RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 23. 4 DOI: https://dx.doi.org/10.5935/2238-3182.20130082

Voltar ao Sumário

Relato de Caso

Lesão grave de partes moles decorrente de acidente motociclístico

Severe soft tissue injury resulting from motorcycle accidents

Bruno de Lima Rodrigues1; André Rosetti Portela2; Mario Pastore Neto1; Domingos André Fernandes Drumond3

1. Médico. Cirurgião do Trauma. Serviço de Cirurgia Geral e do Trauma do Hospital João XXIII. Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais-FHEMIG. Belo Horizonte, MG - Brasil
2. Médico-Residente de Cirurgia do Trauma. Serviço de Cirurgia Geral e do Trauma do Hospital João XXIII-FHEMIG. Belo Horizonte, MG - Brasil
3. Médico-Cirurgião do Trauma. Chefe do Serviço de Cirurgia Geral e do Trauma do Hospital João XXIII-FHEMIG. Belo Horizonte, MG - Brasil

Endereço para correspondência

Mario Pastore Neto
E-mail: mario-pastore@uol.com.br

Recebido em: 17/08/2009
Aprovado em: 25/09/2013

Instituição: Serviço de Cirurgia Geral e do Trauma do Hospital João XXIII - FHEMIG Belo Horizonte, Minas Gerais

Resumo

Lesão grave em trauma tem aumentado, em parte relacionada à elevação do número de acidentes motociclísticos, o que tem sido associado ao aumento da frota desses veículos, observado nos últimos anos. O trauma de parede abdominal causa, por vezes, alta morbimortalidade, seja por comprometimento das vísceras intra-abdominais, seja pela lesão da parede abdominal. Este caso descreve a gravidade das lesões em trauma decorrente de acidente motociclístico, além de conduta cirúrgica adotada.

Palavras-chave: Acidentes de Trânsito; Motocicletas; Lesões dos Tecidos Moles; Traumatismos Abdominais.

 

INTRODUÇÃO

Os acidentes motociclísticos têm aumentado sobremaneira a demanda de atendimento hospitalar de urgência e emergência em todo o país. No Hospital Joao XXIII, de Belo Horizonte, dos 17.090 pacientes atendidos devido a acidente com automotores em 2008, 8.447 se associaram aos veículos motociclísticos (cerca de 50% dos acidentes). Essas lesões têm sido cada vez mais graves, devido a vários fatores, como: velocidade, inexistência de legislação de trânsito específica, imprudência, etc.

A ruptura da parede abdominal decorrente de trauma contuso é situação rara e o seu tratamento, desafiador. O reparo imediato da lesão é difícil, particularmente quando há alto grau de destruição tecidual.1

Há casos em que o tratamento é postergado a segundo tempo e requer uso de tecido autógeno como a fáscia lata, músculo reto abdominal e musculatura dorsal. A reconstrução da parede abdominal com uso de próteses também é recurso usado, mas pode ser fonte de complicação, já que essas lesões são contaminadas, na maioria das vezes, por resíduos associados ao ambiente em que houve o acidente ou pelas lesões viscerais associadas.

Poucos casos têm sido relatados na literatura atual.2,3

A hérnia da parede é definida como protrusão do conteúdo abdominal por sob a pele íntegra.3,4 Haverá hérnia em 100% dos casos quando se observam acometimento da pele, ruptura das estruturas musculoaponeurótica da parede e somente a pele for reparada.1

A ruptura traumática da parede abdominal é de difícil tratamento, tanto agudo como crônica, e necessita de cooperação multidisciplinar.

Este trabalho objetiva relatar o caso ocorrido no Serviço de Cirurgia Geral e do Trauma do Hospital Joao XXIII, em Belo Horizonte, MG.

 

RELATO DO CASO

A vítima de acidente motociclístico em via pública foi admitida no HPS Joao XXIII em 28/12/08. O veículo estava em alta velocidade no momento do acidente e o condutor usava capacete. Atendido pelo SAMU em Glasgow 15, eviscerado, com pressão arterial sistólica de 80 mmHg. Administrado, inicialmente, NaCl 0,9%, 1.000 mL, com ótima resposta.

