RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 19. 3

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Artigo Original

Experiência do Hospital João XXIII no tratamento não-operatório de vísceras abdominais maciças

Hospital John XXIII's experience in Non- surgical treatment of solid abdominal visceras

Domingos André Fernandes Drumond1; Sizenando Vieira Starling2; Mario Pastore Neto2

1. Chefe do Serviço de Cirurgia Geral e do Trauma do Hospital João XXIII. FHEMIG - Belo Horizonte/MG
2. Cirurgião do Trauma do Hospital João XXIII. FHEMIG - Belo Horizonte/MG

Recebido em: 17/08/2009
Aprovado em: 10/09/2009

Resumo

O tratamento não-operatório (TNO) de pacientes traumatológicos hemodinamicamente estáveis passou a ser a conduta terapêutica mais adequada nos centros de trauma, com altos índices de sucesso e baixas taxas de complicações. Os fatores determinantes para essa conduta foram o uso de tomografia computadorizada e a organização de centros com infraestrutura adequada para o monitoramento desses pacientes. As falhas do TNO são poucas e o seu sucesso é a regra em mais de 90% das vezes. Outro fator responsável pelo sucesso do TNO é a adoção de medidas minimamente invasivas, como a angiografia e a colangiopancreatografia retrógrada endoscópica. Este artigo relata experiência do Hospital João XXIII, em Belo Horizonte, com o TNO entre novembro de 2004 e dezembro 2008.

Palavras-chave: Ferimentos e Lesões; Traumatologia; Rim/Lesões; Fígado/Lesões; Baço/Lesões; Vísceras/Lesões.

 

INTRODUÇÃO

O tratamento do trauma sobre as vísceras abdominais maciças, especialmente daqueles que se comportam como contusos, teve a sua rotina modificada nas últimas décadas. O tratamento não-operatório (TNO) passou a ser realizado como de primeira escolha nos traumas renal, hepático e esplênico dos pacientes estáveis, passíveis de submissão ao estudo tomográfico.1,2,3 A abordagem do trauma renal já era feito conservadoramente há várias décadas, com acúmulo significativo de evidência que permitiu realizar conduta semelhante diante de lesões de outras vísceras, como fígado e baço.1 O rim, por sua localização retroperitoneal, possibilitou esse tipo de abordagem por apresentar sangramento contido e cicatrização favorecida pela sua rica vascularização.4

A possibilidade do tratamento não-invasivo, não-operatório do trauma deveu-se, em parte, ao advento da tomografia computadorizada (TC), que permitiu melhor entendimento da cinemática do traumatismo e a classificação das lesões associadas.4,5, 6 A angiografia representou outro avanço para o TNO, apesar de ser método invasivo, pela possibilidade de estabelecer o diagnóstico de sangramento ativo e, simultaneamente, administrar a terapêutica, ao permitir embolizar as lesões arteriais, evitandose laparotomias desnecessárias.

A TC deve ser realizada em todos os pacientes estáveis nos quais a ultrassonografia demonstrou líquido livre na cavidade. Pode ser também utilizada naqueles indivíduos nos quais o exame físico não possui boa confiabilidade, como se verifica nos traumas crânio-encefálicos, raquimedulares e da pelve e na associação com o uso de drogas lícitas ou ilícitas, desde que haja estabilidade hemodinâmica.5,7

O TNO não é possível na ausência de TC. A sua capacidade em definir a existência de lesões associadas e de sangramento ativo (fuga de contraste), além da extensão da lesão, é fator indispensável na condução conservadora no tratamento de vísceras parenquimatosas.

O tratamento cirúrgico é realizado com base nos achados da TC e nas manifestações clínicas do paciente. A necessidade de transfusões, a quantidade de líquido livre na cavidade, a extensão e a constatação de lesões associadas e a experiência do cirurgião são fatores determinantes para optar entre TNO e cirúrgico convencional.

O TNO tem sido, mais recentemente, expandido para pacientes que apresentam lesões parenquimatosas, com altos índices de sucesso.

No Hospital de Pronto-Socorro João XXIII da Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (FHEMIG), que é um centro de trauma em Belo Horizonte, o TNO tem sido a regra para lesões de vísceras maciças, com índices satisfatórios de sucesso. Esse hospital conta com unidade denominada Sala de Apoio ao Traumatizado (SAT), onde são acompanhados os pacientes submetidos a TNO.

