ISSN (on-line): 2238-3182
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CAPES/Qualis: B2
Relações entre profissionais de uma Unidade Básica de Saúde e do Sistema de Atendimento Móvel de Urgência*
Relationship between professionals at a Basic Health Unit and the Mobile Emergency Care System
Renata Lacerda Prata Rocha1; Isabela Silva Cancio Velloso2; Marília Alves3
1. Mestre em Enfermagem. Professora do Curso de graduação em Enfermagem do Centro Universitário UNA e Centro Universitário Newton Paiva
2. Mestre e doutoranda em Enfermagem pelo Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da UFMG. Professora do Curso de Graduação em Enfermagem do Centro Universitário UNA. isacancio@gmail.com
3. Doutora em Enfermagem. Professora Titular do Departamento de Enfermagem Aplicada da Escola de Enfermagem da UFMG. Bolsista de produtividade do CNPq. Líder do Grupo de Pesquisa Administração em Enfermagem (NUPAE)
Marília Alves
Departamento de Enfermagem Básica da Escola de Enfermagem da UFMG, Campus da Saúde
Av. Alfredo Balena, 190
CEP: 30130-100
Email: marilix@enf.ufmg.br
Recebido em: 02/10/2009
Aprovado em: 18/11/2009
Instituição: Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG
Resumo
A realidade vivenciada pelos trabalhadores da saúde é um desafio para a articulação entre os vários níveis assistenciais diante das dificuldades na aplicação dos diversos saberes e práticas na perspectiva de superação de conflitos. O objetivo deste estudo foi analisar as relações estabelecidas entre os profissionais de uma Unidade Básica de Saúde (UBS) e do Sistema de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU) na percepção dos profissionais da Atenção Primária. Trata-se de um estudo de caso descritivo, de natureza qualitativa. O cenário foi uma Unidade Básica de Saúde (UBS) da Regional Sanitária Oeste de Belo Horizonte. Os sujeitos foram 22 trabalhadores envolvidos na assistência aos pacientes. Os dados foram coletados a partir de entrevista semiestruturada e submetidos à análise de conteúdo. Os profissionais da UBS acreditam que, na perspectiva do SAMU, a atenção primária, algumas vezes, encaminha usuários antes de esgotados todos os recursos por ela disponíveis. Dessa forma, eles se ressentem da maneira como são tratadas suas demandas encaminhadas ao SAMU, da falta de comunicação e ausência de espaços de trocas de experiências e saberes. Os resultados mostram que as várias mudanças introduzidas na organização e no funcionamento dos serviços de saúde, visando à ampliação do acesso da população e à mudança no modelo assistencial, geram ainda desconforto entre os profissionais. Entretanto, a fragilidade de articulação dos serviços da rede fica evidenciada e revela desconhecimento dos diferentes modos de operar o trabalho nos diferentes níveis de complexidade.
Palavras-chave: Serviços Médicos de Emergência; Relações Interprofissionais; Atenção Primaria à Saúde; Serviços de Saúde.
INTRODUÇÃO
O sistema de atenção à saúde no Brasil passou por diversas reestruturações nos últimos anos, que visaram a atender às necessidades de saúde da população, cujas mudanças passaram a requerer adaptações nesse sistema, e de novas políticas de atenção à saúde. As mudanças das necessidades de saúde são, em sua maioria, consequência de mudanças econômicas, políticas, sociais e culturais que originaram significativas alterações na vida em sociedade, bem como na saúde das pessoas e nos problemas sanitários. Nesse contexto de dinamismo social, é importante cuidar das questões referentes à saúde pública com o intuito de reduzir a vulnerabilidade ao adoecimento e a probabilidade de incapacidades, sofrimento crônico e morte prematura.1:10
O que se tem observado nos últimos anos é que as necessidades de atenção à saúde têm impulsionado o crescimento da demanda por serviços na área de urgência e emergência, "relacionada ao aumento do número de acidentes e da violência urbana e à insuficiente estruturação da rede assistencial para esse atendimento."2:49 Como resposta às demandas, e buscando qualificar a assistência, o Ministério da Saúde propôs a reestruturação do sistema de urgência brasileiro, de modo que toda a rede assistencial, desde a atenção básica, o atendimento pré-hospitalar até a rede hospitalar de alta complexidade, trabalhasse de forma articulada. De acordo com a Portaria nº 2.0483, essa reestruturação implica que o atendimento aos pacientes portadores de quadros de urgência e emergência seja prestado por todas as portas de entrada do Sistema Único de Saúde (SUS). Amplia-se, dessa forma, o acesso ao sistema em situações de urgência para toda a rede de estabelecimentos de saúde, mantendo-se a atenção básica como porta de acesso preferencial, mas não a única.
