RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 19. 3

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Relato de Caso

"Sinal de Lázaro": reflexo medular complexo na morte encefálica - relato de dois casos

Lazaru's sign: complex spinal reflex in brain death - report of two cases

Eric Grossi Morato1; Marco Túlio Resende2; Felipe Padovani Trivelato2; Newton Godoy Pimenta3; Felipe Bicalho Maluf4; Anelise Diniz Garcia Leão5; Tales Henrique Ulhoa6; Sebastião Natanael Gusmão7

1. Neurocirurgião do Hospital das Clínicas da UFMG. Neurocirurgião do Hospital Pronto-Socorro João XXIII - FHEMIG. Instrutor do ATLS (Advanced Trauma Life Support)
2. Neurocirurgião endovascular do Hospital das Clínicas da UFMG (HC-UFMG)
3. Neurocirurgião endovascular do Hospital das Clínicas da UFMG (HC-UFMG), Hospital Pronto-Socorro João XXIII - FHEMIG
4. Residente de Neurocirurgia do Hospital Municipal Odilon Behrens
5. Residente de Clínica Médica do Hospital Eduardo de Menezes
6. Residente de Clínica Médica do Hospital das Clínicas da UFMG
7. Professor Associado do Departamento de Cirurgia da Faculdade de Medicina da UFMG. Chefe do Serviço de Neurocirurgia do Hospital das Clínicas da UFMG (HC-UFMG)

Endereço para correspondência

Serviço de Neurocirurgia Hospital das Clínicas da UFMG
Av. Alfredo Balena, nº 110 / 10º andar
Belo Horizonte - MG CEP: 30130-100
Email: ericneuro@gmail.com

Recebido em: 28/09/2009
Aprovado em: 08/09/2009

Resumo

São relatados dois casos de pacientes com diagnóstico de morte encefálica e que apresentaram movimentos complexos dos braços (sinal de Lázaro). Todos os critérios para o diagnóstico de morte encefálica estavam presentes nesses casos. Os eletroencefalogramas mostraram-se isoelétricos. No caso 1, o sinal foi deflagrado pela movimentação passiva da cabeça; no outro, logo após o início do segundo teste de apneia. A fisiopatologia provável é discutida, acompanhada de revisão da literatura. A presença do sinal de Lázaro não exclui o diagnóstico de morte encefálica e deve ser conhecido e entendido pelos profissionais envolvidos no diagnóstico de morte encefálica e também por aqueles dos serviços de procura e transplante de órgãos.

Palavras-chave: Morte Encefálica; Morte Enfefálica/diagnóstico; Reflexo Anormal; Disreflexia Autonômica.

 

INTRODUÇÃO

A morte, na cultura ocidental, sempre foi associada à cessação das funções cardiopulmonares. A ventilação mecânica e as modernas técnicas de suporte cardíaco possibilitaram melhores cuidados aos pacientes graves. Nesse contexto, entretanto, surgiu a condição em que o encéfalo estava irremediavelmente comprometido e, mesmo assim, mantinham-se preservadas as funções vitais. O termo morte encefálica surgiu no final da década de 50.1 Foi descrita, inicialmente, como "coma depasée" por Mollaret et Goudon2, em relatos de 23 pacientes em coma, sem reflexos de tronco, com eletroencefalografia isoelétrica.2 Os critérios atuais de morte encefálica são mundialmente aceitos, sendo que, na maioria dos países, apresentam-se respaldados por leis específicas.3

A morte encefálica é definida pela completa e irreversível perda das funções do cérebro e do tronco encefálico, caracterizando condição clínica em que devem estar presentes, obrigatória e concomitantemente, o coma não-responsivo, a ausência de reflexos do tronco cerebral e a apneia.

Em inúmeros artigos e critérios de morte encefálica enfatiza-se que a existência de reflexos medulares não inviabiliza o diagnóstico de morte encefálica.4,5,6 Foram descritos em pacientes que preenchiam todos os critérios para o diagnóstico de morte encefálica: a tripla flexão dos membros superiores, sinal de Babinsky, movimento dos ombros, reflexos osteotendinosos ativos, resposta plantar em flexão, sudorese, taquicardia, ausência de necessidade de administração de aminas vasoativas, diabetes insipidus ou sua ausência.7,8 Entre os reflexos medulares conhecidos, o que desperta mais curiosidade e perplexidade é o sinal de Lázaro, em que durante o teste da apneia ou a movimentação passiva da cabeça, o paciente subitamente levanta ambos os braços e os coloca sobre o tórax, podendo ocorrer também flexão do tronco.9

São descritos dois casos de vítimas de grave injúria neurológica que preencheram os critérios de morte encefálica e apresentaram esse movimento complexo durante o exame neurológico padrão para morte encefálica. A provável fisiopatologia, frequência e forma de apresentação são discutidas. Salienta-se a importância do esclarecimento dos profissionais atuantes na assistência a pacientes neurológicos, da possibilidade do diagnóstico de morte encefálica nessas condições.

