RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 19. 3

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Artigo Original

Sistema de informação em saúde e atuação do profissional médico

Health information system and medical professional performance

Miriam Monteiro de Castro Graciano1; Érika Westin Araújo2; Denismar Alves Nogueira3

1. Médica. Doutora em Ciência pela Faculdade de Medicina da USP [capital]. Professora da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade José do Rosário Velano - UNIFENAS/MG
2. Bacharel em Ciências da Computação. Especialista em Saúde Pública e Gestão em Saúde pela UNIFENAS. Funcionária da Gerência Regional de Saúde de Alfenas/MG
3. Zootecnista. Doutor em Estatística e Experimentação pela UFLA. Professor Adjunto do Departamento de Ciências Exatas da Universidade Federal de Alfenas, UNIFAL/MG

Endereço para correspondência

Prof.ª Dr.ª Miriam Monteiro de Castro Graciano
Rod. MG 179 km 0 Campus Universitário - Sala 601
Alfenas - MG CEP: 37130-000
E-mail: miriam.graciano@unifenas.br, miriangraciano@alfenas.psi.br

Recebido em: 29/08/2008
Aprovado em: 22/07/2009
Apoio FAPEMIG (Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais); DECIT/MS (Departamento de Ciência Tecnologia e Inovação em Saúde do Ministério da Saúde); SES/MG (Secretaria Estadual de Saúde de Minas Gerais)

Instituição Universidade José do Rosário Velano - UNIFENAS

Resumo

OBJETIVOS: avaliar e analisar criticamente a qualidade da informação em saúde e o papel de instituições e profissionais sobre este tema.
METODOLOGIA: estudo ecológico exploratório a partir de dados secundários do SIM e SINASC. A análise frequentista foi realizada por meio dos programas R e TabWin.
RESULTADOS: ao analisar o índice de preenchimento de campos obrigatórios das declarações de óbito, detectou-se que em campos a serem obrigatoriamente preenchidos, em caso de óbitos infantis, faltavam 30% ou mais de informações. O manuseio dos documentos originais permitiu constatar mais de um tipo de caneta e letra. O índice médio de falta de preenchimento de declarações de nascidos vivos foi de 1% em Alfenas e 0,28% na Regional de Saúde.
CONCLUSÃO: a mortalidade perinatal é importante indicador de saúde, que reflete diretamente a qualidade da assistência ao parto e pós-parto. Embora desde 1976 se tenha instituído um modelo único de declaração de óbito, seu preenchimento continua apresentando inúmeros problemas, entre eles a falta de registro em campos obrigatórios, o que inviabiliza correto diagnóstico situacional. A má qualidade da informação gerada por documentos exclusivamente de responsabilidade médica indica que o atestado de óbito é visto apenas como uma burocracia a mais e não como fonte geradora de dados fundamentais para o planejamento e avaliação de políticas públicas de saúde. Por isso, é necessário e urgente rediscutir a atuação do profissional médico, instituições formadoras e entidades de classe.

Palavras-chave: Atestado de Óbito; Sistemas de Informação; Avaliação; Informática Médica; Mortalidade Perinatal; Produtos e Serviços de Informação.

 

INTRODUÇÃO

O médico deve tomar para si o dever de estabelecer diagnósticos de doenças em pacientes individuais, mas também propiciar adequado diagnóstico de saúde de uma população. O diagnóstico de saúde constitui-se em ato médico fundamental, subsidiando o processo de tomada de decisão para a formulação e avaliação de políticas públicas, planos e programas de saúde.

Os Sistemas de Informação em Saúde foram criados com este objetivo, isto é, permitir a adequada formulação de diagnósticos de saúde. Destacam-se aqui, em função do objeto de estudo, o Sistema de Informação de Nascidos Vivos (SINASC) e o Sistema de Informação de Mortalidade (SIM).

