RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 19. 3

Voltar ao Sumário

Educação Médica

Ética em transplantes

Ethics in transplantations

Luiz Antônio Ferreira Paulino1; Sérgio Lopes da Costa Teixeira2

1. Médico Angiologista. Coordenador da CIHDOTT do Hospital Luxemburgo
2. Médico Cardiologista. Coordenador Metropolitano - CNCDO/MG Transplantes

Endereço para correspondência

MG Transplantes - Central de Notificação, Captação e Distribuição de Órgãos (CNCDO) Secretaria Estadual de Saúde Avenida Afonso Pena
nº 2.300 - 12º andar
B: Funcionários Belo Horizonte - MG CEP: 30130-007
www.saude.mg.gov.br/coord_mg_transplantes.htm
E-mail: dra@saude.mg.gov.br

Recebido em: 20/08/2009
Aprovado em: 28/09/2009

Resumo

Este trabalho aborda aspectos éticos da temática transplantes de órgãos relacionados ao doador e à doação; à distribuição dos órgãos; à atenção médica; às relações entre familiares de doadores e receptores; à nacionalidade e cobertura previdenciária; e aos princípios que devem reger a postura dos envolvidos no processo de transplante.

Palavras-chave: Transplantes/ética; Ética Médica; Sinais e Sintomas Respiratórios; Educação Médica.

 

INTRODUÇÃO

A ética refere-se ao balizamento da relação com o outro, considerando-se valores, tradições, conceitos e práticas do indivíduo ou comunidade. A ação contrária ao que o outro tem como referencial de certo ou errado, aceitável ou não passa a ser antiética, apesar de que a mesma ação pode não representar, para outra pessoa ou grupo de pessoas, atitude ou comportamento antiético.

O momento da ação é importante, os valores que determinam a aceitação ou não de um comportamento ou atitude são mutáveis, dinâmicos e atuais. Vários procedimentos aceitos hoje não o seriam no passado. Valores religiosos, sociais e íntimos dependem muito do local da residência, da cultura, da vivência, da inteligência e da idade do indivíduo.

As condutas e procedimentos para se desenvolver um trabalho de pesquisa em humanos devem respeitar todos os aspectos relacionados aos valores éticos no sentido amplo, que impedem a sua exposição a experimentos cujos benefícios sejam ínfimos em relação aos riscos.

Os vários tipos de transplantes - como o que ocorre intervivos - de tecidos renováveis e de órgãos, de doador cadáver ou de doador vivo não aparentado criam situações que podem suscitar diversas questões éticas. O uso de partes externas, como face e membros, trouxe novas questões que despertam discussões éticas profundas e intermináveis.

 

QUESTÕES RELACIONADAS AO DOADOR E À DOAÇÃO

No transplante de órgãos, quando o doador é cadáver, fica evidente a dualidade: o infortúnio de um é a sorte do outro.

A abordagem da família do provável doador é momento único em que se convence ou se tenta convencer os parentes a decidirem sobre o destino do corpo do seu querido. A idoneidade dos atores envolvidos no processo é fundamental para que a doação tenha êxito. Não pode pairar dúvida sobre o diagnóstico de morte encefálica.

O risco de se transferir uma doença do doador ao receptor é fato e tal situação fica mais concreta no uso de órgãos em doadores limítrofes. O próprio risco de falência do órgão doado é considerável. A responsabilidade do captador em selecionar adequadamente os doadores é evidente.

O teste de apneia, pela agressividade, só pode ser iniciado quando todos os exames demonstram a ausência de função encefálica. O diagnóstico de morte encefálica nunca poderá ser agressivo o suficiente para comprometer as chances de reversão do quadro neurológico do potencial doador.1

É fundamental que a família do doador tenha plena convicção de que todos os cuidados necessários foram tomados e todos os recursos possíveis foram acionados e que o processo evoluiu de forma desfavorável apesar de todos os esforços das equipes envolvidas. Constatada a morte cerebral e tendo sido negada a doação, a equipe médica assistente está autorizada a desligar os equipamentos de suporte ventilatório. A hora da constatação da morte encefálica é a que deve ser registrada no atestado como hora do óbito.

Questões religiosas podem assumir relevância na decisão de se efetuar ou não a doação. Às vezes a ausência da autoridade religiosa pode impedir ou dificultar a doação.

