RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Número Atual: 34 e34116 DOI: https://dx.doi.org/10.5935/2238-3182.2024e34116

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Artigo Original

Avaliação dos primeiros cem óbitos por COVID-19 e transmissão intra-hospitalar, um risco negligenciado no início da pandemia

Assessment of the first 100 deaths from COVID-19 and in-hospital transmission, a neglected risk at the beginning of the pandemic

Karina Martins Nogueira Napoles1; Júlia Fonseca de Morais Caporali2; Pedro Henrique Couto Reis3; Unai Tupinambás4

1. Programa de Controle de Infecção Hospitalar do Hospital Santa Rita de Contagem, Minas Gerais e Instituto de Cirurgia Plástica. Belo Horizonte, MG, Brasil
2. Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da UFMG. Belo Horizonte, MG, Brasil
3. Acadêmico de Medicina da Faculdade de Medicina da UFMG. Belo Horizonte, MG, Brasil
4. Unaí Tupinambás. Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da UFMG. Belo Horizonte, MG, Brasil

Endereço para correspondência

Karina Martins Nogueira Napoles
Programa de Controle de Infecção Hospitalar do Hospital Santa Rita de Contagem, Minas Gerais e Instituto de Cirurgia Plástica
Minas Gerais, Brasil.
E-mail: kanapoles@hotmail.com

Recebido em: 23 Março 2023.
Aprovado em: 28 Abril 2024.
Data de Publicação: 5 Fevereiro 2025.

Editor Associado Responsável:

Dr. Alexandre Moura.
Santa Casa de Misericórdia de Belo Horizonte, Belo Horizonte, MG, Brasil.

Conflito de Interesse: Os autores declaram não ter conflitos de interesse.

Fontes apoiadoras: Este projeto de pesquisa não recebeu nenhum tipo de financiamento. Recebeu apoio técnico da Universidade Federal de Minas Gerais, Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde, Infectologia e Medicina Tropical.

Comitê de Ética: Número do Parecer - 4.164.905.

Resumo

A pandemia de "coronavirus disease - 2019" (COVID-19) desafiou o sistema de saúde do Brasil e do mundo. Belo Horizonte (BH), a capital de Minas Gerais, apresentou as menores taxas de mortalidade hospitalar entre as capitais brasileiras. Para tirar conclusões sobre a letalidade do COVID-19 localmente, é relevante estudar os primeiros óbitos ocorridos no município. Este é um estudo descritivo dos primeiros cem óbitos por COVID-19 ocorridos em BH. Os prontuários foram analisados para investigação de óbitos em parceria com o Centro de Informações Estratégicas em Vigilância em Saúde (CIEVS). Os primeiros cem óbitos ocorreram em 19 hospitais, de 30 de março a 19 de junho de 2020; a média de idade foi 69,3 anos (±14,8) e a distribuição por raça foi: parda (50), preta (7), branca (42) - ignorada (1) . Houve uma média de 6,5 dias entre o início dos sintomas e a internação, 15 dias entre o início dos sintomas e o óbito, e 11 dias de internação. Foram 25 pacientes com limitação de esforço terapêutico (LET). Em média, apresentavam 4 comorbidades. Entre os óbitos, 14 foram infecções por SARS-COV-2 consideradas relacionadas à assistência à saúde (IRAS) e 24 possíveis IRAS (pIRAS). Os principais sinais e sintomas observados foram dispneia (n=100), desconforto torácico (n=85), febre (n=77) e tosse (n=75). As principais comorbidades foram idade superior a 60 anos (n=71), hipertensão arterial sistêmica (n=69) e diabetes mellitus (n=47). Dentre as 75 radiografias de tórax, 92% evidenciou presença de infiltrado intersticial e 23%, de consolidação; já nas tomografias computadorizadas (TCs) de tórax de 49 pacientes, em 86%, havia opacidade de padrão "vidro fosco" e, em 35%, consolidação. As principais complicações foram: choque séptico (n=98), sepse secundária (n=68), hiperglicemia (n=54) e insuficiência renal dialítica (n=49). Chamamos atenção para a alta frequência de IRAS encontrada nos primeiros cem óbitos em BH, e para a necessidade de suspeição no início de surtos e epidemias para que seja realizado diagnóstico precoce e instituição rápida de medidas preventivas.