O SINASC, implantado no Brasil em 1990, que tem a Declaração de Nascido Vivo (DN) como documento padronizado de coleta de dados, fornece informações sobre as características da mãe, da gestação, do parto e do recém-nascido.1

O SIM, por sua vez, foi instalado no Brasil em 1975. As suas informações procedem da Declaração de Óbito (DO), que é, ao contrário das DNs, de inteira responsabilidade médica. O seu preenchimento poderá ser feito por leigos apenas em locais onde não há médico.2 Implantado devido à necessidade de conhecimento real sobre os óbitos no Brasil, apresenta, até os dias atuais, dificuldades de preenchimento e qualificação das informações geradas a partir dele.3

É com base nos dados provenientes desses dois sistemas de informação que valiosos indicadores de saúde materno-infantil são construídos, entre eles o coeficiente de mortalidade infantil (óbitos em menores de um ano por 1.000 nascidos vivos) e seus diversos componentes.

A mortalidade neonatal (óbito até o 27º dia de vida) e pós-neonatal (óbitos na idade de 28 a 364 dias), a mortalidade neonatal precoce (óbitos na idade de zero a seis dias) e neonatal tardio (óbitos na idade de sete a 27 dias) constituem subdivisões fundamentais desses registros, uma vez que na mortalidade neonatal há predomínio de causas relacionadas à assistência pré-natal, ao parto e ao puerpério, ao passo que na mortalidade pós-neonatal predominam causas oriundas do choque da criança com o meio ambiente.4

O coeficiente de natimortalidade (óbitos fetais), assim como o de mortalidade perinatal, são indicadores que também devem ser estudados. A mortalidade perinatal inclui óbitos fetais com 22 semanas completas de gestação até o período neonatal precoce, ou seja, óbitos de zero a seis dias de vida.² Ele foi proposto na tentativa de correção do erro de classificação entre nascido vivo e natimorto, considerado como clássico problema para a compreensão da mortalidade infantil, pois pode sub ou superestimar a mortalidade fetal ou a mortalidade neonatal precoce.5

A Organização Mundial de Saúde definiu, em 1950, com o objetivo de padronizar conceitos e possibilitar a comparação de dados nacionais como internacionais, que nascido vivo é todo e qualquer concepto apresentando sinal de vida tal como contração muscular voluntária, respiração, batimentos cardíacos ou pulsação de cordão, esteja ou não desprendida a placenta.6

Apesar de mais de meio século de estabelecimento dessa distinção, parece haver ainda confusão entre o que é ou não uma criança nascida viva. Em acréscimo, a confusão entre natimorto (óbito a partir da 22ª semana de gestação ou feto com 500 g ou mais) e aborto (com menos de 22 semanas de gestação ou menos de 500 g ao nascer) faz com que muitos óbitos fetais deixem de ser registrados, uma vez que o médico o considera caso de abortamento e não de natimortalidade.8

Por outro lado, a utilização de diferentes critérios para a classificação da morte limita ainda mais os estudos sobre a mortalidade perinatal no Brasil.9 Comparações temporais e espaciais, por exemplo, são limitadas, uma vez que as revisões anteriores ao CID-10 adotavam o critério de 28 e não de 22 semanas de gestação, como limite inferior do período perinatal.2

O descaso com o preenchimento das DOs representa mais um fator complicador. O registro da duração da gestação, por exemplo, dado frequentemente omitido na DO, se cuidadosamente registrado, permitiria a definição precisa do período perinatal.

Essa gama de fatores mencionada prejudica a adoção de medidas específicas para a redução da mortalidade perinatal. Entretanto, foi com a adoção de políticas públicas adequadas para a proteção da infância que a mortalidade infantil, a partir da década de 1980, começou a diminuir de forma sistemática no Brasil, basicamente em função da queda no componente pós-neonatal.10 Consequentemente, a partir dos anos 1990, as mortalidades neonatal e fetal passaram a ser os principais componentes dos óbitos infantis no Brasil e desde então vêm mantendo-se com tendência à estabilidade em níveis elevados.11 Em 2004, em todas as regiões do país as afecções perinatais constituíram a primeira causa de morte, representando mais de 53% dos óbitos infantis.1 Agrava a situação o fato da mortalidade perinatal não se comportar de modo homogêneo no país, observando-se disparidades regionais, fruto das grandes desigualdades sociais.12,13