Algumas pessoas sentem mais a responsabilidade de fazer a escolha pelo outro. Na falta da manifestação anterior do provável doador, a família é quem vai decidir. Muitas famílias mostram extrema dificuldade em chegar ao consenso e, sem o consentimento de todos, não ocorre doação.

 

ASPECTOS DA DISTRIBUIÇÃO DOS ÓRGÃOS

A inclusão de paciente na lista para o transplante tem que seguir as normas definidas em lei.2,3,4 Os critérios de urgência devem ser obedecidos de forma rigorosa e toda transgressão deve ser punida com severidade.

Todos os pacientes que estão na fila de espera por um órgão vivenciam drama importante, que é compartilhado por seus familiares. Não se pode conceber a influência de parentesco ou poder econômico na decisão de se privilegiar o receptor.

A gravidade dos portadores de disfunção hepática e cardíaca cria situações frequentemente dramáticas, com forte conteúdo e apelo emocional. A imparcialidade da equipe responsável pela distribuição dos órgãos passa a ser fator essencial, inclusive na aceitação pelos familiares de evento adverso, quer a morte na fila de espera, quer o insucesso na cirurgia.

A distribuição de órgãos às vezes pode envolver dilemas éticos. Assim é que rins com elevado tempo de isquemia, doadores idosos e história clínica do doador às vezes podem influir na decisão de se transplantar ou não. A possibilidade de recusa do receptor pelo enxerto é outra questão. São conhecidos serviços em que há recusa a se submeter ao transplante pelos resultados adversos observados.

Representam contingente especial de receptores os pacientes portadores do HIV, do vírus C da hepatite e de neoplasias malignas. Suas doenças podem influir de forma significativa no resultado do transplante. Deve haver prioridade para outros casos em que o prognóstico de longo prazo seja melhor?

Não são raros os recursos judiciais interpostos por pacientes, muitas vezes de mais poder econômico, que aguardam na fila e que desejam solução mais rápida para o seu caso. Muitas vezes não há justificativa técnica para a ordem judicial e, nestes casos, deve a CNCDO regional se munir de todas as informações necessárias para efetuar a contestação.

 

ASPECTOS RELACIONADOS À ATENÇÃO MÉDICA

As equipes de cirurgia devem compreender as questões peculiares aos pacientes portadores de doenças crônicas. O transplante é um sonho; muitas vezes a expectativa que se cria é muito superior ao resultado que se pode obter. Nunca deve a equipe, sem a necessária competência, incluindo a infraestrutura para o atendimento no pós-transplante, executar o procedimento. As complicações das cirurgias são frequentes, mesmo quando as equipes são experientes. Não devem ser criadas falsas expectativas. As chances de complicações devem ser discutidas de forma franca e objetiva. O insucesso é previsto: estatisticamente ocorre numa percentagem importante. O paciente deve estar ciente disto e o médico deve agir de forma transparente. Expor aos familiares os problemas enfrentados na cirurgia e o risco de insucesso é fundamental para que não ocorram questionamentos jurídicos posteriores.

A necessidade de seguimento após a cirurgia é compromisso intransferível e só em condições excepcionais deve o paciente ser encaminhado a outro serviço. A dependência do paciente aos esquemas de imunossupressão obriga o fornecimento desses medicamentos de forma ininterrupta. A falta desses recursos determina a perda do enxerto e o risco de agravamento e mesmo a morte do paciente.

A comercialização de órgãos deve ser combatida de forma obstinada pelos médicos envolvidos nos processos de transplante, pela sordidez que o ato evidencia. A venda de órgão é procedimento abjeto e os riscos envolvidos muitas vezes são ignorados pelo doador. O paciente, no desespero em obter alívio de seu sofrimento, apela para qualquer solução. Poucas situações descortinam os dramas existenciais de forma tão crua como as que envolvem a doação de órgãos.

A pesquisa em seres humanos deve ser realizada de forma a se buscar solução provável e nunca a chance remota ou meramente fictícia. A pesquisa experimental deve seguir todos os pré-requisitos para a sua realização, com a adoção de rígidos instrumentos de supervisão. A obtenção de êxito, sucesso e pioneirismo não pode ofuscar a busca da solução para o problema de qualquer paciente. A pessoa não pode ser sacrificada de forma cruel e desonesta, servindo como mero instrumento de treinamento ou experimentação.