Nesse contexto, definiu-se como componente de atendimento pré-hospitalar fixo as Unidades Básicas de Saúde (UBS), ambulatórios especializados e unidades não-hospitalares de atendimento às urgências e emergências. Nessas unidades de saúde se presta a assistência aos pacientes cadastrados para atendimentos eletivos, mas também aos portadores de nosologias agudas, de urgência e emergência, provendo atendimento e/ou transporte adequado a um serviço de mais complexidade. Essa estrutura, além de prever melhor organização da assistência, articulação dos serviços, definição de fluxos e referências resolutivas, é elemento indispensável para que se promova a universalidade do acesso, equidade e integralidade na atenção prestada. Assim, o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU), criado em 2003, no município de Belo Horizonte, passou a ser apoio estratégico à atenção básica, que absorve grande parte do atendimento à população. Além disso, contribui para facilitar o acesso à rede de serviços do SUS, uma vez que sua dinâmica permite que, em resposta à solicitação, tanto de usuários como de profissionais, realize atendimento nas ruas, residências ou unidades de saúde, com agilidade e aparato adequado.4
Embora se considere importante a compreensão das relações entre os profissionais de toda a rede assistencial, neste estudo optou-se por abordar as relações entre os profissionais de uma Unidade Básica de Saúde e do SAMU. Assim, partiu-se do pressuposto de que a articulação entre a UBS e o SAMU ainda é insuficiente, principalmente devido à indefinição e ao desconhecimento dos papéis e responsabilidades de cada nível no atendimento às urgências.
Acredita-se que, por um lado, haja resistência dos profissionais das UBS em atender pacientes em situações de urgência, por considerarem que estes devam ser encaminhados a outros níveis de mais complexidade e, por outro, os profissionais do SAMU consideram que são acionados antes de esgotadas todas as possibilidades nas UBS. A situação não é aceita pelos profissionais do SAMU, os quais acreditam que muitas queixas dos pacientes são de competência da atenção básica. Entretanto, como os profissionais do SAMU têm a prerrogativa de estabelecer o julgamento da urgência, há sentimento de quebra de autonomia por parte dos profissionais da unidade básica que necessita ser compreendido. Há, portanto, uma lacuna na integração entre os serviços que deveriam funcionar em rede e que se reflete nas relações entre os profissionais. A compreensão das relações entre profissionais e serviços pode oferecer subsídios aos gestores municipais na reformulação das estratégias, visando à integração da rede de serviços de saúde.
MÉTODO
Foi escolhido para esta pesquisa o estudo de caso descritivo, de natureza qualitativa, que procura investigar um fenômeno contemporâneo no seu âmbito real, especialmente com os seus limites ainda pouco definidos, o que permite mais flexibilidade na sua condução.5
O cenário do estudo foi uma UBS da Regional Oeste do município de Belo Horizonte. Foram sujeitos 22 trabalhadores de saúde da UBS, envolvidos na atenção básica de saúde. Os critérios de inclusão foram: ser profissional de saúde da unidade básica, participar da assistência direta aos pacientes no caso de se acionar o SAMU, ser maior de 18 anos e concordar em participar livremente da pesquisa. Dessa forma, foram excluídos da pesquisa estudo auxiliares administrativos, auxiliares de limpeza, agentes de zoonoses, agentes comunitários de saúde, porteiros, guarda municipal, dentistas e técnicos de higiene bucal. A amostragem não foi estipulada a priori, tendo sido definida no decorrer do trabalho de campo mediante a utilização do critério de saturação de dados, baseado na reincidência de informações.6
O processo de coleta de dados foi organizado em três momentos: aproximação e convite à gerente da UBS, agendamento de entrevistas e entrevistas propriamente ditas. As entrevistas foram realizadas na própria UBS, no mês de julho de 2008, tendo sido agendadas de acordo com a disponibilidade dos profissionais, utilizando-se roteiro semiestruturado. Foram gravadas e transcritas na íntegra para análise e interpretação das falas dos autores, de forma a garantir a totalidade e fidedignidade das informações. Os dados foram submetidos à análise de conteúdo, que é considerado "um conjunto de técnicas de análise das comunicações visando obter, por procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, indicadores (quantitativos ou não) que permitam a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção (variáveis inferidas) dessas mensagens."7:44
O projeto foi conduzido nos preceitos da Resolução nº 196/96 do Conselho Nacional de Saúde, tendo sido analisado e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da UFMG (COEP/ UFMG) (Protocolo nº 215/08) e pelo CEP da Secretaria Municipal de Saúde de Belo Horizonte (Parecer nº. 014/2008).