A mortalidade neonatal precoce tem apresentado maior diminuição quando comparada à mortalidade fetal (natimortalidade), mas ainda assim não na mesma intensidade que nos países desenvolvidos.14 É também fato que cerca de 40% dos óbitos neonatais precoces, no Brasil, ocorrem no primeiro dia de vida, com número considerável nas primeiras horas de vida, indicando estreita relação entre estes óbitos e a assistência à saúde nas maternidades.15

Esta investigação foi proposta mediante este quadro nosológico, a existência de sub-registro dos eventos vitais, erros no preenchimento da DO, falhas de cobertura do sistema e perdas na transmissão dos dados do SIM/MS - graves problemas a serem enfrentados pela saúde pública brasileira.

Ademais, tendo-se em mente que o médico é o responsável único pelo preenchimento da DO e que por isso a ele pode e deve se imputar a falta de fidedignidade dos dados de mortalidade, faz-se necessária também a reflexão sobre a formação e atuação que o conduza ao reconhecimento da importância do diagnóstico que ele não tem permitido estabelecer.

 

MATERIAIS E MÉTODOS

Para a realização deste trabalho, optou-se pelo estudo ecológico exploratório16 realizado a partir de dados provenientes do SIM e SINASC, disponíveis na Divisão de Vigilância Epidemiológica da Secretaria Municipal de Saúde de Alfenas (DVESMS) e na Gerência Regional de Saúde de Alfenas (GRS). No primeiro caso, o dados foram tabulados e analisados por meio do software R e no segundo do software TabWin.

A população constituiu de todos os óbitos fetais, de crianças com até seis dias de vida e de todos os nascidos vivos residentes em Alfenas e nos 26 municípios pertencentes à GRS de Alfenas. A série estudada foi o período compreendido entre janeiro de 2000 e dezembro de 2005.

Após recuperação dos dados da DVESMS e da GRS de Alfenas, calcularam-se a proporção de eventos de interesse (nascidos vivos, óbitos fetais e neonatais precoces) sem informação para as variáveis selecionadas, ou seja, as variáveis não preenchidas somadas àquelas em que havia o registro "ignorado". Para efeito deste estudo, foram englobados nos percentuais de "ausência de informação" tanto os casos em que o campo da variável não foi preenchido como aqueles em que foi preenchido como "ignorado". A inclusão do código nove (ignorado) tem sido recomendada, uma vez demonstrado que a informação classificada como "ignorada" corresponde, em sua maioria, a campos sem informação, interpretados pelo digitador como ignorados, e não à informação desconhecida por parte do informante.17

Em relação à classificação do nível de preenchimento de instrumentos de informação em saúde, adotou-se o critério utilizado por Almeida et al.18, que consideram "bom" um grau de ausência de informação inferior a 10%; "regular" quando esse índice se encontrar entre 10 e 29%; e "precário" quando a ausência de informação for igual ou superior a 30%. Este critério classificatório é, além de atual, recorrente por mais de duas décadas na literatura.19,20

A seleção dos campos a serem obrigatoriamente preenchidos, entretanto, não seguiu a classificação convencional utilizada para crítica e correção dos dados, pois apenas os campos "tipo do óbito" e "ano do óbito" são considerados indispensáveis. Sendo assim, sua ausência inviabiliza a entrada dos dados no sistema e por isso são sempre preenchidos. Por outro lado, apenas os campos "sexo", "idade", "município de ocorrência e de residência", "causa básica" e "tipo de violência" são considerados essenciais para críticas e correções.21 Ou seja, o critério oficialmente utilizado trata todos os campos de preenchimento exclusivos para óbitos fetais e em crianças menores de um ano (Bloco V da DO) como variáveis secundárias, já que não se espera que esses campos sejam preenchidos em casos de óbitos ocorridos a partir do primeiro ano de vida.

Desta forma, tomou-se em conta, para efeito de análise crítica do SIM e SINASC de Alfenas e região, o índice de ausência de informação em campos cujo preenchimento é de responsabilidade de profissionais de saúde e que deveriam ser considerados fundamentais, seja para identificação e localização do caso, seja para o correto diagnóstico situacional da saúde infantil.

Após o cálculo e classificação do índice de ausência de informação desses campos, foi realizado estudo de série para análise de tendências.