Palavras-chave: COVID-19; Mortalidade hospitalar; Sintomas; Complicações; Epidemiologia; Fatores de risco.

 

INTRODUÇÃO

A pandemia de COVID-19 desafiou o sistema de saúde do Brasil e do mundo, evidenciando as disparidades regionais no acesso e funcionamento dos serviços de saúde. Um estudo do Imperial College evidenciou variação geográfica e temporal nas taxas de mortalidade hospitalar por COVID-19 em 14 capitais brasileiras, sendo que Belo Horizonte, capital de Minas Gerais, apresentou a menor delas. No estudo, foi estimado que, até 26 de julho de 2021, aproximadamente metade dos óbitos hospitalares por COVID-19 no Brasil poderiam ter sido evitados se todas as capitais tivessem tido taxas semelhantes às observadas em Belo Horizonte1. Essa variação foi reflexo da desigualdade na capacidade para o cuidado com a saúde - isto é, na disponibilidade de leitos, equipamentos e profissionais da saúde - a qual se deve, por sua vez, a uma miríade de desigualdades pré-pandêmicas1.

Belo Horizonte, situada no sudeste do Brasil, com população estimada, em 2021, de 2.530.701 habitantes, está em quinto lugar entre as cidades mais populosas do Brasil, com território de 331.354 km2.2

Conforme o Boletim Epidemiológico e Assistencial da Prefeitura de Belo Horizonte2 no combate à COVID-19, o primeiro caso notificado na cidade foi em 28 de fevereiro de 2020, e, em 19 de junho de 2020 (data em que se completaram os 100 primeiros óbitos da capital), havia 3.879 casos confirmados por COVID-19, sendo desses 3.324 casos recuperados. Predominou o sexo feminino nos casos confirmados nesse período em todas as semanas epidemiológicas3.

A Prefeitura de Belo Horizonte (PBH) adotou medidas públicas mais rígidas para o controle da pandemia de COVID-19 quando comparada com outras capitais brasileiras3. Aliado a isso, a PBH já possuía uma rede pública municipal de atenção primária e hospitalar melhor estruturada quando comparada à média nacional4. Talvez esses dois fatores expliquem a baixa taxa de mortalidade por COVID-19 da capital mineira.

Para tirar conclusões sobre a letalidade da COVID-19 em Belo Horizonte, é relevante estudar os primeiros óbitos ocorridos no município e compará-los com os de outras localidades. Essa investigação traz conhecimento sobre a evolução natural, o perfil demográfico, os principais sinais e sintomas, o tempo de evolução da doença, as principais complicações e o padrão radiológico.

 

MÉTODO

Trata-se de um estudo descritivo dos primeiros cem óbitos por COVID-19 ocorridos em Belo Horizonte, Minas Gerais. Os prontuários hospitalares foram analisados e os dados coletados através de um formulário de investigação de óbitos disponibilizado pelo Centro de Informações Estratégicas em Vigilância em Saúde (CIEVS) de BH. O período analisado abrangeu de agosto a outubro de 2020.

Os critérios para inclusão dos pacientes no estudo foram: óbito hospitalar por Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) notificado ao CIEVS - sendo esses óbitos ocorridos em Belo Horizonte; diagnóstico confirmado por swab de nasofaringe com RT- PCR para SARS-COV-2 (do inglês, "Severe Acute Respiratory Syndrome Coronavirus 2"). Os critérios de exclusão foram: óbitos por COVID-19 ocorridos nas Unidades de Pronto Atendimento (UPAs).

O estudo foi aprovado pelo comitê de ética da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) sob o número CAAE 34103320.6.0000.5149. e os pesquisadores seguiram as preconizações internacionais e da Resolução 466/12 do Conselho Nacional de Saúde5.