 

CASO 1

Paciente masculino, 18 anos, vítima de traumatismo crânio-encefálico (TCE) por projétil de arma de fogo (PAF), assistido pelo Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU) no local. Encontrado em Escala de Coma de Glasgow (ECG) = 4/15, com orifício de entrada do projétil em região parietal esquerda esquerda e de saída em temporal direito, sem sinais de outros traumas. As pupilas mostravam-se reativas e isocóricas (3 mm+/3 mm+), outros reflexos de tronco preservados. Foi sedado, curarizado (succinilcolina 70 mg + midazolan 15 mg) e intubado sem intercorrências. A tomografia computadorizada (TC) de crânio acusou grave injúria cerebral, com edema difuso, sangramento na trajetória do projétil associado a inúmeros fragmentos metálicos (atravessando a linha média com hemoventrículos), pneumoencéfalo nos cornos frontais dos ventrículos laterais e apagamento dos sulcos e cisternas da base cerebral (Figura 1). A TC da coluna cervical até T1 e ultrassom (US) abdominal não revelaram alterações. Não se detectou hipotensão arterial ou hipóxia durante o transporte, bem como em sua estada no hospital.

 


Figura 1 - Tomografia computadorizada do crânio.

 

Evoluiu, seis horas após, para ECG = 3/11, com pupilas midriáticas e não-reativas (7-/7-). Não recebeu drogas psicotrópicas no hospital. A temperatura axilar (tax) era de 35,4ºC, a natremia era 148 mEq/dL, a pressão arterial média de 80 mmHg e sem distúrbio metabólico grave. Foi iniciado o primeiro teste clínico para morte encefálica cerca de 20 horas após o TCE. Mostrou-se, na avaliação pela ECG = 3/15, com pupilas 5-/5-, reflexos: consensual -/-, corneano -/-, óculo cefálico ausente, vestíbulo calórico ausente bilateralmente e sem resposta ao estímulo traqueal. Não houve qualquer movimento respiratório com PCO2 = 74 mmHg.

O eletroencefalograma (EEG) evidenciou silêncio elétrico por 35 minutos em oito derivações. Durante a realização do segundo exame clínico (seis horas após o primeiro), a estimulação da dor na região supraorbitária, nas articulações têmporo-mandibulares e no esterno não ocasionou resposta (Figura 2A e 2B).

 


Figura 2 - Coma arresponsivo (Glasgow 3) tanto ao estímulo na face quanto no esterno.

 

Entretanto, durante o exame dos reflexos do tronco, que estavam todos ausentes, quando foi realizada a movimentação passiva da cabeça durante o teste do reflexo óculo-cefálico, surgiu o movimento de ambos os braços, com abdução dos ombros e repouso dos membros superiores sobre o tórax (Figura 3A, 3B e 3C). Esse movimento reflexo era também deflagrado pela flexão passiva da cabeça sobre o tórax (Figura 4A e 4B). Não houve qualquer movimento respiratório com PCO2 = 79 mmHg.

 


Figura 3 - Sinal desencadeado pela rotação lateral da cabeça para a esquerda. Intervalo de 0,4 seg entre as fotos. As setas indicam a direção da força do examinador.

 

 


Figura 4 - Sinal de Lázaro desencadeado pela flexão da cabeça. Intervalo de 0,8 seg entre as fotos. As setas indicam a direção da força do examinador.

 

 

CASO 2

Paciente feminino, 43 anos, previamente hígida, apresentou episódio inédito de crise convulsiva tônico-clônica generalizada (CCTCG) durante o banho. Não houve retorno da consciência. Foi atendida em sua residência pelo SAMU, que constatou estado de coma, ECG = 6/15 e pupilas 3+/3+. Foi intubada, sem intercorrências, recebendo succinilcolina 60 mg e midazolan 15 mg EV. Apresentou, durante o transporte, hipoxemia devido à volumosa secreção pulmonar bilateral que exteriorizava pelo tubo. Chegou ao hospital com saturação capilar de oxigênio (O2) 89% e sinais de obstrução do tubo orotraqueal. Não respondia, nesse momento, aos estímulos dolorosos e suas pupilas encontravam-se 4-/4-. Trocado o tubo orotraqueal (TOT) e instalada ventilação mecânica, houve melhora da saturação. Não apresentou hipotensão arterial. A TC de crânio mostrou grande quantidade de sangue no espaço subaracnoideo (Figura 5).