 

ASPECTOS RELATIVOS ÀS RELAÇÕES ENTRE FAMILIARES DE DOADORES E RECEPTORES

O processo do transplante associa-se a inúmeros problemas e situações. Um dos mais interessantes se relaciona aos processos de transferência e dependência. O filho querido que doa o coração a outro pode transformar o receptor em filho. Pode representar, para a família do doador, a continuação em vida de seu filho.

A satisfação do receptor pode fazer com que adote a família do doador e se envolva de forma pouco prudente com os dramas e problemas ali existentes. A "vinculação econômica" pode se estabelecer, caso as condições socioeconômicas e culturais assim o sugiram. Revelar ao receptor a identidade do doador e à família do doador a identidade do receptor envolve o risco de inúmeros problemas em potencial e só deve ocorrer após análise criteriosa de caso a caso. A influência da mídia deve ser contida de forma a se evitar a perda do sigilo, que constitui questão fundamental a ser garantida para o paciente e todos os envolvidos no atendimento.

Os conflitos e dramas vividos na área dos transplantes são ao mesmo tempo tristes e desafiadores. Podem demonstrar os aspectos mais diversos e distantes da alma e do comportamento humano. Buscar mitigar o sofrimento de todos os envolvidos nesse processo deve ser objetivo dos profissionais que atuam na área. Abordar de forma serena, respeitosa, carinhosa e sincera a família do doador é item fundamental na conquista da confiança e no sucesso da doação. A doação de um órgão é ato de entrega-amor em que se consente no compartilhamento da pessoa, com toda sua história, com outra pessoa geralmente totalmente desconhecida.

Respeitar o sentimento e a opção da família é essencial. Nem sempre a resposta que se espera do pedido de doação é a que é dada. Resignação e esperança são atributos importantes. O que hoje é difícil amanhã pode não ser. A paciência e a serenidade são fundamentais.

 

ASPECTOS RELATIVOS À NACIONALIDADE E À COBERTURA PREVIDENCIÁRIA

Nos EUA, imigrantes só podem receber 5% dos órgãos captados, embora o percentual de órgãos doados por imigrantes, frequentemente ilegais, seja bem mais alto. Tal fato anuncia questão ética importante.

Recentemente, um estrangeiro, de passagem pelo Brasil, sofreu grave intercorrência e necessitou de se submeter a transplante. Apesar da negativa de acesso ao tratamento por parte do SNT/MS, o paciente conseguiu a cirurgia por meio de recurso à justiça. As urgências, bem caracterizadas, impõem situação que por si só exige a conduta médica imediata, independentemente de qualquer outro fator interveniente.

 

QUAIS SÃO OS PRINCÍPIOS QUE DEVEM REGER A POSTURA DOS ENVOLVIDOS NO PROCESSO DE TRANSPLANTE?

A- Declaração Universal dos Direitos do Homem5

"Art. I - Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação aos outros com espírito de fraternidade.5"

B- Código de Ética Médica6

Capítulo V - Relação com o paciente e familiares

Art. 59 - E vedado ao médico deixar de informar ao paciente o diagnóstico, o prognóstico, os riscos e objetivos do tratamento, salvo quando a comunicação direta ao mesmo possa provocar-lhe dano, devendo, nesse caso, a comunicação ser feita ao responsável legal.6

Capítulo VI - Doação e transplante de órgãos e tecidos

Art. 72 - É vedado ao médico participar do processo de diagnóstico de morte ou da suspensão dos meios artificiais de prolongamento da vida de possível doador, quando pertencente à equipe de transplante.6

Art. 73 - É vedado ao médico deixar, em caso de transplante, de explicar ao doador ou seu responsável legal e ao receptor ou seu responsável legal, em termos compreensíveis, os riscos de exames, cirurgias ou outros procedimentos.6

Art. 74 - Retirar órgão de doador vivo quando interdito ou incapaz, mesmo com autorização do responsável legal.6

Art. 75 - Participar direta ou indiretamente de comercialização de órgãos ou tecidos humanos.6

Capítulo IX - Segredo médico

Art. 102 - É vedado ao médico revelar fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua profissão, salvo por justa causa, dever legal ou autorização expressa do paciente.6

Art. 104 - É vedado ao médico fazer referência a casos clínicos identificáveis, exibir pacientes ou seus retratos em anúncios profissionais ou na divulgação de assuntos médicos em programas de rádio, televisão ou cinema e em artigos, entrevistas [...].6"

C- Declaração de Helsinque

Orienta médicos em pesquisa biomédica envolvendo seres humanos. Vários procedimentos envolvendo transplantes são ainda experimentais. Assim, todo cuidado deve ser tomado no sentido de se evitar incorrer em violação das recomendações da declaração de Helsinque.