Como ferramenta de banco de dados e análise estatística dos resultados do estudo, foram utilizados os programas Excel 2010 (Microsoft, EUA) e SPSS Statistics for Windows and Macintosh, versão 19.0 (IBM Corporation, Armonk, NY). As variáveis categóricas foram descritas como frequência absoluta e relativa e as variáveis contínuas foram descritas por medidas de tendência central e variabilidade. O teste T de Student e o Qui-Quadrado foram utilizados para comparar variáveis contínuas e categóricas entre os grupos de óbitos por COVID-19 classificados como Infecção Relacionada à Assistência à Saúde (IRAS) e não-IRAS. IRAS foi definida pelos critérios da ANVISA: Covid-19 manifestada após, pelo menos, 7 dias de internação, com um vínculo epidemiológico, ou a partir de 14 dias sem vínculo epidemiológico. O nível de significância estatística adotado foi de 0,05.

Foram retirados do cálculo de média os pacientes que não tinham a data correta de início dos sintomas e os pacientes com comorbidades não informadas. Na análise de dias de sintomas até a internação, foram retirados os pacientes com suspeita de IRAS pela COVID-19, uma vez que o início dos sintomas foi durante a hospitalização (esses pacientes já estavam internados quando desenvolveram sintomas). Nesses casos (possíveis IRAS), o número de dias de internação foi corrigido para o número de dias de internação após o início dos sintomas da COVID-19.

 

RESULTADOS

Os primeiros cem óbitos hospitalares por COVID-19 em Belo Horizonte ocorreram de 30 de março a 19 de junho de 2020, com a média de idade de 69,3 anos (± 14,8) e a proporção de sexo pouco maior para as mulheres (53%). A média de idade nas mulheres foi de 70,2 anos e, nos homens, 68,4 anos. Foram observados mais óbitos em homens entre os pacientes com menos de 70 anos (Gráfico 1).

 

 

Em relação à raça/cor, 57 pacientes eram negros (50 pardos e 7 pretos), 42 brancos e 1 ignorado.

Os óbitos ocorreram em dezenove hospitais, sendo sete públicos e doze privados. Foram 64 óbitos em hospitais públicos e 36 óbitos em hospitais particulares. Verificou-se, em média, 6,5 dias do início dos sintomas até a hospitalização, 15,5 dias de sintomas para o óbito e 11,3 dias totais de hospitalização. Esses pacientes apresentavam uma média de 4,1 condições de risco para gravidade (Tabela 1).

 

 

O número de dias de sintomas até a hospitalização ou o óbito, e de dias de internação, quando resultado zero (Mínimo - Tabela 1), indica que esse paciente já estava internado quando ocorreram, e esses são os casos das possíveis infecções relacionadas à assistência (IRAS) ou de transmissão intra- hospitalar.

Dispneia e saturação de oxigênio (SpO2) inferior a 94%, desconforto torácico, febre e tosse foram encontrados em mais de 70% desses óbitos (Tabela 2).

 

 

Na nossa análise dos 100 primeiros óbitos por COVID-19 ocorridos em BH, os pacientes apresentavam, em média, 4,1 condições de risco para gravidade e, entre essas, as mais frequentes foram: mais de 60 anos de idade (em 71 óbitos), hipertensão arterial sistêmica (HAS, em 69) e diabetes mellitus (DM, em 47) (Tabela 3).

 

 

Até um quarto dos 100 primeiros óbitos por COVID-19 em BH tiveram limitação de esforço terapêutico devido a doenças avançadas. Apesar disso, a maioria dos pacientes foram submetidos a pelo menos quatro dispositivos invasivos: 87% estavam em ventilação mecânica, 84% em cateter venoso central, 83% em sonda vesical de demora e 83% em sonda nasoentérica (Tabela 4).

 

 

Em nosso estudo, das 75 radiografias de tórax avaliadas, 92% mostraram infiltrado intersticial e 23%, consolidação e, das 49 tomografias avaliadas, 86% apresentavam opacidade em padrão de "vidro fosco".

Nosso estudo encontrou como principais complicações observadas na evolução da doença SARS-Cov-2: choque séptico (98%), sepse secundária (68%), hiperglicemia (54%) e insuficiência renal dialítica (49%) (Tabela 5).

