outra hipótese seria que a Mpox pode ter contribuído para uma piora imunológica e virológica do paciente. No momento da infecção por Mpox, ele estava altamente imunossuprimido, com uma contagem de CD4 abaixo de 50 células/mm3. Dados limitados sugerem que pacientes com HIV com cargas virais indetectáveis, contagens altas de CD4 e uso consistente de ARV tendem a experimentar uma doença por Mpox menos agressiva16. A Associação Britânica de HIV indica que indivíduos com uma contagem de CD4 abaixo de 200 células/mm3, carga viral persistentemente detectável ou doença relacionada ao HIV recente estão em maior risco de Mpox grave7. Além disso, estudos africanos mostram que a infecção por HIV não controlada pode levar a desfechos mais graves de Mpox, incluindo lesões mais extensas, de duração mais longa, maior risco de complicações e maior mortalidade17,18.
Inicialmente, o paciente apresentou múltiplas lesões com mais de 5 cm de diâmetro, mas não exibiu sintomas sistêmicos graves. À medida que a condição progrediu, lesões ainda maiores desenvolveram, entretanto com uma aparência crostosa. No 26º dia, o paciente experimentou um agravamento do edema facial, o que levou à administração de corticosteroides orais. Até o 32º dia, houve um aumento notável no edema facial, indicativo de celulite bacteriana, acompanhado pelo surgimento de novas lesões de Mpox. Permanece incerto se o uso de corticosteroides exacerbou a condição por meio de efeito rebote após a sua descontinuação. As lesões então se transformaram em úlceras, sendo a maioria maior que 2 cm, com uma na bochecha direita atingindo cerca de 15 cm e outra na área inguinal medindo 10 cm (Figura 1, dia 53). Um estudo de 40 casos de Mpox na Nigéria, que incluiu nove indivíduos coinfectados com HIV tipo 1 e pelo menos sete casos com cargas virais altas e baixas contagens de CD4, constatou que pacientes HIV-positivos eram mais propensos a erupções cutâneas com mais de 2 cm, úlceras genitais, infecções bacterianas secundárias na pele e doença prolongada18.
Outro aspecto que pode explicar a gravidade deste caso é a reintrodução da TARV (Terapia Antirretroviral). Notavelmente, cerca de 30 dias após a reinicialização da TARV, houve uma piora marcante das lesões cutâneas e do edema facial, indicativo de Síndrome Inflamatória de Reconstituição Imune (SIRI). A SIRI é caracterizada por uma deterioração clínica inesperada, frequentemente devido à piora paradoxal ou revelação de uma infecção ou malignidade com o início da TARV. Nosso paciente experimentou uma diminuição significativa na contagem de CD4 de 278 para 26 células/mm3. Embora inicialmente houvesse um progresso favorável, o paciente posteriormente exibiu um agravamento progressivo das lesões. Essa deterioração coincidiu com um aumento na contagem de CD4 de 26 para 279 (6,7%) em dois meses (até o dia 80), uma elevação rápida de aproximadamente dez vezes, que provavelmente contribuiu para esses sintomas. Adicionalmente, optamos contra intervenções cirúrgicas, pois não havia lesões gangrenosas ou abscessos. Essa decisão foi considerada apropriada considerando o risco de disseminação local das lesões e o potencial surgimento de novas lesões secundárias.
No âmbito dos diagnósticos diferenciais, a Mpox apresenta desafios consideráveis. ISTs como sífilis, cancroide, linfogranuloma venéreo, donovanose e herpes simples, juntamente com outras doenças cutâneas e infecciosas como herpes zóster ou varíola humana, podem exibir apresentações clínicas semelhantes à Mpox. A literatura tem descrito a ocorrência simultânea da infecção por Mpox com outras ISTs, particularmente sífilis19-21. No caso discutido, o paciente tinha uma coinfecção por sífilis (tratada menos de um ano antes da admissão), indicando uma infecção recente por sífilis. Além disso, devido a lesões genitais ulceradas, foi administrado tratamento empírico com ceftriaxona e azitromicina. Essa coinfecção de ISTs, HIV e Mpox, conforme relatado na literatura, é um fator de risco provável para a progressão grave da Mpox21,22. Um relatório do CDC dos EUA indicou uma prevalência de 8% de coinfecção por sífilis com Mpox23. Um estudo nas Ilhas Canárias, região conhecida pelo turismo sexual, constatou que pacientes HIV-positivos coinfectados com Mpox frequentemente apresentavam lesões periorais, faringite e um maior número de ISTs24.
O paciente apresentou melhora progressiva das lesões; no entanto, experimentou hiperpigmentação pós-lesional, cicatrizes queloides, cicatrização lenta de úlceras após a queda das crostas e retrações cicatriciais. Essas lesões cicatriciais, amplamente relatadas por pacientes em sites da internet, blogs e redes sociais, causam grande angústia devido às mudanças na aparência física e à normalização tardia da pele.
CONCLUSÃO
Embora a maioria dos casos de Mpox no atual surto tenha sido autolimitada23, este relato destaca manifestações graves da doença em um paciente brasileiro com imunossupressão significativa devido ao HIV. A Mpox, uma doença infecciosa com manifestações clínicas diversas, deve ser considerada um diagnóstico potencial em jovens HSHs. Pacientes coinfectados com HIV podem apresentar doença mais grave, complicações, progressão prolongada e aumento de coinfecções por ISTs. Pacientes que não estão em TARV com baixos níveis de CD4 podem experimentar SIRI, potencialmente exacerbando lesões, com o início dos ARVs. Compreender as nuances do atual surto de Mpox, especialmente sua interação com o HIV, é crucial para elaborar estratégias eficazes de prevenção.
A eficácia dos tratamentos e especialmente do tecovirimat para Mpox não pode ser concluída a partir deste caso singular. A alta incidência de casos graves de Mpox em pacientes com imunossupressão avançada devido ao HIV ressalta a importância crucial de fornecer cuidados de saúde abrangentes para pessoas vivendo com HIV e intensificar os esforços para erradicar a epidemia de HIV/AIDS. É essencial que médicos infectologistas priorizem o monitoramento atento e o tratamento imediato de pacientes com Mpox, utilizando as terapias disponíveis e adaptando as estratégias de tratamento conforme a necessidade, especialmente para aqueles que estão em alto risco de desenvolver formas graves da doença. Além disso, assegurar igualdade de acesso a recursos de diagnóstico, tratamento e prevenção tanto para HIV quanto para Mpox é um objetivo primordial de saúde pública. Isso inclui a vacinação contra Mpox para as populações em risco, um passo crucial na mitigação da disseminação e gravidade da doença.
CONTRIBUIÇÃO DOS AUTORES
As contribuições dos autores estão estruturadas de acordo com a taxonomia (CRediT) descrita abaixo:
Conceptualização, Investigação, Metodologia, Visualização & Escrita - análise e edição: Helena Duani, Marcia Pimenta. Administração do Projeto, Supervisão & Escrita - rascunho original: Helena Duani, Lucas Athadeu. Validação, Software: Bruna Walker, Marina Harada. Recursos & Aquisição de Financiamento: Ho Yeh Li. Curadoria de Dados & Análise Formal: Helena Duani.
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