Ao final, fez-se a comparação entre os percentuais de ausência de informação nesses dois instrumentos (DO e DN) e reflexão sobre os resultados encontrados.

 

RESULTADOS

Para melhor visualização e entendimento desta questão, procurou-se agrupar índices de ausência de informação de variáveis em atestados de óbitos em função da natureza e importância da informação.

Ao se tomarem os campos considerados obrigatórios nos casos de óbitos perinatais sem informação no total de DOs do município e região em estudo, detectou-se baixo número de variáveis com 100% de preenchimento. Nestes casos, tratava-se de variáveis essenciais19, isto é, campos de preenchimento que se não completados inviabilizam a consolidação dos dados.

Percebeu-se que os índices de ausência de informação nos Blocos 2 e 3 das DOs de óbitos fetais e neonatais precoce, no município de Alfenas e região, referentes à identificação e localização do caso, apresentam índice bom ou regular de preenchimento, exceto a variável "bairro de residência", que tem índice precário de preenchimento (Tabela 1).

 

 

Em contrapartida, nenhuma das variáveis exclusivas para óbitos em menores de um ano, variáveis constantes no Bloco 5, apresenta bom índice de preenchimento, sendo que metade delas, no caso de óbitos fetais, e quase todas, no caso de óbitos neonatais precoce, têm índice precário de preenchimento (Tabela 2).

 

 

Ao comparar os campos pertinentes ao Bloco 5 das DOs de natimortos e crianças mortas entre zero e seis dias de vida, percebe-se menor grau de ausência de informação entre as declarações de óbitos fetais do que entre as de óbitos neonatais precoces, resultado similar ao encontrado por Almeida et al.17

Por outro lado, a variável "morte em relação ao parto", de extrema importância para a definição de casos, além de apresentar grau significativo de ausência de informação, particularmente no caso dos óbitos neonatais precoces, possui inconsistência quando comparada às informações do campo 7 (tipo de óbito).

No município de Alfenas, 23,53% dos óbitos neonatais precoces foram registrados como anteriores ao parto e traziam no local correspondente ao nome do falecido o termo "natimorto".

O mesmo problema foi identificado nos óbitos fetais. Embora o grau de não-preenchimento da variável "morte com relação ao parto", nos óbitos fetais, possa ser considerado "regular", em 1,72% delas, na regional de Alfenas, teve a morte registrada como posterior ao parto.

Por outro lado, como quase todas essas variáveis encontram-se também presentes nas DNs, poder-se-ia recuperá-las por meio do cruzamento de dados do SIM com o SINASC, não fosse também tão alto o grau de não-preenchimento da variável "número da DN" nos atestados de óbitos neonatais (82,35 e 60,40%).

Por fim, ao analisar os campos referentes ao médico que assina o atestado de óbito, pôde-se constatar que o Bloco 7 apresenta índices de preenchimento entre bom e regular, exceto em relação à variável "meio de contato com o médico que assina o atesto" (Tabela 3).

 

 

Embora os campos referentes ao CRM do médico e data do atestado apresentem bom índice de preenchimento, a ausência destes dados, ainda que em baixa porcentagem dos casos, permite levantar a hipótese de descuido para com esses documentos.

Detectou-se, por outro lado, ao analisar a série de índices de não-preenchimento de DOs ao longo dos anos, tendência à melhora na qualidade da informação em saúde no município de Alfenas, particularmente quanto a algumas variáveis exclusivas para óbitos fetais e em menores de um ano (Bloco 5 da DO). Há tendência à queda, de forma estatisticamente significativa, no número de DOs com ausência de informação nos campos "idade da mãe" (p = 0,01), "número de filhos vivos" (p = 0,03), "duração da gestação em semana" (p = 0,012), "tipo de gravidez" (p = 0,0042), "tipo de parto" (p = 0,0013), "morte com relação ao parto" (p = 0,029) e "peso ao nascer" (p = 0,0105).