A seguir, foi intubado e realizada radiografia de tórax, que não revelou anormalidades. Encaminhado ao bloco cirúrgico com estabilidade hemodinâmica. Foi anestesiado, posicionado para o procedimento, realizada antissepsia e dissecado com eletrocautério o plano subcutâneo e cutâneo à semelhança da dermolipectomia, até o plano paramediano esquerdo. Submetido à laparotomia mediana xifopúbica abaixo do retalho da pele, secção do reto abdominal à direita e inventariada a cavidade abdominal. Foram observadas:

lesão grau I de cólon transverso;

lesões hepáticas nos segmentos II, III, IV e VII, sangrantes, que foram rafiadas, e avulsão parcial da vesícula do leito hepático, que foi ressecada;

cavidade torácica violada na inserção diafragmática direita, com fratura das 10a e 11a costelas. As costelas e o diafragma foram reparados;

destruição do músculo oblíquo externo, tendo o oblíquo interno rodado para fechar o defeito da parede;

drenado o tórax à direita e a cavidade abdominal com dreno nº 38 infra-hepático. Realizado o fechamento por planos da parede abdominal lateral com Vicryl® 1. Rafia da laparotomia com Vicryl® 1.

Foram trocados todos os campos e capotes da equipe cirúrgica, com nova degermação da pele e musculatura, e aplicada tela de Marléx® de 30,5 x 30,5 cm, fixada com prolene® 2.0; drenado o subcutâneo com Port-o-vac® número 3.2; e rafia da pele e curativos.

O paciente permaneceu em terapia intensiva por 13 dias e apresentou como intercorrência infecção pulmonar.

A extubação ocorreu no oitavo dia de pós-operatório (DPO) e apresentava necrose parcial de retalho.

No 18º DPO foi suspensa a antibioticoterapia e recebeu alta hospitalar (Figura 1 de A à H).

 


Figura 1 - Lesão Grave de Partes Moles Decorrente de Acidente Motociclístico.

 

DISCUSSÃO

A ruptura da parede abdominal não é difícil de se diagnosticar, entretanto, o seu tratamento pode, por vezes, ser complexo.1 O desafio maior é a reconstrução cirúrgica da lesão, especialmente se existe indicação de exploração da cavidade abdominal e tratamento de lesões concomitantes.

Neste caso, a ocorrência de lesão associada em outras vísceras tornou mais difícil a decisão terapêutica, já que a laparotomia estava indicada. A via de acesso à cavidade deveria ser ampla. A laparotomia mediana (usual para o trauma) poderia ser causa de desvascularização da única porção íntegra da pele e determinar a perda de toda a camada cutânea da parede abdominal anterior (Figura 1). O tipo da ferida já expunha praticamente toda a parede abdominal e vísceras, além do defeito da parede.

A dissecção e rebatimento da pele e subcutâneo até atingir a linha média e permitir a laparotomia mediana com amplo acesso à cavidade preservou a base do "retalho de pele", mantendo a sua vascularização.

Vários mecanismos de trauma podem levar à lesão, como nesta descrição, como observado em: hérnia por cinto de segurança; acidentes com bicicleta, motocicleta, automóvel; atropelamento, ferimentos de guerra, esmagamento, cisalhamento com aumento da pressão intra-abdominal.1,3-8 O aumento da pressão intra-abdominal se relaciona mais frequentemente à lesão diafragmática .4

O mecanismo tangencial de desaceleração parece ser essencial para esse tipo de lesão, entretanto, essa ocorrência parece rara acima do umbigo, talvez devido à força da aponeurose posterior do reto abdominal, o que não ocorre abaixo da linha arqueada.3