 

CASUÍSTICA E MÉTODOS

Foram estudados todos os pacientes submetidos a TNO de vísceras maciças, vítimas de trauma abdominal contuso, sem lesões associadas que demandassem tratamento cirúrgico, que não fossem conduzidos em outras clínicas ou que não fossem submetidos a outros procedimentos com anestesia geral.

Os pacientes foram acompanhados na SAT e em outros locais, como no Centro de Tratamento Intensivo (CTI) e em Sala de Observação Pediátrica.

Os pacientes analisados representaram o total de 693, distribuídos, respectivamente, em 138, 270 e 285 traumas renal, hepático e esplênico, no período compreendido entre novembro de 2004 e dezembro de 2008.

Todos os pacientes foram admitidos com estabilidade hemodinâmica ou a adquiriram rapidamente com reposição volêmica ou de hemácias (limitadas a duas unidades).

Foram excluídos deste trabalho os pacientes com traumatismo crânio-encefálico classificados na escala de coma de Glasgow (ECG) com valor inferior a 13.

A TC foi realizada em todos os pacientes como método propedêutico e classificatório, além de ser repetida em caso de mudança clínica ou de controle para o acompanhamento da lesão.

As lesões com vísceras concomitantes foram agrupadas no grupo em que havia a víscera mais lesada. O paciente foi abordado como TNO hepática quando, por exemplo, havia a concomitância de lesão hepática, renal e esplênica e o fígado era a víscera com maior lesão. Foram realizadas TCs de controle de acordo com a lesão esplênica grau III e IV após 10 dias e com dois meses; lesão hepática grau IV e V entre sete e 10 dias; e com dois meses.

A liberação para prática esportiva foi dada após um mês de completa recuperação da víscera, pelo controle pela TC.

Foram consideradas falhas do TNO a necessidade de utilização de métodos invasivos (cirurgia ou arteriografia) para interromper o sangramento e a ausência de diagnóstico de lesão intra-abdominal cirúrgica. A necessidade de intervenção cirúrgica foi adotada em situações decorrentes de complicações inerentes à gravidade da lesão propriamente dita.

A falha devida a sangramento associou-se à repercussão clínica ou à queda progressiva da hemoglobina quando realizado método de imagem e este revelava aumento do líquido livre ou outro sinal de persistência de sangramento (fuga de contraste, pseudoaneurisma, etc.).

 

RESULTADOS

Os pacientes estudados tiveram distribuição nos anos de 2004 até 2008, conforme a Tabela 1.

 

 

A ressecção total do órgão foi realizada nos casos em que a lesão já era extensa pela TC.

A taxa geral de falha para as três vísceras foi de 0,054%, sendo estratificada para rim, fígado e baço, respectivamente, em 0,065; 0,04; e 0,063% (Tabela 2).

 

 

Nos pacientes submetidos ao TNO de rim, nove foram classificados como falha de TNO (Tabela 3). Todas as falhas foram submetidas à nefrectomia. Não ocorreram óbitos nesses pacientes.

 

 

Nos pacientes submetidos a TNO do fígado ocorreram 11 falhas (Tabela 4). Eles foram tratados na falha com cirurgia ou embolização da artéria hepática direita. Os óbitos foram constatados em cinco deles. A morte de um paciente deveu-se à complicação relativa a tórax instável, sem falha de TNO. A persistência de sangramento determinou sobre três indivíduos a necessidade de cirurgia com menos de 72 horas de trauma, sendo realizado tamponamento e deixados em laparostomia (um deles tinha lesão de cava retrohepática logo acima da confluência das renais).

 

 

Em um paciente submetido ao TNO, foi identificada lesão despercebida de intestino delgado, prontamente reconhecida e tratada sem complicações pós-operatórias. O fígado encontrava-se sem sangramento, sendo desnecessária a realização de procedimentos nessa víscera. Em um paciente foi verificada lesão renal concomitante, evoluindo bem com TNO para as duas vísceras.

Os traumas esplênicos com TNO foram 285, com 18 falhas e três óbitos (Tabela 5). A falha se deveu à persistência do sangramento (13 com instabilidade hemodinâmica e cinco com queda da hemoglobina). A falha foi abordada em 16 e em dois pacientes com esplenectomia e embolização da artéria esplênica, respectivamente. O óbito ocorreu em dois pacientes devido à síndrome de angústia respiratória do adulto por trauma torácico, que não foram submetidos à cirurgia. O óbito ocorreu em um paciente após falha do TNO em que prevaleceu hipertensão porta e esplenectomia, 30 dias após a cirurgia de IMOS.