RESULTADOS
As relações entre os profissionais da UBS e do SAMU podem ser caracterizadas por entendimentos e parcerias em algumas situações e por conflitos e divergências em outras. Essa relação dinâmica pode ser modificada segundo a circunstância e as demandas de trabalho e a habilidade de comunicação entre os profissionais.
Há duas questões centrais que definem as relações entre os profissionais dos dois serviços: a falta de delimitação objetiva entre o que deve ser atendido pela UBS e pelo SAMU e a falta de integração entre os serviços da rede. Não há consenso sobre o que compete à UBS atender em casos de urgência e quando acionar o SAMU. O paciente com manifestações clínicas agudas representa um dos motivos de muito conflito, pois a UBS está voltada para a promoção e prevenção de saúde, com agendamento, e o SAMU para grandes urgências. O atendimento ao paciente agudo neste estudo mostrou-se um nó crítico, pois pode ser atendido pela UBS ou pelo SAMU, dependendo de sua gravidade.
Os profissionais da UBS estudada reconhecem a competência do SAMU para atender urgências e avaliam que, se tivessem melhor infraestrutura, seria possível atender mais casos de urgência sem acionar o SAMU. Como os critérios de urgência e as competências não estão precisamente definidas, há solicitações de intervenção do SAMU antes de esgotadas todas as possibilidades da UBS. Há insegurança por parte dos profissionais da UBS no atendimento às urgências por falta de treinamento semelhante aos disponibilizado ao SAMU para que sejam cumpridas suas responsabilidades segundo as normas vigentes no país.
Há falta de diálogo entre os profissionais e níveis assistenciais da rede de serviços de saúde, dúvidas do SAMU em relação às avaliações e diagnósticos feitos pelos profissionais do Programa de Saúde da Família (PSF), que tem sua capacidade técnica subestimada e sua autonomia constantemente posta em julgamento.
Além disso, referem-se a tratamento pessoal e profissional desrespeitoso, além da desqualificação de seu trabalho por parte do SAMU. Acionar o SAMU quando o profissional da UBS julga necessário é uma situação desconfortável, pois o SAMU só se considera adequadamente acionado em situações de muita urgência quando há risco de morte.
DISCUSSÃO
A relação de parceria e complementaridade entre os profissionais poderia ser mais bem conduzida se a comunicação fosse um instrumento eficaz de ligação e de entendimento entre os serviços. Quando a comunicação é precária, a relação assume caráter de conflito e de divergência, não há troca, não há diálogo facilitador nas relações. Os profissionais que trabalham nas UBS têm postura de desconfiança em relação à forma negativa como acreditam ser percebidos pelos trabalhadores do SAMU, considerando que estes, na maioria das vezes, acreditam que, antes de serem acionados, não foram esgotadas todas as possibilidades de atendimento na UBS. Essa relação é marcada pela sensação de serviço inacabado, incompleto, que não atende às expectativas do outro.
A maneira como os profissionais dos dois serviços se percebe é decisiva para as relações que se estabelecem, ora de confiança e complementaridade, ora de desconfiança e isolamento, de maneira que um serviço interfere na dinâmica do outro. São relações circunstanciais, que não obedecem a um padrão e que interferem na qualidade da assistência como um todo.