 


Figura 5 - Tomografia computadorizada do crânio.

 

Encontrava-se estável, normotensa cerca de 18 horas após a crise convulsiva, sem distúrbios metabólicos, saturação de O2 de 95% e Tax = 35,7 graus. Foi submetida ao primeiro teste clínico, que revelou ausência de reflexos de tronco, ECG = 3, ausência de incursões respiratórias, PCO2 = 66 mmHg. O EEG informou padrão isoelétrico.

Realizou-se o segundo teste 15 horas após o primeiro devido à instabilidade respiratória. Manteve-se, durante o exame, saturação de O2 = 96%, persistindo coma arresponsivo e ausência de reflexos de tronco cerebral. Foi realizado o segundo teste da apneia um minuto após a desconexão do ventilador mecânico. A saturação capilar era de 93%. A paciente apresentou, nesse momento, elevação das duas mãos em direção ao tubo endotraqueal, sem agarrá-lo, e após 30 segundos os retornou espontaneamente para a posição anatômica. Esse movimento repetiu-se por três vezes e após isso não mais foi deflagrado. Mantevese com saturação de O2 de pelo menos 90% durante todo o teste, sem apresentar incursões respiratórias, com PCO2 de 88 mmHg.

Vídeo demonstrativo disponível em: http://www.neurocirurgia.blogspot.com/

 

DISCUSSÃO

Os primeiros critérios para o diagnóstico de morte encefálica foram elaborados em 1968 por um comitê da Faculdade de Medicina da Universidade de Harvard. Eles incluíam a identificação de: coma sem resposta, ausência de movimentos e respiração, ausência de reflexos do tronco cerebral associado a EEG isoelétrico. Deveriam ser excluídas hipotermia e intoxicação medicamentosa.10

Em 1981, a Comissão Presidencial de Estudos dos Problemas Éticos em Medicina dos Estados Unidos da América (EUA) publicou o documento "Definindo a morte", que estabeleceu critérios mais específicos para o diagnóstico, incluindo a possibilidade da presença de reflexos medulares.11 Os EUA, baseados nessas recomendações, promulgaram sua lei federal para determinação da morte encefálica.3 No Brasil, a Resolução nº 1.480/98 do Conselho Federal de Medicina12 e as Leis nºs 9.434 de 199713 e 10.211 de 200114 normatizaram os critérios para o diagnóstico de morte encefálica, que, salvo pequenas diferenças, são, em essência, os mesmos em todo o mundo.

Os reflexos medulares são observados em 20 a 70% dos pacientes em morte encefálica.15-17 Em indivíduos com diagnóstico de morte encefálica diversos tipos de reflexos medulares foram descritos: resposta plantar em flexão, sinal de Babinsky, resposta de retirada em flexão, reflexos osteotendinosos, reflexo cremastérico e abdominal, mioclonia dos membros, postura em extensão dos quatro membros e sinal de Lázaro.16-18 Sua fisiopatologia é explicada pela integridade da medula cervical e/ou torácica nesses casos. A realização do exame eletrofisiológico do potencial evocado demonstrou, em vários relatos, a origem medular cervical do sinal de Lázaro.19,20 Saposnik et al.21 observaram, prospectivamente, 107 pacientes com diagnóstico de morte encefálica e constataram 119 movimentos reflexos ou espontâneos em 47 pacientes diferentes. O sinal de Lázaro foi descrito em dois desses pacientes. Nesse estudo, que durou cinco anos e oito meses, foi descrito que quanto mais longo era o tempo pós-diagnóstico de morte encefálica, maior a evidência de reflexos medulares e movimentos espontâneos. Constatou-se a presença de reflexos medulares em até 82% dos pacientes observados por 48 horas após o diagnóstico de ME.18

A ausência completa da inibição central fisiológica exercida pelo tronco encefálico e diencéfalo sobre a medula parece explicar o aumento progressivo da incidência de reflexos medulares no decorrer do tempo, a partir da ocorrência da morte encefálica.

O sinal de Lázaro foi descrito e nomeado por Ropper em 1984 em seu estudo com cinco pacientes.9 Em quatro deles, o reflexo surgiu após a interrupção da ventilação mecânica e somente em um durante o teste de apneia.9 Mandell et al.22 referiram caso semelhante em 1982, comparando esse movimento com o reflexo de Moro do recém-nascido. Turmel et al.23 foram os primeiros a relatar o sinal de Lázaro deflagrado pela movimentação passiva da cabeça. Foram reportados, até o momento, somente 21 casos com o sinal de Lázaro.