D - A Legislação Brasileira de Transplantes

A partir de 1968, com a publicação da Lei de Transplantes, passou a vigorar o consentimento informado, pelo qual os familiares decidiam sobre o destino dos órgãos do potencial doador. Em 1992, houve modificação, pela Lei número 8.489. Em 1997, foi criado o Serviço Nacional de Transplantes, pela Lei número 9.434. Na mesma lei foi instituído o consentimento presumido, i.e., todo indivíduo seria doador, exceto se tivesse manifestado em vida sua condição de não-doador. A celeuma criada com esta lei acabou por induzir sua modificação, em 2001, pela Lei número 10.211, que voltou a determinar o consentimento informado.2,3,4

E- A Resolução do CFM de número 1.480, de 08 de agosto de 1997, regulamenta critérios para diagnóstico de morte encefálica.7

A situação particularmente surpreendente ocorreu com o caso de Jesica Santillan, ocorrido na Universidade de Duke, nos Estados Unidos. Jesica foi submetida a transplante de coração-pulmão, com incompatibilidade ABO. Seu tipo sanguíneo era O e recebeu coração-pulmão proveniente de um doador do tipo A. A complicação foi imediata e ela perdeu os enxertos. Foi mantida em sistema de suporte de vida por duas semanas, quando foi submetida a novo transplante. Faleceu após o segundo transplante, devido a lesões neurológicas.

É importante lembrar que erros médicos ou humanos vão ocorrer sempre, no Brasil, nos Estados Unidos ou em qualquer outro local do mundo. É preciso, no entanto, empenho para que sua frequência seja cada vez menor. A apreciação do erro médico, nessa área de transplantes, reveste-se de muitas dificuldades, principalmente pelo fato de que as decisões e ações passíveis de questionamento ocorrem em contextos às vezes terríveis e de difícil interpretação para o leigo. É, entretanto, essencial que as entidades de fiscalização da prática médica atuem sempre na defesa dos interesses dos pacientes, impedindo ou limitando a prática de profissionais inabilitados e inescrupulosos.

 

REFERÊNCIAS

1. Andrade AF, Paiva WS, Amorim RLO, Figueiredo EG, Barros e Silva LB, Teixeira MJ. O teste de apneia no diagnóstico de morte encefálica. Rev Med (São Paulo). 2007 jul-set.;86(3):138-43.

2. Brasil. Senado Federal. Lei Nº 8.489 de 18 nov. 1992. Dispõe sobre a retirada e transplante de tecidos, órgãos e parte do corpo humano, com fins terapêuticos e científicos e dá outras providências. [Citado em 2009 Jul. 15]. Disponível em: http://www.prosangue.sp.gov.br/pdf/Lei%20n.8489%20de%2018.11.92%20conf.pdf

3. Brasil. Senado Federal. Lei N.º 9.434, de 4 fev. 1997. Dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento e dá outras providências. [Citado em 2009 Jul. 15]. Disponível em: http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=145597.

4. Brasil. Senado Federal. Lei Nº 10.211, de 23 mar. 2001.Altera dispositivos da Lei nº 9.434, de 4 de fevereiro de 1997, que "dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento". [Citado em 2009 Jun. 20]. Disponível em: http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=232239.

5. Assembleia Geral das Nações Unidas. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Adotada e proclamada pela resolução 217 A (III) da Assembleia Geral das Nações Unidas de 10 de dezembro de 1948. [Citado em 2009 Jun. 20]. Disponível em: http://www.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm.

6. Conselho Federal de Medicina. Resolução Nº 1246 de 08 janeiro 1988. Código de Ética Médica. [Citado em 2009 jul.15]. Disponível em: http://www.sbhh.com.br/pdf/codigo_etica _medica.pdf

7. Conselho Federal de Medicina. Resolução Nº 1480 de 8 de agosto de 1997. Critérios para a Caracterização de Morte Encefálica [Citado em 15 de jul. 2009]. Disponível em: http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/cfm/1997/1480_1997.htm