O mesmo não ocorre com as principais variáveis sociais, pois, no município de Alfenas, as variáveis "escolaridade" e "ocupação da mãe", bem como "número de filhos mortos" não apresentaram melhora estatisticamente significativa de 2000 a 2005. A oscilação ocorrida no seu grau de preenchimento foi aleatória, assim como também foi aleatória a melhora, em alguns momentos, no preenchimento de todas as variáveis estudadas na Regional de Saúde.

Não obstante essa melhora observada no preenchimento de campos exclusivos de DOs fetais e em menores de um ano no município de Alfenas, ainda é elevado o número de campos obrigatórios cujo grau de preenchimento pode ser considerado precário.

Em contraposição, o percentual de ausência de informação nas declarações de nascidos vivos é mínimo. As variáveis com mais alto índice de ausência de informação no município de Alfenas foi "estado civil da mãe", com 1,34%, e "escolaridade da mãe", com 1,23%. Na Regional de Saúde, a variável "escolaridade da mãe", com índice de 2,16%, foi a que apresentou o mais alto índice de ausência de informação, resultado também semelhante ao encontrado por Almeida et al.17 Para todas as variáveis analisadas, tanto no município quanto na Regional de Saúde, o preenchimento de DNs foi considerado bom. Nenhuma variável de interesse clínico-epidemiológico analisada a partir do SIM teve índice de preenchimento tão bom quando as variáveis de mais baixo índice de preenchimento nas DNs.

 

DISCUSSÃO

Pode-se considerar o SIM de Alfenas e região uma fonte não confiável de informação para o estudo da mortalidade perinatal, particularmente se for tomada em conta que as variáveis de preenchimento exclusivo para óbitos fetais e de menores de um ano são, na maioria das vezes, não preenchidas ou preenchidas com "ignorado".

Embora exista dificuldade para localização dos casos, ela não pode ser atribuída à má qualidade da informação constante na DO, mas sim ao relato intencional de falsos endereços, por parte dos usuários dos serviços, bem como à ingerência das Secretarias Municipais de Planejamento Urbano, como foi o caso de Alfenas, no qual nomes de rua e numeração das casas passaram por diversas mudanças nos últimos anos.

Este não é o caso quando se consideram os campos de preenchimento exclusivo para óbitos fetais e em menores de um ano de idade, bem como os referentes às condições da morte. Tome-se como exemplo o registro de óbitos não-fetais ocorridos antes do parto e de natimortos após o parto. Esse conjunto de dados corrobora a hipótese de descaso ou desconhecimento às normas de preenchimento das DOs preconizadas pelo Ministério da Saúde. Ou, o que não seria menos grave, desconhecimento da definição proposta pela OMS, na década de 1950, para se diferenciar nascido vivo de natimorto (óbito fetal).

É impossível que um nascido vivo tenha morrido antes ou durante o parto, fato encontrado em 4,01 e 2,76%, respectivamente, na Regional de Saúde de Alfenas, como também é impossível que natimortos tenham vindo a falecer depois do parto.

O conjunto de dados analisados conduziu a perguntas relevantes, sobre as quais é necessário refletir. Tratar-se-á, esta situação, de sinal de distração ou negligência? Poder-se-ia levantar aqui a hipótese de ato deliberado e intencional do médico, que no afã de eximir-se de uma suposta culpa declara para o Estado e para a mãe que seu filho nasceu morto, estando ele ciente de que quando a criança nasceu ela ainda possuía vida? Desconheceriam os profissionais que assistiram a essas crianças a importância de variáveis tais como "escolaridade da mãe" e "ocupação habitual da mesma" como fatores distais de muita seriedade para o estudo da determinação social do processo saúde e doença? Fosse essa a razão, como explicar o preenchimento precário de variáveis clinicamente tão bem estabelecidas tais como "idade da mãe", "número de filhos vivos e mortos", "duração da gestação", "tipo de gravidez", "tipo de parto" e "peso ao nascer da criança"? Não percebem esses profissionais que com estas informações seria possível um adequado diagnóstico situacional do óbito infantil em nossa região e, com ele, o estabelecimento de políticas públicas prioritárias para a redução da mortalidade perinatal?