O paciente agudo talvez seja o mais alto ponto de divergência entre os dois serviços, que ainda não encontraram a maneira mais adequada de atendê-lo. Continua sendo um fator de desgaste para as equipes de ambos os serviços. Apesar de a Política Nacional de Atenção Básica(1) e a Política Nacional de Atenção às Urgências(2) determinarem que os serviços de atenção básica e de urgência devem atender aos pacientes com quadros agudos nos seus níveis de complexidade, elas não são precisas quanto à operacionalização das ações. Os documentos não estabelecem os critérios que definem manifestações clínicas consideradas agudas que são de responsabilidade de cada nível da rede assistencial, dificultando o estabelecimento de responsabilidade das unidades no atendimento, gerando conflitos.
Há desconfortos com a chegada desse paciente e, ao mesmo tempo, preocupação com sua estabilização. Não há como definir em normas e rotinas a evolução dessas manifestações clínicas, mas há possibilidade de se atender e de se acompanhar, com mais frequência, a sua evolução. Se o usuário evoluir para uma situação clínica mais grave, com descompensação da sua entidade nosológica, necessitará de outro atendimento com aporte tecnológico de mais complexidade do que pode oferecer a atenção básica. A falta de referência para estabelecer a conduta gera a solicitação de transferência do paciente e, consequentemente, conflitos. Na UBS, não há leitos ou macas de observação e a solução é repassar o problema para outro nível assistencial. Essas situações geram preocupação, insegurança e angústia, que marcam as relações entre os profissionais.
Ressalta-se que os conceitos de urgência e emergência são confusos e polêmicos e, como sua definição é complexa, atualmente se fala em situações clínicas agudas.8 A subjetividade do conceito "agudo" possibilita a interpretação individual de acordo com aquele que avalia, passando a determinar o que é agudo ou não para ele e qual o procedimento a seguir. Nessa perspectiva, o profissional define, utilizando seus próprios critérios de julgamento, quais pacientes serão atendidos na UBS e quais serão encaminhados a outro nível de assistência.9 Assim, a proposta é que o profissional que receber o paciente faça a avaliação para definir suas necessidades e a divisão de responsabilidades entre os serviços. Essa responsabilidade compartilhada, se colocada em prática, geraria, entre eles, uma relação de parceria.
Os relatos deixam transparecer um conflito de interesses entre os profissionais. Frequentemente, o termo conflito está associado a "dificuldades, desavenças, injúrias, competição, oposição, desarmonia, incompatibilidade."10:54 Admitindo que o conflito possua caráter relacional, podendo ocorrer entre pessoas, grupos e organizações, entre outros, a frustração de interesses de uma das partes envolvidas, ou de ambas, desencadeará o conflito. Assim, "as organizações são, frequentemente, lócus privilegiado para o surgimento de conflito, pois as relações no ambiente de trabalho são intermediadas pelo jogo de poder, de diferenciação de interesses e de intencionalidade entre os agentes."10:54
Nesse sentido, pode-se observar o estabelecimento de relações de poder entre profissionais do SAMU e da UBS, considerando que profissionais do SAMU esperam que os profissionais da atenção básica realizem procedimentos e ações que não estão em seus propósitos. Em contrapartida, os profissionais da atenção básica resistem aos julgamentos do SAMU sobre urgência, estabelecendo desequilíbrio na relação e na expectativa do outro.
Infere-se que os profissionais da UBS sentem sua autonomia reduzida, ao serem obrigados a atender pacientes encaminhados pelo SAMU, tanto pela orientação para procurar a UBS, quanto pelos encaminhamentos diretos. Para agravar as relações entre os dois, o SAMU tem legitimidade, conferida pela Portaria nº 2.048/02, para direcionar o fluxo de pacientes de acordo com as necessidades avaliadas pelo médico regulador; e a atenção básica não tem essa prerrogativa. Nesse sentido, Merhy11 fala da "solidariedade profissional", em que haja interação de saberes e práticas. Mas essa proposta não é compreendida por todos os profissionais.
A relação entre a UBS e o SAMU pode ser caracterizada como um jogo de poder entre eles, que se concretiza na transferência de responsabilidade, mesmo que o outro não concorde em recebê-la. Dessa forma, as unidades de saúde que deveriam trabalhar integradas em rede e com um mesmo objetivo estabelecem uma relação de disputa.