Movimentos complexos reflexos, como o sinal de Lázaro, não inviabilizam o diagnóstico da ME. É necessário estimular a disseminação desse conhecimento entre os diversos profissionais atuantes, tanto no diagnóstico de morte encefálica quanto na procura e realização de transplantes.

Intensivistas, neurocirurgiões, neurologistas, anestesiologistas, cirurgiões de transplantes, enfermeiros, fisioterapeutas, assistentes sociais, psicólogos e outros devem estar plenamente capacitados para lidar com as dúvidas, que certamente não deixarão de surgir. Cada centro hospitalar que presta assistência à pacientes neurológicos graves deve dispor de acesso permanente a banco de dados e/ou consultor-médico experiente, a fim de suprimir possíveis dúvidas e dividir responsabilidades nesses casos atípicos.

Estas simples condutas podem prevenir atrasos e falsas interpretações no diagnóstico da morte encefálica.

 

REFERÊNCIAS

1. Wijdicks EFM. The diagnosis of Brain Death. N Engl J Med. 2001;344:1215-21.

2. Mollaret P, Goulon M. Le coma dépassé (mémoire préliminaire). Rev Neurol (Paris) 1959;101:3-5.

3. Wijdicks EFM. Brain death worldwide. Neurology. 2002;58(1):20-5.

4. Diagnosis of brain death: statement issued by the honorary secretary of the Conference of Medical Royal Colleges and their Faculties in the United Kingdom on 11 October 1976. BMJ. 1976;2:1187-8.

5. Haupt WF, Rudolf J. European brain death codes: a comparison of national guidelines. J Neurol. 1999;246:432-7.

6. The Quality Standards Subcommittee of the American Academy of Neurology. Practice parameters for determining brain death in adults (summary statement). Neurology. 1995;45:1012-4.

7. Ivan LP: Spinal reflexes in cerebral death. Neurology. 1973;23:650-2.

8. Saposnik G, Bueri JA, Maurino J, Saizar R, Garretto NS. Spontaneous and reflex movements in brain death. Neurology. 2000;54:221-3.

9. Ropper AH. Unusual spontaneous movements in brain-dead patients. Neurology. 1984;34:1089-92.

10. A definition of irreversible coma: report of the Ad Hoc Committee of the Harvard Medical School to Examine the Definition of Brain Death. JAMA. 1968;205:337-40.

11. President's Commission for the Study of Ethical Problems in Medicine and Biomedical and Behavioral Research. Defining death: a report on the medical, legal and ethical issues in the determination of death. Washington, DC: Government Printing Office;1981.

12. Conselho Federal de Medicina. Resolução Nº 1480 de 8 de agosto de 1997. Critérios para a Caracterização de Morte Encefálica [Citado em 2009 jul. 15 ]. Disponível em: http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/cfm/1997/1480_1997.htm

13. Brasil. Senado Federal. Lei N.º 9.434, de 4 fev. 1997. Dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento e dá outras providências. [Citado em 2009 Jul. 15]. Disponível em: http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=145597.

14. Brasil. Senado Federal. Lei Nº 10.211, de 23 mar. 2001. Altera dispositivos da Lei nº 9.434, de 4 de fevereiro de 1997, que "dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento". [Citado em 2009 Jun. 20]. Disponível em: http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=232239.

15. Jordan JE, Dyess E, Cliett J. Unusual spontaneous movements in brain-dead patients. Neurology. 1985;35:1082. Letter.

16. Wijdicks EFM. Determining brain death in adults. Neurology. 1995;45:1003-11.

17. Jorgenson EO: Spinal man after brain death. The unilateral extension-pronation reflex of the upper limb as an indication of brain death.Aeta Neuroehir. 1973;28:259-73.

18. Christie JM, O'Lenic TD, Cane RD. Head turning in brain death. J Clin Anesth. 1996;8:141-3.

19. Marti-Fabregas J, Lopez-Navidad A, Caballero F, Otermin P. Decerebrate-like posturing with mechanical ventilation in brain death. Neurology. 2000;54:224-7.

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21. Saposnik G, Bueri JA, Maurino J, Saizar R. Spontaneous and reflex movements in 107 patients with brain death. Am J Med. 2005 Mar;118(3):311-4.

22. Mandel S, Arenas A, Scasta D: Spinal automatism in cerebral death. N Engl J Med. 1982;307:501. Letter.

23. Turmel A, Roux A, Bojanowski MW. Spinal man after the declaration of brain death. Neurosurgery. 1991 Feb;28(2):298-301