 

 

Destes 100 primeiros óbitos por COVID-19 , foram observados um total de 14 IRAS por COVID-19, seguindo os critérios diagnósticos da ANVISA. No entanto, encontramos, neste estudo, pacientes com início dos sintomas entre 3 e 6 dias após a admissão ou após a alta e, se considerarmos infecção hospitalar que não se manifestou na admissão e ocorreu após 1 a 14 dias dessa (período de incubação do SARS-Cov-2), encontramos 10 possíveis IRAS por COVID-19. Isso significa dizer que até 24% desses cem primeiros óbitos foram por transmissão intra-hospitalar definida ou possível.

As variáveis contínuas e categóricas entre os grupos de óbitos por COVID-19 classificados como IRAS e não-IRAS foram comparadas, para verificar possível associação. Os resultados encontrados não apresentaram diferença estatisticamente significativa na idade, gênero, raça, ou indicação de limitação de esforço terapêutico (LET), entre os casos IRAS e não-IRAS - tanto seguindo o critério ANVISA, quanto possível IRAS (pIRAS) (Tabela 6). A única associação estatística encontrada para os óbitos por COVID-19 classificado como IRAS foi aquela relacionada ao hospital "X".

 

 

DISCUSSÃO

Nosso trabalho evidenciou que, no início da pandemia de COVID-19 em Belo Horizonte, MG, os primeiros cem óbitos ocorreram de 30 de março de 2020 a 19 de junho de 2020, em 19 instituições de saúde diferentes, sendo a maioria dos hospitais de saúde suplementar (7 públicos x 12 saúde suplementar). Entretanto, no total de óbitos, a maior parte ocorreu nos hospitais públicos (64 x 36). Isso poderia ser explicado pela maior quantidade de hospitais particulares pequenos, maior demanda para os poucos hospitais públicos de grande porte, ou, ainda, maior vulnerabilidade da população que depende dos hospitais públicos.

Houve maior prevalência nas faixas de idade acima de 50 anos (89%), sendo a maioria acima de 60 anos (71%). Interessante observar que não houve óbito em idade inferior a 31 anos. Outros trabalhos nacionais e internacionais também observaram altas taxas de mortalidade hospitalar por COVID-19 em idosos e, além disso, alto risco de reinternação e óbito após a alta hospitalar entre eles8.

Nessa amostra, encontramos uma proporção um pouco maior para as mulheres (53%). Alguns relatórios chineses iniciais encontraram maior predominância de óbito em homens, e concluíram que a maior taxa de fatalidade em homens ocorria em razão da prevalência das doenças cardiopulmonares e do tabagismo, tornando-os mais propensos a desenvolver inflamação sistêmica, disfunção de múltiplos órgãos e lesão cardíaca9. Porém, um número crescente de estudos posteriores mostraram pequena ou nenhuma diferença entre os sexos.  Isso poderia ser explicado pela maior idade atingida pelas mulheres em relação aos homens, assim, maior número de mulheres expostas10.

Nossos dados evidenciaram discreta desigualdade de raça/cor, porém, de acordo com dados do IBGE de 2010, a população de BH é composta por: brancos, 47%; pardos, 42%; pretos, 10%; amarelos, 1%; indígenas, 0,15%. Os negros (considerados pelo IBGE como pardos e pretos) contabilizam 52%, de modo que seriam a maioria da população de BH.

Evidências de moderada a alta robustez de uma revisão sistemática de 52 estudos indicam que as populações afroamericana/negra e hispânica apresentaram uma incidência de infecções por SARS-CoV-2 e mortalidade relacionada à COVID-19 maiores, mas não apresentaram maiores taxas de letalidade (definidas como mortalidade intra-hospitalar) quando comparadas as proporções11,12. Tal fato não sugere maior suscetibilidade ao vírus, mas provavelmente efeitos do acesso aos cuidados de saúde e fatores relacionados à exposição, como a densidade populacional, dentre outras desigualdades sócio-econômicas.