Não fosse assim, seria possível, além da recuperação dos dados perdidos, a avaliação da qualidade da informação por meio de índices de coincidência e melhor esclarecimento de fatores associados à mortalidade perinatal, uma vez que as DNs trazem informações adicionais sobre condições da gestação, parto e recém-nascido. No caso dos óbitos fetais, como o SIM é a principal fonte de informação, é impossível corrigir o problema deste modo.

Novamente os dados da pesquisa conduzem antes a perguntas do que a respostas. Primeiro, por que razões o profissional que assina um atestado de óbito não registra o número de seu CRM quando esse procedimento, tão rotineiro na atividade do médico, torna-se quase que automático? Segundo, que outra hipótese formular para explicar a ausência da data do atestado que não a de que este documento possa ter sido preenchido em outro momento que não o da ocorrência do evento?

É também relevante a disparidade das análises produzidas a partir de dados provenientes da Regional de Saúde ou do município de Alfenas. O fato de o município de Alfenas apresentar piores índices de preenchimento do que os da Regional de Saúde, tanto para óbitos fetais quanto neonatais precoces, exceto quanto às variáveis constantes na Tabela 1, leva à hipótese da qualidade daqueles dados (campos do Bloco 2 e 3 - Referentes a identificação e localização dos casos) dever-se a correções realizadas pelo pessoal técnico da Secretaria e não à atuação dedicada do médico que atesta o óbito. É mais provável e viável que o responsável técnico de um município com 75.889 habitantes faça correção em bancos de dados do que um funcionário de uma Regional com 470.176 habitantes, quando tal correção não houver sido feita no município de origem.

Como a maioria dos óbitos fetais e neonatais precoces ocorre no mesmo estabelecimento de saúde onde se dá o parto17, não se justifica a ausência de registro de dados apenas na declaração de óbito. Ademais, como os dois instrumentos de coleta de dados (DO e DN) têm o mesmo grau de complexidade, a única razão plausível para tal diferença na qualidade do dado só pode se encontrar no ato daqueles que se responsabilizam por seu preenchimento, que no caso das DOs são necessariamente os médicos. Vale mencionar que em todos os municípios da região estudada existem médicos, o que invalida a tese da falha no preenchimento dever-se à ação de leigos.

 

CONCLUSÃO

Muitos médicos responsáveis pelo preenchimento da DO não têm compreensão da importância das informações geradas por esse valioso instrumento de informação. Ao que parece, o atestado de óbito é visto apenas como uma burocracia a mais e não como fonte geradora de dados fundamentais para o planejamento e a avaliação de políticas públicas de saúde.

A despeito de generalizado desinteresse do estudante de Medicina por temas relacionados à Saúde Pública, e talvez por isso mesmo, as escolas responsáveis pela formação médica deveriam tomar para si a responsabilidade pela má qualidade dos dados encontrados na DO, uma vez que é pouca a ênfase oferecida ao tema durante a graduação. É preciso também que as instituições formadoras de recursos humanos tenham ciência de que não basta citar ou mencionar durante o curso médico, em uma ou mais disciplinas, a importância da DO. É necessário o exercício constante de seu correto preenchimento, particularmente durante estágios do ciclo profissionalizante, momento no qual à discussão de casos clínicos poder-se-ia integrar a prática sistemática de correção de preenchimento de atestados de óbitos reais.

Por outro lado, caberia aos Conselhos Regionais, Federal e Associações Médicas, além da distribuição gratuita de manuais para o correto preenchimento de DOs, discutir a possibilidade de adoção de medidas punitivas para esses profissionais negligentes. Pois, ao agir de tal modo, ele conduz a Saúde Pública a um equivocado diagnóstico de saúde, que pode acarretar a morte não de um paciente individual, mas de um coletivo de indivíduos.

 

AGRADECIMENTOS

Agradecemos à FAPEMIG (Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais), assim como ao DECIT/MS (Departamento de Ciência Tecnologia e Inovação em Saúde do Ministério da Saúde) e SES/MG (Secretaria Estadual de Saúde de Minas Gerais), pelo apoio logístico e financeiro ao projeto de pesquisa "A mortalidade fetal e neonatal precoce entre 2000 e 2004 no município de Alfenas, Minas Gerais", cujo artigo aqui apresentado traduz parte dos resultados alcançados.

 

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