 

 

A lesão em vísceras concomitantemente ocorreu em três pacientes, sendo em um hepática e renal, em outro renal e no último hepática. Todos evoluíram satisfatoriamente com TNO (Tabela 5).

Alguns pacientes não foram acompanhados na SAT, totalizando 32, dos quais 20, quatro e oito eram portadores de trauma hepático, renal e esplênico, respectivamente. Em dois houve falha do TNO e eles foram operados, o que perfaz 0,05% das falhas, não podendo ser responsabilizada pelo acompanhamento em outro setor.

As complicações observadas consequentes ao TNO foram, além das falhas já descritas, as seguintes: a) fígado: três pacientes desenvolveram síndrome de compartimento, necessitando de toracocentese; um apresentou bilioma, sendo tratado com punção guiada por ultrassom; oito desenvolveram cistos hepáticos pós-traumáticos, com regressão espontânea em quatro e em dois, em seis e 12 meses, respectivamente. Estão em acompanhamento dois casos; b) baço: 20 pacientes tiveram cisto esplênico com diâmetro variando entre 1 e 3 cm. Houve regressão em 10 casos até 10 meses após o trauma. Estão em acompanhamento dois casos e em oito não houve diminuição de seu tamanho em até seis meses de acompanhamento; c) rim: foram identificados quatro pacientes com cisto renal pós-traumático. Verificou-se o seu desaparecimento em três casos no máximo em 12 meses, sendo que em um deles permanece a lesão, continuando em acompanhamento. A embolização foi utilizada em sete pacientes, sendo dois para o trauma hepático, dois para o esplênico e três para o renal.

 

CONCLUSÕES

A aplicação do TNO se revelou eficiente no Hospital João XXIII na abordagem de vísceras abdominais maciças, com taxas mais baixas do que as apresentadas na literatura, assim como menos complicações. A permanência do paciente em ambiente específico para o TNO é desejável e reconhecidamente facilita o seu acompanhamento, inclusive por um coordenador, que acrescenta segurança e facilita o reconhecimento mais precoce do insucesso e das complicações.

A maior complicação observada foi a falha do TNO, com indicação de laparotomia. Esses números são baixos. Mesmo que fossem altos, levando-se em consideração que antes do advento do TNO todos os pacientes eram operados, esses números, ainda assim, seriam satisfatórios.

A arteriografia e embolização do vaso lesado são adjuvantes importantes do TNO. São realizadas, habitualmente, em paciente com condições hemodinâmicas estáveis, o que permite que ele seja deslocado para centros de hemodinâmicas situados em outras instituições.

 

REFERÊNCIAS

1. Pereira Jr GA, Carvalho JB, Prado Neto GS, Guedes JR.Tratamento não operatório do trauma de vísceras abdominais parenquimatosas. Medicina, Ribeirão Preto. 2007;40(4):538-50.

2. Velmahos GC, Toutouzas KG, Radin R, Chan L, Demetriades D. Nonoperative treatment of blunt injury to solid abdominal organs. Arch Surg. 2003;138:844-51.

3. American College of Surgeons.ACS. Comittee on Trauma.Advanced Trauma Life Support. Instructor manual. 7th ed. Chicago:ACS; 2004.

4. Demetriades D, Hadjizacharia P, Constantinou C, Brown C, Inaba K, Rhee P, Salim A. Selective nonoperative management of penetrating abdominal solid organ injuries.Ann Surg. 2006;244:620-8.

5. Wolfman NT, Bechtold RE, Scharling ES, Meredith JW. Blunt upper abdominal trauma: evaluation by CT. Am J Roentgenol. 1992;158:493-501.

6. Moore EE, Cogbill TH, Jurkovich GJ, Shackford SR, Malangoni MA, Champion HR. Organ injury scaling: spleen and liver (1994 revision). J Trauma. 1995;38:323-4.

7. Moore EE, Shackford SR, Pachter HL, McAninch JW, Browner BD, Champion HR, et al. Organ injury scaling: spleen, liver and kidney. J Trauma. 1989;29:1664-6.