Sintomas de infecção do trato respiratório inferior, como os de pneumonia, foram frequentemente observados em pacientes com comorbidades, e foram mais graves em pacientes mais idosos. Por outro lado, os sintomas de Infecção das Vias Aéreas Superiores (IVAS) parecem estar relacionados a quadros clínicos de evolução mais branda. Cefaleia, anosmia, ageusia (ou disgeusia), e rinite foram observados principalmente em pacientes jovens com quadros clínicos mais leves em outros estudos13.

Em relação às comorbidades, na nossa análise, 71 pacientes tinham mais de 60 anos de idade; 69, hipertensão arterial sistêmica; 47, diabetes mellitus. Esses dados são apontados na literatura como os principais fatores de risco para COVID-19 grave7,14-16, o que condiz com os achados deste estudo.

Duas meta-análises forneceram as características clínicas dos pacientes com diagnóstico de COVID-19 e os fatores associados à gravidade e mortalidade. Em uma, a média de idade dos pacientes foi 58,42 anos, com prevalência de 79,26% para sintomas de febre, 60,7% para tosse, 33,2% para fadiga, 31,3% para mialgia e 10,7% para diarreia. As comorbidades mais comuns foram: hipertensão (28,30%), diabetes (14,29%), doenças cardiovasculares (12,30%) e doença renal crônica (5,19%)15. Na outra, associações significativas foram encontradas entre idade mais avançada (≥ 65), sexo masculino, hipertensão, doenças cardiovasculares (DCVs), diabetes, doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC) e câncer16. Esses achados podem contribuir para a identificação de pacientes de risco para quadro mais graves em um estágio inicial.

Em um estudo realizado no início da pandemia na cidade de Nova York, nos EUA, que incluiu 5700 indivíduos, a média de idade foi de 63 anos, sendo 39,7% mulheres. As comorbidades mais comuns foram hipertensão (56,6%), obesidade (41,7%) e diabetes (33,8%). Na triagem, 30,7% dos pacientes estavam febris, 17,3% tinham frequência respiratória superior a 24 respirações por minuto e 27,8% receberam oxigênio suplementar17. Essa série de casos fornece características de pacientes hospitalizados com COVID-19: também encontraram faixa etária maior de 60 anos, HAS e DM como as comorbidades mais frequentes. Os sintomas na hospitalização por COVID-19 foram menos frequentes que os encontrados nos óbitos do nosso estudo, provavelmente devido à maior gravidade dos sintomas na população apenas dos óbitos.

Encontramos, em até 25% dos óbitos investigados, pacientes com limitação de esforço, e média de 4 comorbidades na análise geral. Esses dados mostram uma população afetada que pode ser um preditor de risco para o óbito: pacientes idosos ou com comorbidades.

Mais de 80% desses pacientes foram submetidos a pelo menos quatro dispositivos invasivos (ventilação mecânica, cateter venoso central, sonda vesical de demora e sonda nasoentérica). Esses procedimentos invasivos rompem a barreira física do paciente, predispondo-o à sepse bacteriana ou fúngica, pois, somado ao perfil desses pacientes, em sua maioria idosos e acometidos pelo SARS-Cov-2, terão maior risco de infecções secundárias relacionadas à assistência à saúde. Em uma série de casos de pacientes criticamente enfermos com COVID-19 confirmados laboratorialmente, na Lombardia, Itália, a maioria era idosa, uma grande proporção necessitou de ventilação mecânica e níveis elevados de pressão expiratória final positiva (PEEP), e a mortalidade na UTI foi de 26%15.

A TC pode desempenhar um papel tanto no diagnóstico quanto na avaliação da extensão da doença e no acompanhamento. A TC de tórax tem uma sensibilidade relativamente alta para o diagnóstico de COVID-1918,19. No entanto, cerca de metade dos pacientes pode ter uma TC normal durante os primeiros 1 a 2 dias do início dos sintomas20. As imagens da infecção por SARS-COV-2 geralmente mostram envolvimento bilateral, com múltiplas opacidades em vidro fosco ou em placas com distribuição subpleural em vários lobos bilaterais. As lesões podem apresentar sobreposição significativa com as de SARS e MERS (do inglês, "Middle East Respiratory Syndrome")21.