Torna-se possível, então, perceber que o processo de trabalho voltado para as práticas de promoção e prevenção da saúde está enraizado no discurso do profissional da atenção básica. Daí, instalam-se dificuldades para reconhecer que o atendimento às urgências faz parte de qualquer serviço de saúde e que a atenção básica seja responsável por práticas de saúde que abranjam não somente a prevenção de agravos e promoção, como também "diagnóstico, tratamento, reabilitação e manutenção da saúde."2 "Os serviços do SUS, principalmente da rede básica com o atendimento de urgência, ainda tem uma espécie de disputa. Acho que poderia e deveria ser mais integrado. É como se houvesse uma disputa de um serviço com o outro. Como se um quisesse empurrar pro outro". (E11)
Percebe-se que há, entre os serviços, uma forma de disputa. No entanto, o profissional reconhece a necessidade de se atender à demanda da população em todos os níveis de atenção. Nesse sentido, deve-se propor a qualificação de todas as portas de assistência, como portas de entrada no sistema, adequandoas às necessidades de cada caso.12
Torna-se importante ressaltar que cada nível de complexidade tem suas responsabilidades nos atendimentos, principalmente pelo fato de que se diferem no que diz respeito a recursos e tecnologias. Mas, conforme institui a Política Nacional de Atenção às Urgências13, o atendimento inicial aos pacientes com quadros agudos ou em situação de urgência deve ser prestado por todas as portas de entrada do SUS, possibilitando a resolução do seu problema ou transportando-o responsavelmente no sistema hierarquizado e regulado. Então, organizam-se as redes regionais de atenção às urgências como elos de uma rede de manutenção da vida, em níveis crescentes de complexidade e responsabilidade.
Entretanto, a falta de comunicação eficiente que oriente a prática profissional e o desconhecimento das normas de funcionamento dos serviços gera desgaste nas relações. "O que chamar, quando chamar? É necessário ter uma anamnese? É necessário fazer escala de Glasgow? Essas coisas que às vezes a gente fica ao telefone eles perguntando e a gente sem saber. Eu acho que está faltando uma interação mesmo entre a Unidade Básica e o SAMU" (E4)
O profissional não identifica as informações necessárias para o encaminhamento do usuário quando da solicitação do SAMU e esse fato é motivo de questionamentos. Essa situação leva à criação de condutas clínicas particulares e adoção de critérios de encaminhamento individualizados, que fragmenta o trabalho e gera descontentamento. Entretanto, é válido considerar que "as relações instituídas entre trabalhadores só perduram se houver uma noção de horizontalidade, de semelhança, de troca de saberes, onde cada um tenha algo a contribuir para esse relacionamento."14
Infere-se que a linguagem utilizada nos diferentes níveis de atenção possa ser um elemento dificultador das relações entre os serviços. Nesse sentido, "os profissionais devem reaprender o trabalho a partir de dinâmicas relacionais, somando entre si os diversos conhecimentos"11:109 e, dessa forma, devem articular "seus núcleos de competência específicos, com a dimensão de cuidados que qualquer profissional de saúde detém."15:113 Assim, torna-se necessário considerar a possibilidade de se integrarem saberes e práticas distintas na capacitação, facilitando o entendimento das linguagens e das ações nos diferentes espaços de atenção. No entanto, o que se verifica é um discurso fragmentado e indefinido, como a seguir: "Eu não vejo nenhuma coisa assim sólida para ser seguida, para a gente saber o que a gente pode mandar o que eles vão atender, se aquilo é para eles mesmos. Porque, às vezes, eu tenho a suspeita que a gente pode estar errando" (E20).
Há uma dificuldade real entre os tênues limites dos quadros de urgência, que pode se modificar com mais ou com menos rapidez. Há insegurança dos profissionais das UBS quanto ao momento para referenciar o paciente ou mantê-lo na atenção básica, onde não há condição para observação. Essa segurança poderia ser construída a partir de ações organizacionais, tais como educação continuada e educação permanente dos profissionais para o atendimento de urgência. Situações clínicas agudas e de urgência e emergência requerem intervenções singulares que têm núcleos de competência relacionados ao uso de tecnologias específicas. Considerando-se que qualquer profissional produtor de atos de saúde tem seu trabalho sempre associado à operação de cuidado na atuação clínica, ele necessita de constante capacitação.15 No entanto, há insegurança dos profissionais das UBS por falta de treinamento: "Os profissionais estão acostumados a um tipo de serviço e não têm o treinamento que os profissionais do SAMU". Eles estão mexendo com isso o tempo todo". (E11)
Percebe-se que o argumento para chamar o SAMU tem como base o conhecimento, o melhor preparo dos profissionais para atender urgências, mesmo que a solicitação não seja consensual. Essa situação revela uma relação conflitante, pois há a transferência de responsabilidades e não a relação baseada em critérios técnicos sobre o limite do serviço e dos profissionais que o compõem. Além disso, reflete a fragilidade dos processos de educação permanente no que se refere ao atendimento de urgência e emergência na UBS e às inseguranças diante da hierarquia de complexidade: "Às vezes a gente precisa do SAMU e vem uma ambulância comum e nós também temos insegurança. Parece que eles não entendem isso, a gente tem que saber tudo e eles é que estão preparados para fazer esse tipo de coisa" (E19).