A tatuagem traumática por cinto de segurança ou a palpação de rompimento da parede abdominal podem estar relacionadas à "síndrome do cinto de segurança" e indicam hérnia da parede ou, mais comumente, lesão intracavitária associada. As lesões frequentemente associadas à "síndrome do cinto de segurança" são as de cólon, coluna, medula e parede abdominal.9,10

O diagnóstico de lesões associadas pode ser difícil se não houver ruptura traumática de toda espessura da parede, como neste relato.1

Os exames de imagem ajudam muito no caso de trauma abdominal contuso, entretanto, quando há evisceração eles deixam de ser úteis, pois a laparotomia é compulsória. A tomografia é útil para diferenciar hematoma de ruptura muscular da parede, além de avaliar outras lesões.11,12

O tratamento da ruptura da parede abdominal deve ser realizado imediatamente, assim como neste caso, sendo a laparotomia mandatória, sendo recomendada como via de acesso a laparotomia mediana. Sua taxa de sucesso, entretanto, é baixa em relação à correção da hérnia. A prótese também foi usada, mas somente nos casos sem contaminação. O uso da tela foi possível, neste caso, pela inexistência de lesão em víscera oca. O reparo da hérnia deve ser feito diante de ausência de instabilidade ou quando todas as lesões em vísceras ocas já tenham sido tratadas, conforme aqui realizado. O melhor material protético a ser utilizado ainda é motivo de controvérsias.12,13 Neste caso, a tela de marlex® usada o foi em função de disponibilidade.

Não existem grandes séries com casos semelhantes e estudos comparativos não são possíveis no momento. Há de se ter, por outro lado, a intenção de reproduzir a quantidade dessas lesões em acidente motociclístico, trazendo subsídios à criação de legislação específica, visando à prevenção de ocorrência de tamanha violência.

 

REFERENCIAS

1. Brenneman FD, Boulanger BR, Antonyshyn O. Surgical management of abdominal wall disruption after blunt trauma. J Trauma. 1995 Sept. 39(3):539-44.

2. Damschen DD, Landercasper J, Cogbill TH, Stolee RT. Acute traumatic abdominal hernia: Case reports. J Trauma. 1994 Feb; 36(2):273-6.

3. Gill IS, Toursarkissian B, Johnson SB, Kearney PA. Traumatic ventral abdominal hernia associated with small bowel gangrene: Case report. J Trauma. 1993 Jul; 35(1):145-7.

4. Wood RJ, Ney AL, Bubrick MP. Traumatic abdominal hernia: a case report and review of the literature. Am Surg. 1988 Nov; 54(11):648-51.

5. Hurwitt ES, Silver CE. Seat belt hernia. JAMA. 1965 Nov 15; 194(7):829-31.

6. Dimyan W, Robb J, MacKay C. Handlebar hernia. J Trauma. 1980;20:812-3.

7. Dubois PM, Freeman JB. Traumatic abdominal wall hernia. J Trauma. 1981;21:72-4.

8. Kaude J. Traumatic rupture of the abdominal wall with subcutaneous herniation of the transverse colon and perforation of the small bowel. Br J Radiol. 1966 Nov; 39:950-1.

9. Asbun HJ, Irani H, Roe EJ, Bloch JH. Intra-abdominal seatbelt injury. J Trauma. 1990 Feb; 30(2):189-93.

10. Appleby JP, Nagy AG. Abdominal injuries associated with the use of seatbelts. Am J Surg. 1989 May; 157(5):457-8.

11. Malangoni MA, Condon RE. Traumatic abdominal wall hernia. J Trauma 1983 Apr; 23(4):356-7.

12. Jenkins SD, Klamer TW, Parteka JJ, Condon RE. A comparison of prosthetic materials used to repair abdominal wall defects. Surgery. 1983 Aug;94(2):392-8.

13. Brown GL, Richardson JD, Malangoni MA, Tobin GR, Ackerman D, Polk HC Jr. Comparison of prosthetic materials for abdominal wall reconstruction in the presence of contamination and infection. Ann Surg. 1985 Jun; 201(6):705-11.