De acordo com uma revisão de 45 estudos envolvendo 4.410 pacientes, opacidades em vidro fosco (OVFs), isoladas (50%) ou coexistindo com consolidações (44%) na distribuição bilateral e subpleural, foram os achados de TC de tórax mais prevalentes22. Outra revisão sistemática de achados de imagem em 919 pacientes encontrou OVF multilobar bilateral com uma distribuição periférica ou posterior, principalmente nos lobos inferiores como a característica mais comum23. Derrame pleural, derrame pericárdico, linfadenopatia, cavitação, sinal do halo na TC e pneumotórax foram incomuns.

Em um estudo longitudinal que analisou 366 tomografias computadorizadas em série em 90 pacientes com pneumonia por COVID-19, a extensão das anormalidades pulmonares progrediu rapidamente e atingiu o pico durante os dias 6 a 11 de doença24. O padrão predominante de anormalidades após o início dos sintomas neste estudo foi a OVF (4562%). Conforme a pneumonia progride, as áreas das lesões aumentam e se desenvolvem consolidações difusas em ambos os pulmões dentro de alguns dias25. A maioria dos pacientes que receberam alta apresentava doença residual nas tomografias finais24. Mais estudos com acompanhamento prolongado são necessários para avaliar os danos pulmonares a longo prazo ou permanentes, incluindo fibrose, como é visto com SARS e MERS26.

As principais complicações observadas na evolução da doença COVID-19 foram: choque séptico, sepse secundária, hiperglicemia e insuficiência renal dialítica27. Esses achados também foram evidenciados em outros estudos e auxiliam o clínico na previsão do mau prognóstico desses pacientes.

A fisiopatologia da COVID-19 mostra que o SARSCoV-2 entra nas células hospedeiras por meio da interação de sua proteína de pico com o receptor de entrada ACE2 e isso pode causar, em última instância dano às células endoteliais e trombo-inflamação, desregulação da resposta imune e liberação de citocinas pró-inflamatórias. Além da insuficiência respiratória hipoxêmica, dados da literatura mostram que as complicações da COVID-19 podem ser aproximadamente em: 9%, lesão renal; 19%, disfunção hepática; 10-25% sangramento e discrasia sanguínea; 6%, choque séptico27.

Em um estudo observacional retrospectivo do Centro Médico da Universidade de Freiburg (Alemanha), entre 25 de fevereiro e 8 de maio de 2020, 213 pacientes com SARSCoV-2 confirmado por PCR foram incluídos. O desfecho primário foi mortalidade hospitalar, e os secundários incluíram complicações maiores e causas de óbitos. A mediana de idade foi de 65 anos, similar ao nosso estudo; a maioria, 129 pacientes (61%) eram do sexo masculino. 70 pacientes (33%) foram admitidos na UTI, dos quais 57 pacientes (81%) receberam ventilação mecânica. Nesse estudo a idade ≥ 65 anos e sexo masculino foram preditores de óbito hospitalar. As complicações predominantes foram insuficiência multiorgânica, choque séptico, complicações tromboembólicas e hemorrágicas, assim como encontramos no presente estudo. Cinquenta casos (23%) foram considerados infecções adquiridas em ambiente hospitalar. Esse dado também foi similar ao do nosso estudo. Enquanto 56 pacientes (26%) não apresentavam comorbidades significativas, 79 pacientes (37%) relataram uma, e 78 pacientes (37%) duas ou mais comorbidades, com doença arterial coronariana ou cardiomiopatia isquêmica (21%), diabetes mellitus (20%) e obesidade (IMC> 30mg/m2, 24%) sendo as doenças mais prevalentes. O tempo médio do início dos sintomas até a hospitalização foi de 6 dias13. Esses achados foram semelhantes ao nosso estudo, corroborando a sugestão para o clínico atentar-se às comorbidades no diagnóstico diferencial de outras viroses.