Percebe-se que há uma relação de cobrança de desempenho dos profissionais da atenção básica pelo SAMU, cujas expectativas nem sempre são atendidas. Um serviço não entende a limitação do outro e não há compreensão, por parte dos profissionais, sobre a expectativa gerada na organização da rede. O entrevistado coloca-se em posição de inferioridade, quando relata a expectativa do SAMU sobre o preparo técnico para atender as urgências. Essa posição distancia os profissionais de uma assistência articulada, em que todos os serviços estariam preparados para qualquer caso clínico.4
No entanto, a falta de capacitação das equipes para atendimento de urgência nas UBS configura-se como um dos principais problemas relacionados à deficiência dos aparelhos formadores para o enfrentamento das urgências.(16) A deficiência na formação faz com que os profissionais de saúde, ao se depararem com situações de urgência, por insegurança, tenham o impulso de fazer um rápido encaminhamento para unidades de mais complexidade, mesmo antes de avaliar ou estabilizar o quadro. "Assim, é essencial que esses profissionais estejam qualificados para esse enfrentamento, se quisermos imprimir efetividade em sua atuação."2:69
Há pouca segurança para assistir os casos de urgência/emergência na UBS, o que tem levado o SAMU e a atenção básica à relação de desconfiança, marcada pela dúvida e pela falta de credibilidade nas avaliações feitas pelos profissionais das UBS: "Pelo fato da gente trabalhar no Centro de Saúde, eles não dão muita credibilidade. É do Posto? Não sabe nem o que está fazendo. Não tem médico aí, não? Cadê o enfermeiro? Não tem ninguém aí para resolver isso?" (E10)
O profissional se ressente da desconfiança atribuída à atenção básica pelo SAMU nos julgamentos da gravidade dos casos. Percebe-se que o fator determinante da falta de credibilidade da atenção básica, pelo SAMU, relaciona-se à falta de preparo dos profissionais da atenção básica para atenderem urgência e que não sabem reconhecer quadros de real necessidade de solicitação de outros serviços. Essa relação de desconfiança é decisiva para a fragmentação da assistência, bem como para a baixa autoestima dos profissionais que se sentem capazes de fazer as avaliações.
Nesse aspecto, há que se resgatar a dimensão subjetiva da intervenção em saúde como fator de desenvolvimento da qualidade das relações humanas, que acompanhe a evolução do conhecimento científico. Quando há domínio de ações organizadas em torno das tecnologias duras (equipamentos, máquinas), os processos de trabalho ficam mais comprometidos com o uso dessa tecnologia do que com os problemas de saúde que devem enfrentar.15 O trabalho em saúde, orientado por esse modelo, isola-se dos demais; vai-se especializando a cada nova associação entre procedimentos e máquinas e "vai-se necessitando de uma autonomia que o separa das outras modalidades de abordagem em saúde e alimenta-se de uma organização corporativa poderosa voltada, eticamente, para si mesma."15:106
Dessa forma, torna-se necessário que os diferentes níveis de atenção estabeleçam relação de complementaridade a partir de mecanismos de referência e contrarreferência organizados e regulados, com o reconhecimento da importância de cada serviço como parte do sistema. Cada serviço deve se responsabilizar pela parcela da demanda de sua responsabilidade, fazendo os encaminhamentos da clientela quando não houver recursos necessários para o atendimento.4 Entretanto, a relação interprofissional é influenciada pela pouca compreensão dos limites de cada serviço, conforme relatos: "Eles não fazem ideia. Eles riam, debochavam. O que é PSF?" (E20). "O principal problema pra quem está na UBS, seja o médico, a enfermeira, é o diálogo respeitoso da parte do moderador. Ele subestima a capacidade técnica de quem está aqui... Desdenha da suspeição diagnóstica". (E9)