Quando realizamos a análise comparativa das variáveis (idade, gênero, cor, limitação de esforço terapêutico, região hospitalar) nos casos IRAS x não-IRAS (tanto segundo o critério ANVISA, quanto possível IRAS), a única associação estatisticamente significativa foi relacionada ao hospital "X", o que é compatível com o surto hospitalar de COVID-19 que houve naquela instituição. Lá, dos dezoito óbitos pela COVID-19 do estudo, cinco eram possíveis IRAS (28%) e dez eram IRAS segundo os critérios da Anvisa (56%).

De acordo com dados de prontuários médicos, a causa do surto de COVID-19 naquele hospital foi a demora na suspeita do diagnóstico de COVID-19 em pacientes idosos, com comorbidades cardíacas e neoplásicas, inicialmente pouco sintomáticas ou com sintomas inespecíficos e descompensação da doença subjacente, ou com possível infecção bacteriana sobreposta.

No estudo retrospectivo da Universidade de Freiburg, de fevereiro de 2020 a maio de 2020, dos 213 pacientes internados com SARS-CoV-2, 50 pacientes (23,47%) foram considerados IRAS por COVID-1913. Esse dado, assim como encontrado no nosso estudo, evidencia a importância da transmissão intra-hospitalar, reforçando a necessidade de atenção para o rápido diagnóstico e instituição das medidas de precaução por gotículas e aerossois, no sentido de evitar surto e maior letalidade hospitalar.

A limitação do presente estudo engloba as limitações de estudo retrospectivo e essencialmente descritivo, com dados colhidos de prontuários e possível perda de informações. Contudo, essa é a característica da investigação epidemiológica de óbitos, a qual tem importância inquestionável, principalmente diante de surtos e epidemias.

 

CONCLUSÃO

Chamamos atenção para a alta frequência de IRAS encontrada nos primeiros cem óbitos em BH. Alertamos para a necessidade de elevação da suspeição no início de surtos e epidemias, para que seja realizado diagnóstico precoce e instituição rápida de medidas preventivas contra a transmissão hospitalar de COVID-19 e de possíveis doenças comunicantes epidêmicas futuras.

O nosso estudo encontrou semelhança com estudos realizados em outras localidades no perfil dos 100 primeiros pacientes vitimados pela COVID-19, principalmente, no que tange às comorbidades, o que aponta para a importância destas enquanto preditoras de gravidade, fato percebido já no início da pandemia e que orientou medidas de saúde pública posteriores. Nesse sentido, estudos como esse podem ser úteis enquanto modelo para avaliação de surtos e epidemias futuras, dentre outros.

O presente estudo contribuiu para a investigação dos primeiros cem óbitos por COVID-19 em BH, com o registro dos principais achados demográficos, clínicos e radiológicos, logo no início da nova pandemia. A detecção da infecção hospitalar em tempo oportuno é fundamental para evitar o surgimento de surtos, dado o alto risco de transmissão devido aos casos assintomáticos, ou oligossintomáticos, e ao atraso diagnóstico de alguns em função de suas comorbidades e como elas interferem na apresentação clínica. Isso serve de alerta para o controle de infecções dos Hospitais e para a vigilância epidemiológica das infecções associadas à assistência à saúde na adoção de medidas de prevenção e isolamento em tempo adequado.

 

CONTRIBUIÇÃO DOS AUTORES

As contribuições dos autores estão estruturadas de acordo com a taxonomia (CRediT) descrita abaixo:

Conceptualização, curadoria de dados, análise formal, investigação, metodologia, escrita-rascunho original: Karina Martins Nogueira Napoles. Escrita-revisão e edição, visualização: Pedro Henrique Couto Reis. Análise formal, administração de projeto, escrita-revisão e edição, visualização: Júlia Fonseca de Morais Caporali. Supervisão, administração do projeto, escrita-revisão e edição: Unai Tupinambás.

 

COPYRIGHT

Copyright© 2022 Napoles et al. This is an Open Access article distributed under the terms of the Creative Commons Attribution License, which permits unrestricted use, distribution, and reproduction in any medium, provided the original article is properly cited.

 

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