Em algumas situações há relação desrespeitosa entre a atenção básica e o SAMU, principalmente para com os profissionais que trabalham no Programa de Saúde da Família (PSF), como generalistas. Os profissionais da atenção básica sentem-se desvalorizados e subestimados, em sua capacidade técnica, pelos profissionais do SAMU, expressam indignação pelo tratamento recebido e esse comportamento negativo influencia suas relações com o SAMU. A indignação deve-se a situações que se repetem, sem perspectiva de mudança, pois "eles não têm humildade (E20)." Na realidade, há dicotomia entre os trabalhos realizados utilizando-se tecnologias leves e tecnologias duras, respectivamente, na atenção básica e no SAMU, pois "o fato de estar na UBS é como se desqualificasse a ter critérios para chamar o SAMU quando julgar necessário" (E9)
O relato implica um critério de valor que remete ao modelo biomédico de atenção e à desqualificação, por parte do SAMU, do trabalho na atenção básica. Evidencia a valorização do especialista em detrimento do generalista, quando a maioria dos problemas de saúde pode ser resolvida pelo generalista com o apoio de outros serviços, entre eles o de urgência. Mas a integração entre os serviços é meta ainda longe de ser alcançada. Os profissionais da UBS, quando necessitam acionar o SAMU, sentemse como se estivessem pedindo um favor: "Eu sinto a gente do lado de cá, pedindo atendimento, que muitas vezes vem até como uma forma de favor, de uma coisa forçada" (E16)
Há questionamentos sobre os limites da UBS e do SAMU e ressentimento dos profissionais da UBS, por serem vistos como se estivessem "pedindo um favor". Mais do que um prejuízo para a relação profissional, isso prejudica a própria assistência ao paciente.
Os microespaços de atuação constituem locais privilegiados de observação das relações entre os profissionais. O (re)conhecimento dessa realidade pouco articulada dos níveis de atenção e da percepção conflituosa dos profissionais da atenção básica sobre o SAMU constitui importante subsídio para propostas de mudança. Por um lado, os profissionais da atenção básica valorizam o trabalho do SAMU, relacionando essa visão ao benefício que a população teve com sua implantação. Por outro lado, não sentem que esse ganho estendeu-se a eles e questionam o fato de atenderem casos agudos e de urgência que extrapolam sua capacidade instalada.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As situações de urgência e emergência, no contexto da atenção primária e que estão presentes no dia-a-dia dos trabalhadores, implicam articulação com outros serviços da rede de saúde e são causas frequentes de conflitos entre os profissionais da UBS e do SAMU. A fragilidade da articulação dos serviços da rede fica evidenciada e revela desconhecimento dos diferentes modos de operar o trabalho nos diferentes níveis de complexidade
A proposta de inversão da lógica do atendimento, de sistemas fragmentados para redes de atenção às urgências integradas verticalmente ainda não alcançou todos os atores sociais envolvidos no processo, em especial os profissionais da atenção básica, que ainda não reconhecem sua responsabilidade do atendimento às urgências no nível primário de atenção. Além disso, os profissionais da UBS estudada relacionam as dificuldades de atendimento às urgências, à inadequação de estrutura física para esse atendimento, falta de materiais e insumos e de tecnologias complexas exigidas para assistência às situações de urgências e despreparo da equipe de saúde para execução dos procedimentos técnicos. Apesar de reconhecerem o trabalho do SAMU, ressentem-se pela desvalorização por parte do mesmo, que não reconhece seus esforços.
O SAMU, como serviço recente, ainda em fase de consolidação, exige que outros estudos sejam realizados, envolvendo profissionais e usuários, como subsídios para adequação de sua organização e funcionamento. No entanto, esse estudo, pela abordagem metodológica, apresenta a limitação no que diz respeito à sua generalização, sendo aplicável às relações entre profissionais de uma UBS da Regional Oeste e SAMU, sob a ótica dos profissionais que trabalham na unidade referida.
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* Esta pesquisa recebeu apoio financeiro da FAPEMIG e bolsa de Iniciação Científica. Bolsa de Produtividade para a orientadora. O estudo foi realizado na Escola de Enfermagem da UFMG.
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